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Navegando por mares Jurisprudenciais: Parte XIV - Eleição de Foro

quinta-feira, 25 de setembro de 2025

Atualizado em 24 de setembro de 2025 10:11

O Direito Marítimo é especial. É um ramo autônomo do Direito que disciplina operações relacionadas ao transporte marítimo, de cargas ou passageiros, englobando atividades que, como visto, mesmo nos mais difíceis tempos de pandemia, não podem jamais parar.

Internacional por natureza e, ao mesmo tempo, vital ao nosso país e ao nosso cotidiano, ainda que por vezes isso possa passar despercebido pelo cidadão comum.

Diante de tamanha relevância, buscaremos desenvolver uma coletânea de artigos dedicados a tratar os mais diversos aspectos de Direito Marítimo, à luz da Jurisprudência dos Tribunais brasileiros, abordando tópicos de Direito Marítimo retratados na obra de "Jurisprudência Marítima"1 e enfrentados em lides forenses, denotando a complexidade e especialização da matéria.

O presente artigo tem por escopo examinar a aplicação e o reconhecimento da cláusula de eleição de foro nos contratos de transporte marítimo internacional, com especial atenção à postura adotada pelo Poder Judiciário brasileiro diante de sua invocação. Parte-se do pressuposto de que, uma vez regularmente estipulada entre partes envolvidas em atividades de natureza empresarial, a cláusula de eleição de foro constitui manifestação legítima da autonomia privada e, como tal, deve ser respeitada, afastando-se a competência da jurisdição nacional para apreciar e decidir controvérsias.

Tal análise revela-se relevante diante da crescente judicialização de litígios no setor marítimo, nos quais se observa, por vezes, a tentativa de desconsiderar pactos livremente firmados, em afronta aos princípios da segurança jurídica, da boa-fé objetiva e da previsibilidade nas relações contratuais de caráter internacional.

Os Tribunais Brasileiros tem reiteradamente reconhecido a validade e a eficácia da cláusula de eleição de foro em contratos internacionais de transporte marítimo, desde que pactuada de forma expressa e inequívoca entre as partes. Nesse contexto, os tribunais nacionais tem afastado a competência da Justiça brasileira quando constatam a existência de cláusula de eleição de foro estrangeiro, ressalvadas situações excepcionais em que se discuta matéria de ordem pública ou em que reste demonstrada manifesta abusividade. A orientação predominante, contudo, é no sentido de que o Judiciário não detém poder para revisar ou invalidar cláusulas livremente estipuladas em contratos internacionais de transporte marítimo, devendo prevalecer o foro escolhido.

Essa postura reforça a inserção do Brasil no cenário jurídico global, alinhando-se aos princípios da cooperação internacional e da confiança mútua entre jurisdições e propiciando segurança jurídica aos contratos internacionais.

Com o intuito de evidenciar as implicações práticas do tema e contribuir para o debate em torno da eficácia da cláusula de eleição de foro, este estudo se debruçará sobre dois precedentes paradigmáticos. A partir da análise crítica dessas decisões, será possível compreender os fundamentos que têm orientado o Judiciário brasileiro na aceitação ou relativização da autonomia da vontade das partes, bem como avaliar os reflexos dessas orientações na previsibilidade contratual e no desenvolvimento do direito marítimo internacional no país.

Primeiro Julgado:

TRANSPORTE MARÍTIMO DE MERCADORIAS (...) RECURSO DA TRANSPORTADORA Cláusula de eleição de foro internacional Inteligência do art. 25 do CPC Autonomia privada das partes contratantes em sede de contrato interempresarial Insuficiência da presença de alguma dentre as situações previstas nos incisos do art. 21 do diploma processual civil Abusividade não constatada Natureza de contrato de adesão, que não impede o reconhecimento da validade da cláusula, porquanto inexistente dúvida acerca de seus termos Inteligência do art. 423 do CC Incompetência da justiça brasileira para decidir quaisquer questões referentes ao contrato de transporte entre comerciante e transportador (...) Sentença reformada Extinção do feito, sem resolução do mérito, em relação aos pedidos relacionados às avarias e extravio da carga transportada (...).

(TJ/SP; Apelação 1132287-71.2018.8.26.0100; 11ª Câmara de Direito Privado do Tribunal; Rel. Marco Fábio Morsello; J. 3/10/2019)

Segundo Julgado:

(...) Cabe, ao início, destacar o teor da súmula 335, do STF, ao dizer que "é válida a cláusula de eleição do foro para os processos oriundos do contrato". O contrato de transporte marítimo internacional possui cláusula de eleição de foro estrangeiro com a ressalva de que nenhuma ação poderia ser ajuizada perante qualquer outro juízo. E, embora a parte autora impugne a tradução do conhecimento de embarque juntada pela ré (fls. 179/191), deixou de juntar a tradução que considera correta, embora regularmente intimada para este fim (fls. 238). Portanto, considera-se válida a tradução apresentada pela requerida. Dessa forma, a opção dos contratantes foi pela exclusão da jurisdição brasileira. Importante dizer que a hipótese dos autos não envolve qualquer interesse público ou direito indisponível. Penso, portanto, que aqui descabe analisar qualquer uma das regras de competência da Justiça Brasileira, porquanto as Partes, livremente, fizeram a opção pela jurisdição internacional. Digo isso, porque não importa que se trate o território nacional do local do cumprimento da obrigação ou mesmo local do fato, na medida em que as Partes do contrato, antecipadamente, deliberaram por abdicar das regras de competência da Justiça Brasileira, firmando contrato com a fixação de cláusula de eleição de foro internacional de modo exclusivo. Ora, se as Partes contratantes, em juízo pleno de cognição quanto aos riscos e efeitos da cláusula de eleição de foro internacional, ausentes qualquer situação de vulnerabilidade na relação entre elas, optaram pela sua inclusão no contrato, descabe a intervenção do Poder Judiciário quanto à sua modificação. A intervenção do Poder Judiciário na relação contratual celebrada entre Partes em posição de igualdade, acostumadas às peculiaridades do transporte marítimo internacional, não tratando o fato de questão de interesse público ou de direito indisponível, significaria desequilibrar a balança da Justiça, afetando até mesmo as condições que precificaram o custo do serviço. A Parte busca o que chamo de "Estado Babá", ou seja, que o Poder Judiciário, representante do Poder Estatal, lhe pegue no colo quando os seus interesses foram contrariados, pois que, bom que se diga, quando os efeitos do contrato lhe são favoráveis, não busca o mesmo socorro, chegando mesmo a enaltecer a sua validade. Cabe afirmar, ainda, que na relação contratual do transporte marítimo, a envolver vários atores ligados pelo mesmo contrato base, ausente situação de vulnerabilidade, impõe-se a sujeição de todos aos seus efeitos, sob pena de comprometimento de toda a lógica do transporte marítimo internacional. (...) No âmbito do TJ/SP, confira-se: Exceção de incompetência - cláusula de eleição de foro - contrato regido pelas leis do Estado de Utah/EUA - incidência do art. 25 do CPC - ausência de abusividade competência exclusiva da autoridade judicial estrangeira reconhecida - ação julgada extinta - sentença mantida - recurso improvido.

(Apelação 0037723- 25.2015.8.26.0100 (...). (TJ/SP, Processo 1019444-96.2022.8.26.0562, Frederico dos Santos Messias, 4ª Vara Cível do Foro de Santos, DJ 7/12/2022)

No primeiro caso, o acórdão do TJ/SP reafirma a autonomia privada em contratos interempresariais, especialmente em operações de transporte marítimo internacional, ao validar a cláusula de eleição de foro estrangeiro. A decisão prestigia o art. 25 do CPC e reconhece que, quando as partes são empresas de grande porte e atuação global, não há que se falar em hipossuficiência ou vulnerabilidade que autorize a intervenção do Judiciário brasileiro para afastar a vontade expressa no contrato.

Trata-se de aplicação direta dos princípios da força obrigatória dos contratos e da liberdade de contratar, essenciais para assegurar a segurança jurídica em relações de alta complexidade econômica.

Outro ponto relevante é a rejeição da alegação de que o contrato seria de adesão. Ainda que o julgado não tenha tratado especificamente de instrumentos baseados em modelos da BIMCO, o afastamento dessa caracterização suscita uma reflexão importante: na prática internacional de transporte marítimo, é comum o uso de formulários padrão elaborados por entidades como a BIMCO.

Esses modelos - reconhecidos por oferecer dezenas de formulários que podem ser livremente combinados e ajustados - não se equiparam, por si só, a contratos de adesão quando as partes, ambas experientes e de capacidade econômica equivalente, optam dentre múltiplas opções disponíveis.

O segundo julgado em análise reafirma, com clareza, a força normativa da cláusula de eleição de foro em contratos de transporte marítimo internacional, alinhando-se ao teor da súmula 335 do STF. A decisão evidencia que, havendo convenção expressa no contrato entre as partes e inexistindo elementos de vulnerabilidade ou matéria de ordem pública, o Poder Judiciário brasileiro deve reconhecer a competência exclusiva da jurisdição estrangeira eleita, ainda que o território nacional fosse, em tese, o local de cumprimento da obrigação ou do fato.

A jurisprudência se destaca ao trazer para sua fundamentação o conceito de "Estado Babá" correlacionado com a ideia de que não cabe ao Estado suprir a vontade da parte contratante apenas quando os efeitos contratuais lhe são desfavoráveis. Este brilhante entendimento revela uma postura de valorização da boa-fé objetiva e da coerência nas relações contratuais empresariais e reforça a liberdade de contratar das partes, propiciando, consequentemente, segurança jurídica aos negócios.

Para além, a decisão ressalta que o contrato de transporte marítimo internacional, por envolver múltiplos atores e interesses interdependentes, não comporta o tratamento assimétrico característico de relações de consumo e, ainda, fortalece a autonomia privada e prestigia a previsibilidade negocial, especialmente em setores complexos como o do transporte marítimo, nos quais os custos e condições contratuais são diretamente influenciados pela estabilidade das regras pactuadas.

Desse modo, a opção pela jurisdição estrangeira prevista no contrato deve prevalecer, sob pena de comprometer a lógica do comércio marítimo global e a autonomia das partes contratantes.

Os julgados mencionados, assim como diversos outros envolvendo temas relacionados, estão disponíveis no livro de Jurisprudência Marítima, que reúne diversos acórdãos de grande relevância para o direito marítimo.

Para acessar o livro, basta clicar aqui.

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1 Disponível aqui.