O afretamento de embarcações e a Reforma Tributária: Os impactos do IBS e da CBS para a indústria de óleo e gás
quarta-feira, 30 de abril de 2025
Atualizado em 29 de abril de 2025 14:30
A Emenda Constitucional 132/23 ("EC 132/2023") e a Lei Complementar 214/25 ("LC 214/2025") instituíram uma profunda reforma na tributação sobre o consumo no Brasil. Entre outras mudanças, a reforma substituirá tributos como ICMS, ISS, PIS e COFINS pelo Imposto sobre Bens e Serviços ("IBS") e pela Contribuição sobre Bens e Serviços ("CBS"), ambos estruturados no modelo de imposto sobre valor agregado ("IVA"), inspirado nas experiências europeias e em outros países ao redor do mundo.
Um dos pontos mais sensíveis para o setor marítimo, especialmente aquele relacionado à cadeia econômica de exploração e produção de petróleo e gás, é o impacto dessas mudanças sobre os contratos de afretamento de embarcações.
No regime atual, os contratos de afretamento - seja a casco nu, por tempo ou por viagem - não devem ser tributados por ICMS ou ISS, conforme reconhecido pelo STF, na ADI 2779, e pelo STJ, no EREsp 1.054.144.
A jurisprudência tem entendido que nos contratos de afretamento em geral, definidos no artigo 2º da lei 9.432/1997, verifica-se, predominantemente, uma obrigação de dar, semelhante a existente nos contratos de locação, por meio do qual a embarcação fretada é disponibilizada para o afretador.
Assim, não há uma transferência mercantil da propriedade da embarcação ou a prestação de um serviço previsto na lista anexa de serviços da LC 116/03. Isso tem afastado a tributação desses contratos tanto pelo ICMS, quanto pelo ISS.
Mesmo quando se verificam outras obrigações no contrato de afretamento, além da disponibilização da embarcação, como no caso do fornecimento da mão de obra da tripulação ou mesmo da manutenção da embarcação, não há fato gerador do ICMS e do ISS. O contrato de afretamento é uno e incindível, não podendo ser mutilado para fins tributários.
Todavia, o espectro de incidência do IBS e da CBS é muito mais amplo, e essa abrangência tem suscitado algumas dúvidas sobre a incidência desses novos tributos sobre os contratos de afretamento.
A EC 132/23 alterou a Constituição de 1988 e incluiu o artigo 156-A, que confere competência ao legislador complementar para instituir um imposto sobre bens e serviços de competência compartilhada entre Estados, Distrito Federal e Municípios, estipulando que esse tributo "incidirá sobre operações com bens materiais ou imateriais, inclusive direitos, ou com serviços" e também sobre a "importação de bens materiais ou imateriais, inclusive direitos ou de serviços realizados por pessoa física ou jurídica, ainda que não seja sujeito passivo habitual do imposto, qualquer que seja a sua finalidade".
A LC 214/25, em seu artigo 4º, estabelece a incidência do IBS e da CBS sobre operações onerosas com bens ou serviços, incluindo, expressamente, a locação.
Isso tem gerado dúvidas quanto à extensão desses tributos, levando alguns a concluir, de forma apressada, que o afretamento estaria automaticamente sujeito aos novos tributos.
A resposta a essa questão, entretanto, exige análise mais cuidadosa, guiada pelas normas constitucionais e legais que regem a nova tributação, notadamente levando em conta as particularidades dos contratos de afretamento.
Em linhas gerais, na indústria do petróleo e gás, os contratos de afretamento são celebrados entre empresas fretadoras brasileiras e armadores estrangeiros. O ingresso desses bens no Brasil se faz sob o amparo do Regime Aduaneiro Especial de Exportação e Importação de Bens Destinados às Atividades de Pesquisa e Lavra das Jazidas de Petróleo e de Gás Natural ("Repetro"), que admite diferentes modalidades de importação ou de admissão temporária de bens com suspensão de tributos.
A legislação do Repetro atualmente em vigor suspende tributos como II, IPI, PIS/COFINS-Importação e o ICMS em casos de afretamentos de embarcações específicas, que ingressam temporariamente no país, e são destinadas às atividades de exploração de petróleo e gás.
Pelo texto da nova legislação, em especial o artigo 93 da LC 214/25, o IBS e a CBS também estarão suspensos na hipótese em que a lei denomina de "importação de bens destinados às atividades de exploração, de desenvolvimento e de produção de petróleo, de gás natural e de outros hidrocarbonetos fluidos previstas na legislação específica, cuja permanência no País seja de natureza temporária, constantes de relação especificada no regulamento".
Essa disposição legal cumpre o mandamento constitucional do artigo 156, § 5º, VI, que trata da necessidade da lei complementar dispor sobre diferimento e desoneração do imposto aplicáveis aos regimes aduaneiros especiais.
Assim, em princípio, embarcações afretadas no exterior que atualmente ingressam no país sob o regime do Repetro, conhecidos no jargão do mercado como "bens repetráveis", também poderão ingressar em território nacional e aqui operar com suspensão de IBS e de CBS, a partir do momento em que esses tributos começarem a vigorar.
Esse tratamento diferenciado evita um enorme impacto que a reforma tributária poderia ter sobre o setor. O Repetro é fundamental para a manutenção das atividades de exploração e lavra de petróleo no País e para garantir nossa segurança energética. Trata-se de uma indústria que demanda investimentos bilionários e de alto risco. A tributação elevada de CBS e IBS poderia funcionar como uma barreira alfandegária intransponível para o ingresso de bens em valores bilionários como plataformas de petróleo e navios-sonda no país.
Em tese, caberá ao regulamento listar esses "bens repetráveis". Na nossa visão, por força do princípio da legalidade tributária, que, por ser garantia fundamental, não foi, nem poderia ser flexibilizado pela reforma tributária, a função do regulamento é puramente expletiva. Isto é, evidenciar e dar publicidade sobre os bens que são importados com essa finalidade e devem ser objeto de suspensão desses tributos. O regulamento não poderia criar nem restringir o tratamento tributário previsto na lei.
Logo, os bens, em especial as embarcações afretadas e utilizadas nessas atividades, devem necessariamente estar sujeitos à suspensão do IBS e CBS, não havendo incidência desses tributos no caso desses afretamentos.
No caso de outros afretamentos internacionais de bens que não se qualifiquem como "repetráveis", poderá haver algum tipo de controvérsia sobre a incidência desses tributos. No entanto, em se tratando de contratos internacionais de afretamento para uso temporário de embarcações no país, é de se cogitar o próprio cabimento da cobrança de IBS e CBS.
Isso porque a CF/1988 prevê que, em operações realizadas no plano internacional, o IBS e a CBS incidem no caso de "importação" de bens. Todavia, o contrato de afretamento não se qualifica juridicamente como uma importação de bem, já que o bem não ingressa em definitivo no território e na economia nacional, sendo apenas utilizado pelo fretador durante a vigência do contrato de afretamento. Não há, tecnicamente, "importação" do bem, no sentido constitucional do termo, a atrair a incidência desses tributos sobre o consumo.
A questão da tributação desses contratos internacionais de afretamento é, aliás, um tema frequentemente debatido no Direito Tributário Internacional. A própria Diretiva IVA que trata do afretamento de navios que navegam em águas internacionais estabelece a isenção de IVA no transporte internacional, havendo, inclusive, precedentes do Tribunal de Justiça Europeu sobre controvérsias na aplicação dessa norma comunitária.
A reforma tributária tem por premissa racionalizar e simplificar a tributação no Brasil, sem implicar o aumento da carga tributária. Por isso, por mais que se verifique uma ampliação do espectro dos tributos atualmente em vigor, como o IBS e CBS, isso não significa necessariamente uma tributação sobre os contratos de afretamento. Existem particularidades nesses contratos e nas normas que disciplinam esses tributos, de tal sorte que essas atividades essenciais para a exploração e produção de petróleo e gás deveriam, a rigor, seguir desoneradas também desses novos tributos.