Resolução de disputas sobre demurrage e o acórdão 521/25 da ANTAQ - primeiras impressões
quinta-feira, 14 de agosto de 2025
Atualizado em 13 de agosto de 2025 09:47
Começo este texto me mantendo fiel ao propósito da coluna Migalhas Marítimas, de propagar o conhecimento do Direito Marítimo de modo simples, explicando inicialmente o conceito de demurrage e sua contextualização, antes de abordar propriamente a recente decisão da ANTAQ e sua influência sobre a resolução de disputas nesse tema.
A demurrage ou sobrestadia designa um valor cobrado quando o navio ou o contêiner permanece em local de carga ou descarga além do tempo previamente acordado entre as partes. Trata-se, portanto, de uma indenização devida ao armador (ou operador de contêiner) pelo tempo excedente além do período livre, chamado de "free time", que seria suficiente para o embarque ou desembarque das mercadorias.
A natureza jurídica da demurrage é objeto de grande debate no Direito Marítimo, havendo entendimentos de que seria cláusula penal, ou indenização pré-fixada. Nesta mesma Coluna, em 15/7/211, Marcelo Sammarco e Fernanda Azevedo publicaram texto que bem esclarece estas duas visões, e ao qual remeto o leitor interessado. Para os objetivos do presente artigo, basta ter em vista que esse pagamento tem como objetivo compensar o proprietário do navio ou do equipamento pela imobilização além do esperado, evitando perdas financeiras causadas por atrasos que comprometem a logística e o planejamento operacional. Além disso, a demurrage exerceria função pedagógica, incentivando o cumprimento dos prazos estabelecidos e a eficiência nas operações portuárias.
Aqui, trato apenas da demurrage de contêiner, que é de ocorrência muito mais frequente que a de navio, e que gera grande número de litígios. Neste contexto a sobrestadia se refere ao período em que o contêiner permanece sob responsabilidade do importador/exportador, além do tempo livre estipulado pelo transportador. Após o término do prazo acordado, inicia-se a cobrança diária de demurrage até que o contêiner seja embarcado ou devolvido.
A legislação brasileira não trata da demurrage. Nenhuma surpresa quanto a isso, uma vez que o Direito Marítimo se baseia fortemente na liberdade contratual e nos costumes, sendo bastante limitada a interferência estatal em seus institutos. A compreensão da sua natureza jurídica, portanto, impactará a interpretação das disposições da legislação civil e comercial sobre obrigações e contratos, na solução dos litígios decorrentes da demurrage.
A conclusão do parágrafo anterior, porém deve ser ponderada com o fato de que, no Brasil, a ANTAQ tem resoluções que tratam de forma mais detalhada da demurrage, inclusive sobre obrigações das partes, o que, à primeira vista, contrariaria a liberdade contratual mencionada acima e que perpassa toda a compreensão do Direito Marítimo. Há quem veja na lei 10.233/01, que define as competências da ANTAQ no seu art. 272, uma espécie de "delegação" para que a Agência edite tais normas que, de algum modo, interferem em relações contratuais privadas.
Penso, porém, que a legitimidade da ANTAQ tem outro fundamento. Como lhe compete definir normas para o uso da infraestrutura portuária, e este é exatamente o espaço em que se desenrolam, quase sempre, as causas e consequências da demurrage, com impactos sobre a operação portuária como um todo, a Agência não apenas pode, como deve definir alguns parâmetros mínimos para tal cobrança. Além disso, seu papel de órgão regulador do transporte aquaviário, como um todo, legitima tais disposições, desde que observada alguma autocontenção na regulação das relações privadas. Assim, é certo que deve ser buscado o devido equilíbrio entre a atuação regulatória, que visa promover um bom ambiente de negócios em determinado setor econômico (no caso, o transporte aquaviário) e a preservação da autonomia das partes na estipulação contratual das condições e valores da demurrage.
A resolução 2.389/12, dispõe sobre a fiscalização das instalações portuárias e dos agentes marítimos, conferindo à ANTAQ o poder de averiguar eventuais irregularidades nas cobranças, incluindo demurrage, e penalizar empresas que desrespeitem as normas.
A resolução 18/17 promoveu ampla regulamentação do transporte aquaviário, tratando de "direitos e deveres dos usuários, dos agentes intermediários e das empresas que operam nas navegações de apoio marítimo, apoio portuário, cabotagem e longo curso", além de definir infrações administrativas, nos termos do seu art. 1º. Seu art. 2º traz ainda as definições de free time e demurrage3, e disposições específicas sobre esses institutos, em seus arts. 19 a 214. Foi revogada pela resolução 62/21, que tratou dos mesmos temas e, no que concerne à demurrage, atualizou as definições em seu art. 2º5. Seus arts. 19 a 21, por outro lado, mantiveram as disposições da resolução anterior.
A resolução de disputas relativas a demurrage de contêineres representa, há muito, um desafio na prática do Direito Marítimo no Brasil. A multiplicidade de agentes públicos e privados que participam das operações portuárias e o conhecido "gargalo logístico" de quase todos os portos brasileiros fazem com que os prazos de estadia frequentemente sejam ultrapassados. São frequentes as reclamações de embarcadores quanto a valores abusivos cobrados por armadores ou operadores portuários. Muitas vezes, os valores acabam sendo pagos, apenas para não agravar ainda mais a situação, pois a instauração do litígio levaria a uma retenção por tempo ainda maior das mercadorias. Além disso, as divergências sobre demurrage, entre as mesmas partes, costumam ser pulverizadas em vários embarques, em diferentes BL's 6. Assim, embora o valor total seja relevante, a discussão em cada cobrança costuma ter valores não tão significativos (considerada, obviamente, a ordem de grandeza dos valores no transporte marítimo), tornando inviável para a parte, especialmente o embarcador, arcar com os custos do litígio.
Observado esse contexto, nenhum dos métodos de resolução de disputas, atualmente disponível, parece trazer o meio ideal, ou ao menos razoável, para solução dessas controvérsias.
A arbitragem apresenta a vantagem do conhecimento específico dos árbitros, quando realizada por árbitros especializados em Direito Marítimo e em câmaras de igual especialização. No entanto, mesmo a arbitragem expedita - justificável em grande parte dos casos de demurrage, em razão do valor envolvido - pode não ocorrer na rapidez demandada pela dinâmica do transporte marítimo, nem apresentar custos acessíveis, em comparação com o valor do litígio.
A judicialização do litígio tampouco tem se mostrado eficiente na resolução da questão. Salvo alguns poucos exemplos de iniciativas como o Núcleo de Direito Marítimo da Justiça Estadual de São Paulo, os juízes de cidades portuárias nem sempre têm especialização na matéria. Além disso, o tempo para que se obtenha uma decisão, os custos do litígio e os riscos dos ônus da sucumbência acabam desestimulando a judicialização.
Neste contexto, a ANTAQ acaba se apresentando como via alternativa de possível solução para esses litígios. Não se trata, até o momento, de uma competência definida expressamente. Na verdade, esse papel acabou sendo exercido pela Agência em processos de denúncia, em que se pedia a punição a armadores ou operadores que faziam cobranças consideradas abusivas. Consolidou-se também a possibilidade de medidas cautelares administrativas no âmbito desses processos. Trata-se, portanto, em grande medida, de uma construção prática, decorrente da grande demanda de composição desses litígios concernentes à demurrage.
Nesse contexto, no acórdão 521/25, publicado em 6/8/25, a ANTAQ aprovou "entendimentos regulatórios, com base em intepretação lógica e sistemática da Resolução ANTAQ nº 62/2021".
Em nove proposições objetivas, a Agência deu sua interpretação qualificada a várias questões relativas ao modo de contagem do prazo, hipóteses excludentes, transparência e responsabilidade pelo pagamento da demurrage. No que interessa ao tema deste artigo, o item 5.4 do acórdão assim estabeleceu: "determinar à SFC que, seguindo as diretrizes estabelecidas na presente deliberação, elabore o rito procedimental sumário para os casos que envolvam demandas afetas a cobranças de sobrestadias como forma de incentivar a composição de conflitos e sua célere resolução e já passe a adotar o novo rito em suas análises;". Dispôs ainda, no item 5.5, que "os pedidos de medidas cautelares sobre cobranças de sobrestadias atualmente em tramitação nesta Agência deverão ser submetidas ao rito sumário de composição antes de eventual deliberação do Colegiado; devendo suas relatorias serem consideradas preventas aos presentes autos;".
Com essa decisão, a ANTAQ dá um primeiro e importante passo para maior institucionalização e regulamentação do seu próprio papel na resolução de disputas sobre demurrage entre agentes privados. Nesse sentido, trata-se de iniciativa muito bem-vinda e positiva, que poderá trazer maior segurança jurídica para as partes envolvidas no transporte marítimo.
Não passou despercebido da Agência, ainda, o fato de que a regulamentação através de acórdão não é o meio ideal para tema tão relevante, que demanda maior formalidade, no mínimo através de uma resolução. Assim, o item 5.3 do mesmo acórdão decide "aprovar a proposta da SRG para antecipação do tema 2.6 "Sobre-estadia de contêiner - Resolução-ANTAQ nº 62/2021" da agenda regulatória para 2025 (Despacho SRG 2506632), recomendando que o texto traduza os entendimentos regulatórios aqui propostos, observando a ressalva feita no Voto AST-D1 2568113 em relação a não incidência de Análise de Impacto Regulatório (AIR)".
Trata-se, de outro ponto bastante positivo da decisão, esperando o mercado, e também os operadores do Direito Marítimo, que essa nova regulamentação traga ainda mais segurança jurídica para o tema, o que há décadas vem sendo demandado pela comunidade marítima, ajudando a desatar um dos vários nós da logística no Brasil.
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1 Migalhas nº 5.144. Disponível aqui.
2 Art. 27. Cabe à ANTAQ, em sua esfera de atuação:
II - promover estudos aplicados às definições de tarifas, preços e fretes, em confronto com os custos e os benefícios econômicos transferidos aos usuários pelos investimentos realizados;
IV - elaborar e editar normas e regulamentos relativos à prestação de serviços de transporte e à exploração da infra-estrutura aquaviária e portuária, garantindo isonomia no seu acesso e uso, assegurando os direitos dos usuários e fomentando a competição entre os operadores;
3 Art. 2º Para os efeitos desta Norma são estabelecidas as seguintes definições:
XIX - livre estadia do contêiner (free time): prazo acordado, livre de cobrança, para o uso do contêiner, conforme o contrato de transporte, conhecimento de carga ou BL, confirmação da reserva de praça (booking confirmation), ou qualquer outro meio disponibilizado pelo transportador marítimo;
XX - sobre-estadia de contêiner: valor devido ao transportador marítimo, ao proprietário do contêiner ou ao agente transitário pelos dias que ultrapassarem o prazo acordado de livre estadia do contêiner para o embarque ou para a sua devolução;
4 Art. 19. As regras e os valores de sobre-estadia, bem como o número de dias de livre estadia do contêiner deverão ser disponibilizados até a confirmação da reserva de praça ao embarcador, ao consignatário, ao endossatário e ao portador do conhecimento de carga - BL.
Art. 20. O prazo de livre estadia do contêiner será contado:
I - no embarque, a partir da data de retirada do(s) contêiner(es) vazio(s) pelo embarcador no local acordado; e
II - no desembarque do(s) contêiner(es) cheio(s), a partir do dia seguinte após a entrega da carga no local acordado.
Art. 21. A responsabilidade do usuário, embarcador ou consignatário pela sobre-estadia termina no momento da devida entrada do contêiner cheio na instalação portuária de embarque, ou com a devolução do contêiner vazio no local acordado, no estado em que o recebeu, salvo deteriorações naturais pelo uso regular.
§ 1º Caso o embarcador decida postergar o embarque do contêiner por qualquer motivo, ou dê causa ao postergamento, a contagem do prazo da sobre-estadia somente se encerrará no momento do efetivo embarque.
§ 2º A contagem do prazo de livre estadia do contêiner será suspensa em decorrência de:
I - fato imputável diretamente ao próprio transportador marítimo, ao proprietário do contêiner, ou ao depósito de contêineres (depot); ou
II - caso fortuito ou de força maior, se não houver se responsabilizado por eles expressamente.
§ 3º A contagem da sobre-estadia que já tiver sido iniciada não se suspende na intercorrência de caso fortuito ou força maior.
§ 4º O transportador marítimo ou o proprietário do contêiner deverá manter disponível ao embarcador, ao consignatário, ao endossatário e ao portador do conhecimento de carga - BL, a partir do primeiro dia de contagem da sobre-estadia, enquanto esta durar, a identificação do contêiner e o valor diário de sobre-estadia a ser cobrado.
5 Art. 2º Para os efeitos desta Resolução são estabelecidas as seguintes definições:
XVI - livre estadia do contêiner (free time): prazo acordado, livre de cobrança, para o uso do contêiner, conforme o contrato de transporte, BL, confirmação da reserva de praça (booking confirmation), ou qualquer outro meio disponibilizado pelo transportador marítimo;
XXII - sobre-estadia de contêiner: valor devido ao transportador marítimo, ao proprietário do contêiner ou ao agente transitário pelos dias que ultrapassarem o prazo acordado de livre estadia do contêiner para o embarque ou para a sua devolução;
6 O bill of lading (conhecimento de embarque) é o documento emitido pelo transportador, correspondendo a uma versão muito sintética do contrato de transporte.