Navegando por mares Jurisprudenciais: Parte XIII - Demurrage
quinta-feira, 21 de agosto de 2025
Atualizado em 20 de agosto de 2025 09:06
O Direito Marítimo é especial. É um ramo autônomo do Direito que disciplina operações relacionadas ao transporte marítimo, de cargas ou passageiros, englobando atividades que, como visto, mesmo nos mais difíceis tempos de pandemia, não podem jamais parar.
Internacional por natureza e, ao mesmo tempo, vital ao nosso país e ao nosso cotidiano, ainda que por vezes isso possa passar despercebido pelo cidadão comum.
Diante de tamanha relevância, buscaremos desenvolver uma coletânea de artigos dedicados a tratar os mais diversos aspectos de Direito Marítimo, à luz da Jurisprudência dos Tribunais brasileiros, abordando tópicos de Direito Marítimo retratados na obra de "Jurisprudência Marítima"1 e enfrentados em lides forenses, denotando a complexidade e especialização da matéria.
Neste artigo, abordaremos o tema da sobre-estadia de contêineres, também conhecido como "demurrage" no contexto do transporte marítimo, explorando especialmente o conceito e a base legal para a cobrança. Para melhor compreensão do tema, serão apresentados dois casos práticos, proporcionando uma análise mais concreta e minuciosa.
A sobre-estadia de contêiner (demurrage) vem a ser a expressão consagrada no ramo de comércio internacional para designar a remuneração devida ao transportador marítimo pela não devolução do seu equipamento no prazo de utilização contratualmente estipulado, até porque, como já visto em artigo anteriormente publicado nesta coluna2, "o contêiner não deve ser confundido como embalagem da mercadoria. Ele é, na verdade, um equipamento próprio, acessório do navio, utilizado para a unitização de cargas" e, assim, deve ser devolvido ao transportador no prazo ajustado, para que retorne à logística do transporte.
Demurrage é uma palavra oriunda do francês que significa estadia. O conceito de demurrage de contêineres surgiu da própria ideia de demurrage de navios, sendo que ambos, embora distintos, utilizam a mesma terminologia, tendo em comum entre si a extrapolação do prazo.
A sobre-estadia de contêineres sempre irá envolver e derivar de um contrato de transporte marítimo (Bill of Lading), o qual engloba o embarcador, o transportador marítimo e o consignatário.
Após o término do transporte marítimo, o consignatário da mercadoria possui um período de tempo, denominado 'free-time', para desunitizar o contêiner e devolvê-lo à transportadora marítima. Excedido o prazo sem que o contêiner tenha sido devolvido ao transportador, este terá direito à cobrança de uma taxa diária de sobre-estadia ou demurrage em face do consignatário, cobrança esta que possui lastro contratual e natureza de indenização prefixada em razão de indevida retenção do contêiner por prazo excedente ao lapso do 'free time'.
Logo, é o Conhecimento de Embarque o fundamento jurídico da cobrança da demurrage, valor devido pelo destinatário, embarcador ou consignatário do contêiner - solidariamente - por dia de retenção do contêiner além do prazo contratado entre as partes.
Por consectário lógico, o Conhecimento de Transporte, como contrato, é lei entre as partes, obrigando-as ao cumprimento de suas obrigações.
Muito embora tenha origem em um contrato de transporte, a jurisprudência pátria vem mitigando o caráter originariamente contratual, vez que tal cobrança está incorporada aos usos e costumes do transporte marítimo, sendo defeso aos usuários alegarem desconhecimento acerca da cobrança, em caso de atraso na devolução dos equipamentos que lhe foram confiados para transporte de suas cargas, até porque não seria crível admitir a sua utilização por prazo indeterminado sem qualquer ônus.
Importante destacar que a responsabilidade pela devolução do contêiner não se afasta mesmo diante de situações como greve/paralisações da Receita Federal ou entraves alfandegários. A jurisprudência tem reiterado que tais eventos são previsíveis e inerentes à atividade empresarial dos importadores, não caracterizando caso fortuito ou força maior.
Nos termos do art. 393 do CC, o devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado. No entanto, a doutrina majoritária e a jurisprudência têm destacado que, para a configuração do caso fortuito ou força maior, exige-se imprevisibilidade e inevitabilidade do evento. Além disso, é fundamental distinguir o evento externo do risco próprio da atividade desempenhada.
Portanto, eventual paralisação ou entraves aduaneiros, embora possam impactar os fluxos logísticos, são considerados eventos previsíveis e cíclicos, especialmente no setor de comércio exterior. Sendo assim, a sua ocorrência não exime a obrigação de devolver o contêiner no prazo pactuado, tampouco afasta a incidência da demurrage.
Feitas estas considerações iniciais, passaremos a analisar dois julgados constantes no livro de Jurisprudência Marítima, os quais tratam sobre a legalidade da cobrança de sobre-estadia por parte do Transportador Marítimo.
Primeiro Julgado:
Cobrança - Transporte - Demurrage - Sobreestadia de contêiner - Inaplicabilidade do CDC - Inexistência de relação de consumo, mas contrato de transporte celebrado com a transportadora com o nítido escopo de incrementar a atividade comercial da requerida, afastando a incidência da lei 8.078/1990 - Ré revel - Utilização de contêiner por prazo superior ao período livre avençado - Valor devido em razão de sobreestadia, por constar expressamente do termo de responsabilidade de devolução de conteiner - Natureza jurídica da sobreestadia que não é de cláusula penal, mas de indenização fixada em razão de indevida retenção do contêiner, por prazo excedente ao lapso do tempo livre ou free time - Inexistência de abusividade das taxas de sobreestadia - Burocracia alfandegária não caracteriza hipótese de caso fortuito ou força maior - Sentença reformada - Recurso provido.
(TJ/SP, Apelação 0021433-43.2011.8.26.0562, des. Relator Francisco Giaquinto, 13ª Câmara de Direito Privado, j. 7/11/2017)
Segundo Julgado:
AÇÃO DE COBRANÇA- SOBREESTADIAS CONTAINER- CONTRATO TRANSPORTE MARÍTIMO - "Demurrage" - Taxa de sobreestadia, em razão de atraso na devolução de "container" - Despesa que deve ser suportada pela apelante - Pessoa que consta como CONSIGNATÁRIA no Conhecimento de embarque (B/L) - Cobrança que tem início desde o primeiro dia após transcorrido o período de "free time" - Assinatura do termo de responsabilidade em data posterior a devolução dos contêineres - Irrelevância - Tendo aderido e aceito o contrato de transporte, quando recebeu as mercadorias, a apelante sujeitou-se aos direitos e obrigações nele inseridos - Cobrança procedente - Conversão da moeda estrangeira deve ser realizada na data do pagamento (STJ) - Recurso não provido.
(TJ/SP; Apelação 1002968-79.2020.8.26.0100, des. Ana De Lourdes Coutinho Silva Da Fonseca, 13ª Câmara de Direito Privado; j.12/5/2021)
Pode-se observar que, no primeiro julgado, proferido pelo TJ/SP, restou fundamentado que a burocracia para o desembaraço aduaneiro é situação absolutamente previsível e própria da atividade empresarial desenvolvida pela ré, não podendo ser considerada caso fortuito ou força maior.
O acórdão destaca ainda que a alegação de problemas portuários e burocracia alfandegária não tem o condão de afastar a cobrança da taxa de sobre-estadia e que, não ocorrendo a restituição do contêiner no prazo livre, incidirá a remuneração pelas sobre-estadias, até a data da efetiva devolução do cofre de carga.
Dessa forma, o entendimento firmado é no sentido de que a sobre-estadia de contêineres é devida pela privação do uso do equipamento, indenizando a proprietária por ter sido privada de utilizar seu contêiner em operações logísticas a terceiros, incorrendo em custos logísticos que envolvem toda a programação de disponibilidade de contêiners, frotas de navios e cargas em determinado porto. Afinal, dentro das operações logísticas de um transportador, se 100 contêiners chegam a determinado porto de destino, a transportadora conta com os mesmos 100 contêineres estando disponíveis, depois do prazo contratualmente avençado, para operação de outras cargas que serão embarcadas naquele porto. Se faltam contêineres, a logística passa a onerar o transportador e causar outros prejuízos, razão pela qual os valores diários em caso de sobre-estadia do contêiner com o proprietário da carga são previamente ajustados dentro da relação contratual e usualmente empregados nas práticas de mercado.
O segundo julgado, por sua vez, também oriundo do TJ/SP, afirma a responsabilidade da parte que figura como consignatária no Conhecimento de Transporte Marítimo quanto às verbas de sobre-estadia de contêiner geradas em razão da devolução extemporânea da unidade.
Isto porque, de acordo com a praxe marítima, a emissão do Conhecimento de Transporte Marítimo (Bill of Lading), contendo as cláusulas que regerão o transporte contratado, ocorre por ocasião do embarque das mercadorias, no porto de origem. Este contrato é, então, emitido em no mínimo 3 (três) vias, uma das quais é entregue ao embarcador, a segunda ao transportador marítimo, e a terceira via é remetida ao consignatário, para que este possa, mediante a apresentação de sua via original, receber a carga no porto de destino e instruir a respectiva Declaração de Importação.
Assim, mediante a apresentação do Conhecimento de Embarque no porto de destino, a consignatária das mercadorias comprova sua titularidade sobre a carga e adere ao contrato, anuindo quanto aos termos e condições do contrato de transporte, resultando na sua manifesta condição de parte legítima para responder pelas obrigações derivadas da não devolução do contêiner no prazo convencionado com o transportador marítimo.
Desta forma, é possível observar que os julgados apresentados acima ilustram o posicionamento firme, não apenas do TJ/SP, mas das Cortes pátrias como um todo, quanto à responsabilidade contratual da consignatária das mercadorias pela devolução tempestiva dos contêineres ao transportador marítimo e, inobservado este prazo, pelo pagamento das sobre-estadias de contêineres (demurrage) calculadas a cada dia de retenção dos cofres de carga.
Os julgados mencionados, assim como diversos outros envolvendo temas relacionados, estão disponíveis no livro de Jurisprudência Marítima, que reúne diversos acórdãos de grande relevância para o direito marítimo.
Para acessar o livro, basta clicar aqui.
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1 Disponível aqui.
2 Disponível aqui.