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Breves reflexões sobre entendimento firmado pela ANTAQ no acórdão 521/25 e a cobrança de sobrestadia de contêineres

quinta-feira, 9 de outubro de 2025

Atualizado em 8 de outubro de 2025 14:33

O presente tema foi objeto de excelente abordagem em artigo recentemente publicado por Sérgio Ferrari, nesta mesma coluna, em 14/8/25, sob o título "Resolução de disputas sobre demurrage e o acórdão 521/25 da ANTAQ - primeiras impressões", cuja leitura recomendamos com bastante ênfase. 

Obviamente, não se pretende aqui esgotar o assunto, mas sim contribuir para a análise desta importante decisão proferida pela Agência Nacional de Transportes Aquaviários (ANTAQ) nos autos do processo 50300.014940/2024-55, refletida no acórdão 521/25-ANTAQ, publicado em 06/08/2025, sob a relatoria da Diretora Flávia Takafashi, que aprovou "entendimentos regulatórios, com base em intepretação lógica e sistemática da Resolução ANTAQ 62/2021", em relação ao modo de contagem do prazo, hipóteses excludentes, transparência e responsabilidade pelo pagamento de demurrage. 

Inicialmente, cabe destacar o item 5.5. do referido acórdão que estabeleceu importante mecanismo de estímulo à composição das partes ao dispor que: "(...) os pedidos de medidas cautelares sobre cobranças de sobrestadias atualmente em tramitação nesta Agência deverão ser submetidos ao rito sumário de composição antes de eventual deliberação do Colegiado; devendo suas relatorias serem consideradas preventas aos presentes autos." 

Trata-se de importante inovação procedimental no âmbito da agência que vai ao encontro de instrumentos jurídicos modernos de resolução de disputas, como a autotutela, autocomposição, mediação e arbitragem, que cada vez mais são colocados a serviço dos setores regulados como métodos alternativos aos litígios extrajudiciais ou judiciais.   

De outro lado, no tocante aos parâmetros da cobrança em si, a agência estabeleceu importantes premissas para a incidência da sobrestadia de contêineres, cabendo destacar: 

a) a demurrage somente deve incidir quando a utilização dos contêineres por prazo superior à livre estadia ocorrer: no interesse, por opção ou por culpa dos usuários, ou quando o evento causador estiver sob o risco do negócio dos usuários; 

b) não pode haver incidência quando a paralisação dos contêineres for relacionada a: ato ou omissão do transportador ou daqueles a seu serviço; a logística mobilizada pelo transportador marítimo para oferta do serviço; ou quando o evento causador estiver sob o risco do negócio do transportador, do depósito de vazios ou do terminal portuário. 

Estes novos parâmetros seguem no compasso da Resolução ANTAQ nº 112/2024 - que estabeleceu uma matriz de riscos para identificação do agente responsável pelo pagamento de armazenagem adicional de carga nas instalações portuárias, distribuindo responsabilidades com base no controle dos eventos causadores de atrasos. 

Embora na fundamentação do Acórdão 521-2025 a diretoria colegiada da agência tenha consignado que a matriz de riscos deve ser aplicada de imediato aos casos da sobrestadia de contêiner, o item 5.3 da decisão estabeleceu expressamente a recomendação e necessidade de regulamentação do tema através de resolução. 

Fato é que a recente decisão passou a considerar dois parâmetros para atribuição da responsabilidade pelo pagamento da sobrestadia, os quais que não estavam previstos na Resolução ANTAQ 62/21: a necessidade de aferição da culpa do usuário quanto ao atraso na devolução dos contêineres; e a apuração se o evento que motivou o atraso se insere no risco operacional do próprio transportador, do depósito de contêineres vazios ou do terminal portuário por ele indicados. 

Com efeito, no tocante à natureza jurídica da demurrage, o entendimento fixado pela ANTAQ converge com o posicionamento já pacificado no Poder Judiciário de que se trata de indenização contratual pré-fixada, devida pelo usuário que utiliza o contêiner por período superior ao estipulado entre as partes, tudo isso como forma de compensar o armador pela indisponibilidade da unidade na frota e consequentes perdas pela impossibilidade de utilização do equipamento para a prática de novos fretes no período. 

Portanto, tratando-se de indenização contratual pré-fixada, a cobrança de sobrestadia independe de perquirição de culpa do usuário, bastando, para a sua incidência, a verificação do atraso na devolução do contêiner para que a compensação ao armador tenha lugar.

É certo que a cobrança não deve incidir nas hipóteses em que a devolução da unidade dentro do período livre for comprovadamente impossibilitada por ato do armador. Neste sentido, parece bastante razoável o comando estabelecido no item 5.1.2 do acórdão: "não há incidência de sobrestadia quando a utilização do contêiner, por período superior ao prazo de livre estadia, decorra de ato, omissão ou falhas de logística sob responsabilidade do transportador, do terminal por ele indicado, ou do depósito de vazios". 

No entanto, a imposição ao armador do dever de analisar se houve culpa ou não do usuário como condição de legitimar a cobrança contraria a própria lógica da natureza indenizatória da demurrage. Neste particular, nos parece temerário o disposto no item 1.1.1 do acórdão que estabelece: "é premissa fundamental para a incidência da sobrestadia que a extensão de prazo da utilização do contêiner, por período superior ao prazo de livre estadia, decorra de interesse, opção, culpa ou risco de negócio do usuário". 

Este comando regulatório provocará grande insegurança jurídica para aquele que presta o serviço e cede o contêiner, no caso o armador - que muitas vezes sequer tem condições de aferir se o atraso na devolução da unidade se deu por culpa do usuário, seja ele um importador, agente de carga ou um terceiro com quem sequer manteve qualquer tipo de relação jurídica em determinada cadeia de transporte. 

Neste aspecto, importante nos atentarmos ao princípio do consequencialismo jurídico para uma análise mais profunda sobre os potenciais efeitos das decisões proferidas no âmbito regulatório. Isto é, o impacto que a decisão poderá produzir no setor regulado, sopesando, neste caso em especial, as vantagens e desvantagens aos usuários e armadores em decorrência da fixação do elemento culpa como condição para a cobrança da demurrage. 

O fato é que a incerteza e dificuldade imposta ao armador na análise de eventual culpa do usuário pelo atraso na devolução do contêiner acarretará grandes prejuízos financeiros pela consequente impossibilidade de cobrança em muitos dos casos. Em se confirmando este cenário, haverá significativo aumento do risco financeiro da operação de transporte para o armador, o que naturalmente impactará os fretes praticados na costa brasileira, atingindo, por consequência, não só aqueles que incidem em sobrestadia, mas todos os usuários dos serviços de transporte marítimo, inclusive aqueles que efetuam a devolução das unidades dentro do prazo contratado.

Neste passo, o comando regulatório determinado no acórdão em análise provocará grande insegurança jurídica para aquele presta o serviço de transporte e cede o contêiner, no caso o armador - que muitas vezes sequer tem condições de aferir se o atraso na devolução da unidade se deu por culpa do seu contratante direto - seja ele um importador ou agente de carga - ou de um terceiro completamente desconhecido com quem sequer manteve qualquer tipo de relação jurídica na cadeia de transporte. 

A introdução do critério de culpa do usuário como condição para a cobrança de sobrestadia demanda uma análise mais detida sob a ótica do consequencialismo regulatório - abordagem que vem ganhando protagonismo na atuação das agências, inclusive por recomendação da OCDE e da Lei das Agências Reguladoras (lei 13.848/2019). 

Conforme dispõe o artigo 4º, inciso VIII da referida lei, as decisões das agências devem considerar, sempre que possível, os "efeitos econômicos e sociais de suas ações", o que impõe uma avaliação ex ante do impacto regulatório de comandos normativos ou interpretativos adotados por deliberação colegiada. 

Ao transferir ao armador o ônus de aferir a culpa do usuário como requisito para a cobrança de demurrage, a ANTAQ cria um cenário de incerteza contratual que eleva o risco da operação, desestimula a oferta de contêineres em determinadas rotas e, por fim, pode levar ao aumento generalizado dos fretes marítimos, atingindo inclusive usuários adimplentes. 

Esse tipo de efeito colateral - que prejudica a eficiência do setor e compromete a diluição de custos - deveria ser ponderado no momento da formação da decisão regulatória, sob pena de se criar desincentivos regulatórios perversos que comprometem a função econômica da indenização por indisponibilidade de ativos. 

Nesse contexto, revela-se imprescindível que a ANTAQ adote práticas sistematizadas através de Análise de Impacto Regulatório (AIR), cujo instrumento foi expressamente dispensado quando da deliberação que deu lugar ao Acórdão 521/2025, especialmente em temas com repercussão econômica relevante e que envolvam a repartição de riscos entre agentes da cadeia logística. A jurisprudência regulatória deve, cada vez mais, dialogar com os princípios da boa governança regulatória, sob pena de comprometer sua legitimidade e eficácia prática.