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Prioridade da bandeira e técnica na circularização marítima

quinta-feira, 26 de junho de 2025

Atualizado em 25 de junho de 2025 16:03

A exigência de consulta ao mercado nacional visa a proteger o mercado e as embarcações brasileiras, mas sua aplicação deve observar condições técnicas concretas. A preferência por navios brasileiros não pode ser absoluta e deve observar as necessidades da exploração - inclusive no que diz respeito à capacidade de transporte, por exemplo.

I - Introdução: A lógica regulatória do afretamento marítimo

A regulação da navegação marítima brasileira reflete uma dualidade essencial: de um lado, a necessidade de integração à logística internacional; de outro, o dever constitucional de proteção à bandeira nacional e à indústria naval, previsto no art. 178 da CF.1

Nesse contexto, o afretamento - ou seja, a contratação de embarcação para transporte mediante pagamento - constitui ferramenta fundamental para a operacionalização do comércio e da logística nacional. Especialmente em setores como a cabotagem, o apoio marítimo e o offshore, é comum que EBNs - Empresas Brasileiras de Navegação contratem embarcações estrangeiras, dada a indisponibilidade de navios nacionais tecnicamente aptos.

A relação entre o fretador, "aquele que disponibiliza, total ou parcialmente, a embarcação para afretamento"2 e o afretador, "aquele que tem a disponibilidade da embarcação ou parte dela, mediante o pagamento de taxa de afretamento"3 demanda arcabouço regulatório sólido, que assegure equilíbrio contratual e resguarde o interesse público.

Essa possibilidade, contudo, é condicionada à autorização da ANTAQ - Agência Nacional de Transportes Aquaviários, conforme estabelecido no art. 9º, I, da lei 9.432/1997. O objetivo é garantir que a contratação de navios estrangeiros ocorra apenas quando inexistente embarcação brasileira adequada à operação.

É justamente para verificar esse requisito que se instituiu o procedimento de circularização - mecanismo regulatório próprio do ordenamento jurídico nacional, voltado à efetivação da prioridade legal da bandeira brasileira.

II - O procedimento de circularização: Fundamentos e função

A circularização é o procedimento administrativo obrigatório que antecede a autorização para o afretamento de embarcações estrangeiras no Brasil. Previsto na lei 9.432/1997 (art. 9º, I) e regulamentado pela resolução 129/25, dentre outras da ANTAQ, esse mecanismo busca assegurar o cumprimento da prioridade legal conferida a navios de bandeira nacional.

Na prática, o procedimento é acionado quando uma EBN manifesta à ANTAQ a intenção de contratar uma embarcação estrangeira. A partir desse momento, outras EBNs podem apresentar embarcações nacionais aptas a executar o serviço - o que, se aceito, "bloqueia" o afretamento pretendido. Essa consulta formal ao mercado é realizada exclusivamente por meio do SAMA - Sistema de Gerenciamento de Afretamento na Navegação Marítima e de Apoio, plataforma digital da agência reguladora.

Mais do que uma exigência burocrática, a circularização materializa a política pública de proteção à marinha mercante brasileira. Seu propósito é duplo: garantir a competitividade das empresas nacionais e incentivar o desenvolvimento da indústria naval, com reflexos diretos na geração de empregos qualificados e no fortalecimento da cadeia logística nacional.

O art. 9º, I da lei 9.432/1997 estabelece, de forma expressa, que o afretamento de navio estrangeiro só pode ser autorizado na ausência de embarcação brasileira adequada:

"Art. 9º O afretamento de embarcação estrangeira [...] depende de autorização do órgão competente e só poderá ocorrer nos seguintes casos:
I - quando verificada a inexistência ou indisponibilidade de embarcação de bandeira brasileira do tipo e porte adequados para o transporte ou apoio pretendido."

Essa mesma lógica se reflete no art. 7º4 da resolução 129/25 da ANTAQ, que condiciona a emissão do CAA - Certificado de Autorização de Afretamento à circularização.

Realizada por meio do sistema SAMA, a circularização permite que outras EBNs se manifestem apresentando embarcações de bandeira brasileira (Art. 9º da resolução 129/25 da ANTAQ).Essa manifestação pode ensejar dois tipos de bloqueio, nos termos do art. 2º, incisos IX e X da resolução 129/25 da ANTAQ:6

  • Bloqueio firme: A embarcação ofertada é tecnicamente adequada e atende integralmente aos requisitos da operação, sendo o bloqueio reconhecido formalmente pela ANTAQ; e
  • Bloqueio parcial: Atendimento parcial da capacidade requerida - seja em tonelagem, seja em prazo -, em razão da indisponibilidade de embarcação que cubra a demanda por completo.

Caso a embarcação nacional indicada em bloqueio firme possua características técnicas equivalentes à estrangeira inicialmente pretendida, a contratação da embarcação brasileira torna-se obrigatória7.

A inobservância do procedimento ou sua condução de forma ineficaz sujeita as empresas a sanções administrativas, incluindo multa, cassação de autorização e até declaração de inidoneidade, nos termos da atuação fiscalizatória da ANTAQ.

III - Bloqueio parcial: Prioridade interpretada conjuntamente com razoabilidade e proporcionalidade

Um dos principais desafios do procedimento de circularização consiste em compatibilizar a prioridade legal conferida às embarcações nacionais com sua efetiva capacidade de atender, de forma segura, eficiente e economicamente viável, à demanda contratual e ao mercado dinâmico em que o afretamento está inserido.

A mera disponibilidade formal de um navio de bandeira brasileira não basta. É necessário que a embarcação possua as condições técnicas mínimas para a operação pretendida - como tonelagem compatível, sistemas de posicionamento e manobra, certificações exigidas, aderência aos prazos, localização estratégica e possibilidade efetiva de transporte dos bens ou prestação dos serviços que serão objeto do contrato. Em operações de grande escala ou alta complexidade, é comum que apenas embarcações estrangeiras reúnam todos os requisitos para garantir a integridade e a viabilidade logística da contratação.

O problema se acentua nos casos de bloqueio parcial, quando a embarcação nacional indicada não tem capacidade plena de atendimento - seja por restrições de carga, seja por impossibilidade de cumprir a janela operacional exigida. Nessas situações, embora haja formalmente proposta nacional, a substituição integral da embarcação estrangeira revela-se inviável na prática. Ignorar esse descompasso pode comprometer a operação.

Um exemplo paradigmático dessa abordagem ocorreu no mandado de segurança 1055843-44.2023.4.01.3400 distribuído perante a 6ª Vara Federal Cível da seção judiciária do Distrito Federal. A ação foi ajuizada após a ANTAQ afastar bloqueio parcial apresentado por uma empresa do ramo de transporte de carga, em circularização conduzida por empresa fretadora, que buscava afretar embarcação para o transporte de produtos siderúrgicos para uma empresa de produção de semiacabados de aço.

Na ocasião, a empresa buscava afretar uma embarcação para o transporte de produtos siderúrgicos em território nacional. A empresa fretadora iniciou a circularização e outra EBN apresentou bloqueio parcial, indicando um navio de bandeira nacional.

A proposta foi recusada pela fretadora com base em três fatores: (i) a tonelagem e as dimensões da embarcação eram inferiores às demandadas; (ii) a janela de execução era incompatível com o cronograma da empresa produtora de semiacabados; e (iii) a localização do navio inviabilizava o atendimento nos prazos contratuais previamente acordados.

Embora a ANTAQ inicialmente tenha reconhecido a validade do bloqueio, reviu sua posição ao analisar medida cautelar apresentada pela fretadora. A Diretoria Colegiada autorizou a contratação do navio estrangeiro.

Destacou-se, no voto do relator, que o bloqueio parcial não configura direito absoluto e deve ser sopesado com base nos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. Como pontuado:8

"...é forçoso reconhecer que o direito de exercer o bloqueio parcial não é absoluto, pois a reserva do mercado do transporte de cargas na navegação de cabotagem às embarcações brasileiras não deve ser um fator gerador de aumento dos custos para os usuários, nem tampouco impor condições operacionais díspares da demanda objeto de circularização. Assim, quando o bloqueio parcial inviabilizar o transporte integral da carga (com parte da capacidade em tonelagem requerida ou por parte do tempo requerido) é razoável e proporcional, em uma ponderação de valores entre a norma e o caso concreto, que o bloqueio seja julgado não firme por não aderência ao previsto no § 3º do art. 3º da resolução normativa 01-ANTAQ, de 2015."

Além disso, dois aspectos técnicos foram decisivos:

(i) O levantamento técnico realizado pela área especializada da ANTAQ demonstrou que, no mercado de transporte de produtos siderúrgicos originários de Pecém, a menor operação registrada entre 2022 e 2023 foi de 26,6 mil toneladas. Diante disso, a proposta da empresa que solicitou o bloqueio - limitada a apenas 5,5 mil toneladas - mostrou-se economicamente e operacionalmente inviável tanto para a contratante quanto para a afretadora9; e

(ii) "Diante do contexto fático apresentado, a embarcação (...) não conseguirá aportar no Porto de Pecém/CE a tempo de atender à janela de operação registrada no protocolo (...) (entre 1 e 5/6 de 2023); motivo pelo qual deverá ser declarado não firme o bloqueio realizado pela empresa."10

Inconformada, a empresa que solicitou o bloqueio impetrou mandado de segurança, alegando ausência de regular intimação para se manifestar antes da decisão que afastou o bloqueio. Por ordem judicial, a ANTAQ reavaliou o caso, após manifestação da empresa bloqueante mas reiterou a sua improcedência, autorizando a continuidade da contratação de navio estrangeiro.

IV - Conclusão

Independentemente do mérito das decisões administrativas e judiciais, o caso ilustra um desafio recorrente no setor: a preferência pela bandeira brasileira deve ser relativizada sempre que a embarcação ofertada não atender, de forma plena, aos requisitos técnicos e logísticos da operação. No caso concreto, obrigar o afretador a organizar mais de uma viagem apenas para viabilizar a utilização de navio nacional seria, nas palavras da própria ANTAQ, "inviável economicamente e operacionalmente, tanto para o usuário, quanto para a empresa que procedeu a circularização".

A insistência em utilizar uma embarcação inadequada - ainda que formalmente ofertada - pode gerar atrasos, entrega parcial e descumprimento contratual. No caso do aço, por exemplo, trata-se de um insumo essencial a cadeias produtivas estratégicas como a indústria de base, a construção civil e a infraestrutura.

Nesse cenário, os efeitos jurídicos são significativos: descumprimento de obrigações contratuais, comprometimento do equilíbrio econômico-financeiro do contrato e aumento de custos.

Em síntese, portanto, a proteção à bandeira brasileira, embora essencial para o fortalecimento da marinha mercante nacional, deve ser aplicada com prudência. O caso trazido como exemplo evidencia a importância de decisões técnicas rigorosas e céleres, que considerem as particularidades de cada operação. O equilíbrio entre o fomento à indústria nacional e a racionalidade econômica é indispensável para garantir previsibilidade, eficiência e segurança jurídica nas contratações de transporte marítimo no Brasil.

________________

1 Art. 178. A lei disporá sobre a ordenação dos transportes aéreo, aquático e terrestre, devendo, quanto à ordenação do transporte internacional, observar os acordos firmados pela União, atendido o princípio da reciprocidade. Parágrafo único. Na ordenação do transporte aquático, a lei estabelecerá as condições em que o transporte de mercadorias na cabotagem e a navegação interior poderão ser feitos por embarcações estrangeiras.  

2 ANTAQ. Agência Nacional de Transportes Aquaviários. Resolução Normativa nº 129 de 5 de junho de 2025. Disponível aqui . Acesso em 19/6/25. Art. 2º, XXIII

3 Ibidem. Art. 2º, II

4 Art. 7º A empresa brasileira de navegação interessada em obter a autorização de afretamento deverá preencher formulário de circularização no SAMA.

5 Art. 9º A EBN interessada em fretar embarcação que atenda ao objeto da circularização nos seguintes prazos contados do envio da circularização:

6 IX - bloqueio firme: procedimento de bloqueio reconhecido como válido pela ANTAQ para o atendimento da circularização, comunicando formalmente às partes envolvidas e informando as razões da decisão;

  X - bloqueio parcial: quando o bloqueio se faz com parte da capacidade em tonelagem requerida, ou por parte do tempo requerido, diante da indisponibilidade de embarcações brasileiras para o bloqueio completo;

7 "A ANTAQ, no exercício do seu poder regulamentar, editou a Resolução Normativa nº 01-ANTAQ/2015, na qual estabeleceu que a Empresa Brasileira de Navegação (EBN) interessada em afretar embarcação estrangeira a ser empregada na navegação de apoio marítimo deve realizar o procedimento de Circularização, por meio do qual se permite que outra EBN ofereça embarcação brasileira em condições de atender à navegação de apoio pretendida e, assim, bloqueie o afretamento da embarcação estrangeira, PASSANDO A SER OBRIGATÓRIO O AFRETAMENTO DA EMBARCAÇÃO BRASILEIRA. (...), Entretanto, não há qualquer prova de que os princípios da Lei 9.432/1997 tenham sido cumpridos, UMA VEZ QUE NÃO CONSTA NOS AUTOS DEMONSTRAÇÃO DE TER OCORRIDO A CONTRATAÇÃO DE EMBARCAÇÃO BRASILEIRA QUE EFETUOU O BLOQUEIO DA CIRCULARIZAÇÃO EM SUBSTITUIÇÃO À EMBARCAÇÃO OPERADA PELAS AUTORAS. Embora a Petrobras entenda que para a hipótese de encerramento antecipado é suficiente a não obtenção do Certificado de Autorização de Afretamento (CAA), não é isso que se conclui pela análise do próprio negócio jurídico realizado entre as partes e especialmente da lei que regula a matéria." (TJRJ, Apelação Cível 0077014-28.2018.8.19.0001, Relator Desembargador Ferdinaldo do Nascimento, 19ª Câmara Cível, j. em 06/10/2020)

8 Processo SEI ANTAQ nº 50300.008950/2023-71

9 "viagens já realizadas durante o durante o primeiro semestre dos anos de 2022 e 2023 e as práticas de operação do mercado de transporte para produtos siderúrgicos originários de Pecém (não o mercado de afretamento), constante nos parágrafos 12 e 13 do Despacho GAF nº 1943584, observo que a menor operação registrada na pesquisa foi 26,6 mil toneladas, fato que leva este Relator a compreender que uma eventual operação residual de 5,5 mil toneladas seja inviável economicamente e operacionalmente, tanto para o usuário, quanto para a empresa que procedeu a circularização.".

9 Processo SEI ANTAQ nº 50300.008950/2023-71;

10 Processo SEI ANTAQ nº 50300.008950/2023-71