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Arbitragem marítima no Brasil: Onde estamos e para onde vamos

quinta-feira, 23 de outubro de 2025

Atualizado em 22 de outubro de 2025 10:55

O presente texto atualiza e condensa algumas reflexões sobre a arbitragem marítima no Brasil, sem qualquer pretensão de esgotar o tema, muito menos de oferecer uma abordagem acadêmica. Trata-se apenas de compartilhar o pensamento de um árbitro e advogado maritimista que, já há alguns anos, vem acompanhando e vivenciando o assunto. Nesse contexto, pretendo aqui analisar dois aspectos específicos: o desenvolvimento e a especialização no âmbito da arbitragem marítima.

Em 2014, participei da fundação do CBAM - Centro Brasileiro de Arbitragem Marítima, redigindo a primeira versão de seu estatuto social e integrando o primeiro Conselho Diretor.  Segundo o que ouvi à época, alguns integrantes da comunidade marítima teriam procurado a LMMA - London Maritime Arbitrators Association, com a ideia de que a tradicional Associação abrisse uma filial no Brasil.  A ideia poderia parecer esdrúxula para quem não é do ramo. Porém, nada tem de esdrúxula, sendo, antes visionária.  É fato que, naquela época - e até hoje - não era incomum que partes e advogados brasileiros se deslocassem a Londres, para resolver suas disputas perante o mais tradicional dos centros de arbitragem marítima, mesmo quando o litígio pudesse ser resolvido no Brasil, por tratarem de contratos a serem cumpridos aqui, e com partes brasileiras.  Assim, fazia todo sentido que essas disputas fossem trazidas para o Brasil e aqui tivessem solução. A resposta que essa delegação recebeu foi igualmente peculiar: a sugestão de que, em vez de tentar atrair uma filial da LMMA, seria melhor abrir uma câmara de arbitragem marítima no Brasil.

Aquele momento era auspicioso. A visão de que havia espaço para um centro de arbitragem marítima no Brasil levou à convergência de diversos setores do shipping e da comunidade jurídica que se uniram naquele propósito.  Além disso, o próprio momento da arbitragem no Brasil também era auspicioso: o Brasil, já naquela época, contava com uma moderna legislação de arbitragem, editada em 1996 e aperfeiçoada em 20151, que vem sendo amplamente prestigiada pelo Poder Judiciário, inclusive no que tange à regra da Kompetenz-Kompetenz2.  Diversos órgãos arbitrais de excelência têm prosperado, administrando centenas de arbitragens por ano3.  A Corte Internacional de Arbitragem da ICC4, um dos mais prestigiados centros de arbitragem no mundo, abriu em 2014 um Comitê Brasileiro, sediado em São Paulo. 

Olhando em retrospecto, porém, pode ter sido uma daquelas boas ideias que chegam cedo demais, e acabam encontrando dificuldades, justamente por estarem à frente do seu tempo.

É importante registrar que a ideia não era de todo pioneira. A ABDM - Associação Brasileira de Direito Marítimo, já tinha suas regras de arbitragem desde 1996, e vinha administrando procedimentos nessa especialidade.

Em 2018, no tradicional Congresso de Arbitragem do Centro de Arbitragem e Mediação da Câmara de Comércio Brasil-Canadá (CAM-CCBC), um dos painéis foi inteiramente dedicado à arbitragem marítima. Naquela ocasião, expus a constatação de que litígios marítimos no Brasil tomavam, no mais das vezes, um de dois caminhos: a arbitragem no exterior ou a solução judicial.  A solução arbitral doméstica, embora mais racional e recomendável para boa parte do setor marítimo, continuava sendo utilizada muito abaixo do seu potencial.  Também observei, naquele momento, que além da existência de centros especializados em arbitragem marítima, também os centros já consolidados estariam preparados para administrá-las, desde que fizessem algumas adaptações em suas regras, ou editassem regulamentos específicos.

Pouco depois, em livro comemorativo dos 5 anos do CBAM, que organizei em parceria com o professor José Gabriel Assis de Almeida, destaquei um ponto que já vinha sendo falado por outros advogados e professores da área marítima, que poderíamos chamar de paradoxo da arbitragem marítima. Tomem-se as seguintes constatações, já demonstradas "numericamente" em vários trabalhos: i) no exterior, quase todos os litígios marítimos são resolvidos por arbitragem; ii) o Brasil tem um pujante comércio marítimo e iii) é um dos líderes em arbitragens no Mundo, conforme dados de algumas das principais câmaras, como a ICC (International Chamber of Commerce). Não é preciso um conhecimento profundo de lógica para concluir, a partir destas três premissas, que o Brasil teria um significativo número de arbitragens marítimas.  Embora lógica, tal conclusão não é verdadeira.  Ou, pelo menos, não era em 2019.

Apesar do momento vigoroso de prestígio e crescimento da arbitragem no Brasil, com arbitragens que abarcavam vários temas dos Direitos Comercial e Civil, em vários setores econômicos, e mesmo no Direito Administrativo (em arbitragens envolvendo o Poder Público em temas de infraestrutura); no mercado marítimo, ao contrário, as arbitragens no Brasil, embora crescentes, ainda não refletiam a participação que o instituto tem no exterior.

Um marco importante das iniciativas em prol do desenvolvimento da arbitragem marítima no Brasil foi a presença de uma numerosa delegação brasileira no ICMA - International Congress of Maritime Arbitrators - realizado em 2017 em Copenhagen, na Dinamarca. O evento, de realização trienal, é o mais importante foro de debates e atualizações sobre a arbitragem marítima.  Além de apresentar, à comunidade internacional da arbitragem marítima, o avançado estágio da arbitragem no Brasil, a delegação, formada por advogados, árbitros e professores brasileiros, conseguiu trazer para o Rio de Janeiro a edição seguinte do ICMA, realizado com sucesso em 2020.

A pandemia, inevitavelmente, paralisou algumas dessas iniciativas que, naquele momento, procuravam reverter esse quadro de desenvolvimento insuficiente, embora, paradoxalmente, esse mesmo período histórico tenha se caracterizado por uma grande desorganização no comércio marítimo mundial (e em todas as cadeias de produção e transporte) e, em consequência, por um aumento dos litígios nessa área.

Tais iniciativas, porém, começaram a frutificar em 2022, quando o maior player do mercado de afretamento de embarcações de apoio marítimo, introduziu em seus modelos de contratos as cláusulas arbitrais em centros brasileiros.  Outros fatores têm contribuído para um incremento das arbitragens marítimas. Pode-se então dizer, com alguma cautela, que a arbitragem marítima no Brasil vive um novo ciclo de crescimento, que merece ser celebrado.

Mas esse desenvolvimento deve se dar através de árbitros e câmaras especializados em arbitragem marítima?  Essa é a segunda reflexão que pretendo apresentar neste texto.

Coincidentemente, em 2022, pouco depois das notícias do parágrafo anterior, durante o Congresso de Direito Marítimo e Portuário da ABDM, realizado em Santos, tive a oportunidade de debater o tema da arbitragem marítima com grandes nomes, como Frederico Messias, Camila Mendes Vianna, Diogo Nolasco, Lilian Bertolani e Luis Claudio Faria. Naquela ocasião, me foi feita exatamente esta pergunta, sobre a necessidade ou conveniência de se ter uma especialização na arbitragem marítima.  Na coluna de 29/9/22 (Migalhas nº 5.447), publiquei um texto em que desenvolvia as respostas que proferi na ocasião. Confesso, desde logo, que minha opinião mudou, em parte, desde aquela época. A seguir, exponho minha visão atualizada sobre a questão, retomando em parte aquele texto, mas também fazendo algumas modificações que refletem essa mudança de opinião.

Inicialmente, é preciso separar a questão em duas: a especialização dos árbitros e a especialização das instituições (câmaras ou centros de arbitragem). As respostas a uma e outra questão não serão, necessariamente, idênticas.

O tema também necessita de alguma contextualização. No âmbito internacional, as disputas no âmbito marítimo são resolvidas predominantemente por arbitragem, o que é uma tradição de séculos, com instituições como a já referida LMAA, a SMA - Society of Maritime Arbitrators, New York e, mais recentemente, a SCMA - Singapore Chamber of Maritime Arbitration5, que apresentam números expressivos6. Como os próprios nomes indicam, são todos órgãos especializados em arbitragem marítima, que, obviamente, congregam árbitros especializados nessa matéria. Da mesma forma, nota-se que estes órgãos são estruturados como associações de árbitros, enquanto o Brasil segue um sistema diferente, em que há instituições arbitrais, geralmente inseridas em câmaras de comércio bilaterais ou multilaterais, ou suportadas por associações de setores econômicos.

As razões que levam a uma especialização na arbitragem marítima estão ligadas a peculiaridades próprias do setor marítimo.

Em primeiro lugar, as questões relativas à navegação e ao comércio marítimo são muito especializadas, demandando até mesmo um vocabulário próprio. É certo que outros setores, especialmente na infraestrutura, como mineração, petróleo e aviação, também apresentam grande especialização. Todavia, a especialização marítima vai além da atividade em si ou dos seus contratos peculiares, influenciando o próprio Direito Marítimo e a forma de raciocinar, interpretar as normas e decidir as lides. É já muito conhecida a história (infelizmente real) de um julgamento no Poder Judiciário em que os magistrados discutiam regras de preferência do código de trânsito ao tratar de uma abalroação entre navios.  O próprio conceito de "culpa", quando se trata de acidentes e fatos da navegação, demanda uma visão peculiar, diferente daquela a que nos habituamos no Direito Civil7.

Em segundo lugar, a internacionalização das lides é predominante no Direito Marítimo. As diferentes nacionalidades dos envolvidos - armadores, embarcadores, seguradores - e as diferentes "bandeiras"8 das embarcações são a situação mais comum nos litígios marítimos.  Assim, a determinação do foro e da lei aplicável é sempre o primeiro desafio na resolução de conflitos marítimos.  Daí porque a arbitragem é largamente utilizada nos contratos marítimos, por permitir a prévia definição do "foro" (na verdade, da sede da arbitragem) e da lei aplicável, além de outras questões práticas, como o idioma em que será realizada.

Em terceiro lugar, e como decorrência da própria internacionalização, há uma forte presença dos costumes no Direito Marítimo e, em consequência, na solução dos litígios nesse âmbito. De fato, quando diferentes partes de uma mesma relação jurídica estão sujeitas a diferentes ordenamentos, o costume se apresenta como solução eficiente para regular e harmonizar estas relações.

De tudo isso decorre, em quarto lugar, uma multiplicidade de fontes normativas - ordenamentos locais, costumes, tratados internacionais - incidindo na matéria.  Com o perdão pelo truísmo, a solução de disputas se dá pela aplicação das normas jurídicas aos fatos subjacentes ao litígio.  Se estas normas jurídicas vêm de fontes distintas e variadas, é essencial a vivência e experiência de quem vai aplicá-las na resolução da disputa. É quase intuitivo que um árbitro especializado terá melhores condições de lidar com essa multiplicidade de fontes que um árbitro não especializado e, por óbvio, muito mais ainda que um juiz estatal.

Os contratos marítimos, vale lembrar, são comumente padronizados, com modelos elaborados por entidades especializadas. A mais conhecida delas é a BIMCO - Baltic and International Maritime Council, fundada em 1905 e com sede em Copenhague, na Dinamarca.  Em decorrência de todos estes fatores até aqui listados, estes modelos já preveem instituições arbitrais específicas, geralmente as referidas acima. Assim, no exterior, a questão aqui trazida não gera debates, sendo mesmo natural a opção por centros especializados, que terão, do mesmo modo, árbitros especializados em Direito Marítimo.

Diante disso, no que tange aos árbitros, esta especialização tende a ser natural. Dada a presença, em listas dos principais centros brasileiros (e, obviamente, a possibilidade de escolha de árbitros fora das listas) de árbitros com especialização marítima, o mercado tenderá a se adaptar naturalmente, com a formação de tribunais arbitrais especializados, no âmbito de cada arbitragem, individualmente considerada.

Já no que concerne à especialização dos centros de arbitragem, a opinião que manifestei em 2022 demanda, agora, alguns ajustes e esclarecimentos.

O Brasil tem algumas experiências neste sentido, como a própria câmara de arbitragem da ABDM - Associação Brasileira de Direito Marítimo, já referida acima, o CBAM - Centro Brasileiro de Arbitragem Marítima e uma vice-presidência específica do CBMA - Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem para a área marítima.  A óbvia vantagem dos centros especializados está na possibilidade de editarem regulamentos e normas procedimentais que atendam às peculiaridades das arbitragens marítimas, inclusive por terem seus conselhos gestores formados por especialistas na matéria.

Estas iniciativas, embora importantes, não se desenvolveram como o esperado, não tendo estes órgãos administrado, ainda, um número significativo de arbitragens.  Mas é esperado que isso venha a ocorrer, como consequência natural do desenvolvimento da arbitragem marítima no Brasil. Para isso, porém, será necessário que o próprio mercado tenha maior desenvolvimento, e que os maiores players usem de seu peso econômico para incluir, nas minutas de contratos, a previsão de arbitragem, com a indicação de centros especializados.

No texto de 2022, apresentei a seguinte previsão: "o mais provável será a consolidação de árbitros marítimos especializados atuando em câmaras generalistas". Disse, ainda que "é possível até que, em algum momento, se tenha uma escassez de árbitros especializados para atender a um crescimento significativo da demanda".  Até que não fui tão mal como profeta, pois errei a primeira previsão e acertei a segunda. De fato, o crescimento de arbitragens marítimas vem revelando uma escassez de árbitros especializados (considerados, também, os naturais impedimentos que decorrem do fato de também serem poucos os escritórios de advocacia específicos), tornando necessário recrutar árbitros menos familiarizados com o tema para formar os tribunais trinos.

O erro quanto à primeira previsão (árbitros especializados em centros generalistas), todavia, acaba sendo uma boa notícia.  Isso porque, com o desenvolvimento da arbitragem marítima no Brasil, passamos do "ou" para o "e". Temos novos centros especializados se desenvolvendo e, ao mesmo tempo, os generalistas vêm editando regulamentos específicos para a arbitragem marítima.  Há demanda para todos.

Nesse contexto, várias são as boas notícias de 2025.

A ABDM acaba de aprovar a atualização das suas Regras de Arbitragem, que passaram, inclusive, a prever procedimentos específicos de arbitragem expedita para litígios sobre demurrage e detention.

Foi fundada, no Rio de Janeiro, a Câmara de Arbitragem Marítima, Portuária e do Comércio Exterior, que já nasce com a expertise de juízes do Tribunal Marítimo em seu quadro diretivo, e com regras atualizadas segundo as mais modernas práticas da arbitragem marítima.

Em São Paulo, a Câmara de Arbitragem CIESP/FIESP abriu consulta pública para seu novo regulamento de arbitragem marítima e portuária, em louvável iniciativa para ouvir a comunidade arbitral e marítima, de modo ter regras atualizadas e funcionais.

Como se percebe, a especialização da arbitragem marítima vem ocorrendo pelas duas vertentes: pela criação ou modernização de centros e câmaras especializados, e também pela maior atenção que os centros generalistas vêm dando ao setor marítimo, seja pela atualização ou criação de regras específicas, seja pela inclusão, em suas listas, de árbitros especializados na matéria.

Em suma, estamos num momento excelente do desenvolvimento e especialização da arbitragem marítima no Brasil, e o futuro aponta para momentos ainda melhores.

_________

1 Lei 9.307, de 23/9/1996 e lei 13.129, de 26/5/15

2 De modo bastante simplificado, essa regra significa que cabe ao tribunal arbitral, primeiramente, a definição de sua própria competência.

3 Cite-se, entre outros, os centros de arbitragem da Câmara de Comércio Brasil-Canadá (CAM-CCBC), da Câmara Americana de Comércio (AmCham), da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP) e o Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem (CBMA).

4 International Chamber of Commerce, com sede em Paris.

5 Merecem referência, também, como instituições emergentes, o Maritime Arbitration Group, da Hong Kong Ship Owners Association e o EMAC (Emirates Maritime Arbitration Centre).  A China, principal player do comércio internacional na atualidade, não poderia ficar para trás: em 30/07/2018, foi inaugurado, em Hainan, o segundo tribunal de arbitragem internacional daquele país, o qual, segundo informações oficiais, "estabelecerá um centro para arbitragem marítima e outro para arbitragem financeira" (Acesso em 11/08/2018).

6 Como bem apontou Luis Cláudio Furtado Faria, em 25/8/22, nesta mesma coluna: "Apenas a título de exemplo, de acordo com a London Maritime Arbitrators Association ("LMAA"), principal instituição da área no cenário internacional, em 2021, foram nomeados 2.777 árbitros para condução de arbitragens marítimas, além de terem sido proferidas 531 sentenças arbitrais. Muito embora tais números não reflitam o número de procedimentos efetivamente instaurados, eles indicam a expressividade do uso desse método de solução de disputas no âmbito global. A Câmara de Arbitragem Marítima de Singapura, por sua vez, que registrou 37 procedimentos arbitrais ao longo de 2021 e a Comissão Chinesa de Arbitragem Marítima registrou 110 casos no ano de 2020."

7 Como exemplo, uma das mais conhecidas diretrizes na análise de acidentes da navegação - pouco compreensível para o leigo - é a last clear chance, segundo a qual a embarcação "certa", ou seja, aquela que não tem a obrigação de manobrar naquela situação, deve fazê-lo se, no último momento em que ainda seja possível evitar a abalroação, a embarcação "errada" (aquela que tem a obrigação de manobrar na hipótese) não o fizer. O descumprimento desta regra pode levar, em certas circunstâncias, a uma distribuição, entre as embarcações, da responsabilidade pelo acidente, com uma parcela, mesmo menor, sendo atribuída a quem "tinha razão".

8 Sobre o conceito de "bandeira" do navio, remeto o leitor aos textos publicados nas colunas de 8 e 15/5/25.