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Navegando por mares jurisprudenciais: Parte XV - Decadência por falta de protesto

sexta-feira, 3 de outubro de 2025

Atualizado em 2 de outubro de 2025 08:43

O Direito Marítimo é especial. É um ramo autônomo do Direito que disciplina operações relacionadas ao transporte marítimo, de cargas ou passageiros, englobando atividades que, como visto, mesmo nos mais difíceis tempos de pandemia, não podem jamais parar.

Internacional por natureza e, ao mesmo tempo, vital ao nosso país e ao nosso cotidiano, ainda que por vezes isso possa passar despercebido pelo cidadão comum.

Diante de tamanha relevância, buscaremos desenvolver uma coletânea de artigos dedicados a tratar os mais diversos aspectos de Direito Marítimo, à luz da Jurisprudência dos Tribunais Brasileiros, abordando tópicos de Direito Marítimo retratados na obra de "Jurisprudência Marítima"1 e enfrentados em lides forenses, denotando a complexidade e especialização da matéria

No transporte marítimo internacional, cada detalhe pode definir o rumo de uma disputa. Entre eles, o protesto por avaria, previsto no art. 754 do CC, ocupa lugar central. A regra é clara: o destinatário da carga tem dez dias para reclamar eventuais danos, sob pena de decadência. Passado esse prazo, o direito simplesmente se extingue, como se tivesse sido tragado pelo mar. O presente artigo tem por escopo examinar a ausência de protesto e aplicação da decadência transporte marítimo internacional, com especial atenção à postura adotada pelo Poder Judiciário brasileiro diante de seu dispositivo.

O parágrafo único do art. 754 dispõe:

"Art. 754. As mercadorias devem ser entregues ao destinatário, ou a quem apresentar o conhecimento endossado, devendo aquele que as receber conferi-las e apresentar as reclamações que tiver, sob pena de decadência de direitos.

Parágrafo único. No caso de perda parcial ou de avaria não perceptível à primeira vista, o destinatário conserva a sua ação contra o transportador, desde que denuncie o dano em 10 (dez) dias a contar da entrega."

Essa exigência, que pode parecer formalismo, tem objetivo concreto: preservar a estabilidade das relações comerciais, evitando que o transportador fique indefinidamente exposto a pleitos indenizatórios e esvaziando os meios de produção e preservação de prova. O protesto funciona como aviso imediato, permitindo que a parte responsável apure os fatos ainda recentes, com elementos probatórios preservados, avaliando a natureza, causa e extensão de eventuais avarias. Trata-se de requisito essencial para a conservação de eventual direito indenizatório, garantindo ampla defesa e contraditório às partes interessadas na regulação de eventuais danos e prejuízos. Aliás, eventuais vistorias conjuntas que venham a ser realizadas após a efetivação de um protesto por avarias podem, inclusive, se mostrar úteis para prevenir litígios, pois uma vez que se possibilita a apuração por ambas as partes, e eventualmente essas podem atingir uma composição e evitar um litígio judicial.

O início do prazo decadencial se dá com a entrega da carga, que no transporte marítimo ocorre em regra no momento da descarga do contêiner no terminal, especialmente no transporte porto a porto, encerrando a responsabilidade da transportadora, conforme art. 3º do decreto-lei 116/1967:

Art. 3º A responsabilidade do navio ou embarcação transportadora começa com o recebimento da mercadoria a bordo, e cessa com a sua entrega à entidade portuária ou trapiche municipal, no porto de destino, ao costado do navio.

§ 2º As mercadorias a serem descarregadas do navio por aparelhos da entidade portuária ou trapiche municipal ou sob sua conta, consideram-se efetivamente entregues a essa última, desde o início da Iingada do içamento, dentro da embarcação.

§3º do art. 1º do decreto-lei 116/1967 afirma que os volumes em falta, avariados ou sem embalagem ou embalagem inadequada ao transporte por água, serão desde logo ressalvados pelo recebedor, e vistoriados no ato da entrega, na presença dos interessados.

O decreto-lei ainda prevê que volumes em falta, avariados ou com embalagem inadequada devem ser ressalvados e vistoriados no ato da entrega, na presença dos interessados. Portanto, a apresentação do protesto em até dez dias após o descarregamento é condição para manter o direito de ressarcimento do consignatário. A não observância desse prazo implica a decadência do direito.

Nesse sentido, Maria Helena Diniz2 destaca:

"Protesto necessário junto ao transportador. O consignatário, ou destinatário, deverá, então, conferi-la, apresentando, sob pena de decadência, tempestivamente, as devidas reclamações. O destinatário tem, portanto, o direito de acionar o transportador, ao receber mercadoria cuja perda parcial ou avaria não pôde ser verificada, em razão de não ser perceptível à primeira vista, contanto que o faça dentro do prazo decadencial de dez dias, contados da data da entrega (vide: RT, 711:226; 7]RS, Ap. Cível 70.019.145.804, 12 Câm., rei. des. Cláudio B. Maciel, j. 30/8/2007)."

Uma vez demonstrado que a parte que pretende obter o ressarcimento não observou o prazo decadencial, o direito à indenização pela suposta avaria à carga encontra-se caduco, por força do parágrafo único do art. 754 do CC. Consequentemente, conclui-se que a empresa tenta obter um suposto direito que já se encontra extinto.

A jurisprudência tem reiterado esse entendimento com firmeza. Em diversas ocasiões, os tribunais afastaram ações regressivas ou pedidos de ressarcimento por não ter sido observado o protesto no prazo legal.

Primeiro Julgado:

APELAÇÃO CÍVEL. Transporte marítimo internacional. Sentença que julgou extinto o processo, com resolução do mérito, pela decadência. Insurgência da autora. Inadmissibilidade. Decadência. Ocorrência. Perda parcial da carga. Protesto não realizado pela requerente no prazo decadencial de dez dias previsto no parágrafo único do art. 754 do CC. Caso concreto em que, conforme bem reconhecido pelo D. Juízo de Origem: "o documento de fls . 70/78, denominado "Statement of Facts", não se presta a tal fim, até mesmo em razão da pequena perda apurada naquele momento, de, aproximadamente, 0.3% da carga total manifestada, o que poderia caracterizar, a princípio, quebra natural da carga. Dessa forma, o protesto se mostrava, realmente, imprescindível para a preservação do direito da requerente". Sentença mantida. Recurso não provido.

(TJ/SP - Apelação Cível: 10257877420238260562 Santos, Relator.: Helio Faria, Data de Julgamento: 22/07/2024, 18ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 22/7/2024)

Segundo Julgado:

AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS - Transporte Marítimo de Carga - Avarias - Improcedência, ante a decretação da decadência do direito, na medida em que a autora não apresentou o protesto, no prazo de 10 dias da entrega das mercadorias - Extinção do processo, nos termos do art. 487, II, do CPC - Apelo da autora, visando afastar a decadência - Inadmissibilidade - Hipótese em que a autora apresentou protesto após um ano da descarga da mercadoria - Decadência bem decretada - Aplicação do disposto no art. 754, parágrafo único, do CC - A lei prevê a necessidade de imediata notificação em caso de avaria perceptível no ato da entrega ou, quando se tratar de avaria imperceptível de imediato, no prazo de dez dias, contados da entrega do produto - Autora que percebeu, desde logo, a ocorrência de avaria, ao analisar o relatório final da Termag e o Mapa de Rateio, e constatar diferença de pesagem na carga entre embarque e desembarque, mas não denunciou ao transportador, deixando ocorrer a decadência - Precedente desta Corte - Sentença mantida - RECURSO DESPROVIDO.

(TJ/SP - AC: 10267918320228260562 Santos, Relator.: Ramon Mateo Júnior, Data de Julgamento: 07/11/2023, 15ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 07/11/2023)

Importante destacar que o prazo decadencial pode começar a correr a partir da efetiva constatação do dano, e não necessariamente da entrega ou nacionalização da carga. O CC estabelece que, havendo avarias visíveis, a reclamação deve ser imediata, e, quando se tratar de danos não perceptíveis de pronto, o prazo de dez dias conta-se da entrega do produto. Assim, a lei busca assegurar rapidez e clareza no procedimento, evitando que o transportador também permaneça indefinidamente exposto a alegações de vícios ocultos.

O ponto comum desses julgados é a rigidez do prazo decadencial: dez dias, nem mais, nem menos. Não há flexibilização, mesmo quando o dano é evidente ou a seguradora age com diligência após o pagamento da indenização. Para os tribunais, a segurança jurídica do transporte marítimo exige observância estrita do dispositivo legal.

Para seguradoras, a lição é clara: ao indenizar o segurado, sub-rogam-se em direitos que já não existem caso o prazo decadencial tenha expirado. A sub-rogação não revive pretensões extintas. O direito desapareceu, tal como embarcação que zarpou sem retorno, não à toa algumas seguradoras já emitiram pronunciamentos aos segurados acerca da importância e necessidade do protesto tempestivo, sob pena inclusive de negativa de cobertura.

Em síntese, o protesto tempestivo é a âncora capaz de resguardar o direito. No mar do comércio marítimo internacional, onde cada detalhe pode representar milhões, silêncio ou demora custam caro. Observar rigorosamente o art. 754 não é formalidade, mas requisito essencial à manutenção do direito e à estabilidade das operações comerciais.

Os julgados mencionados, assim como diversos outros envolvendo temas relacionados, estão disponíveis no livro de Jurisprudência Marítima, que reúne diversos acórdãos de grande relevância para o direito marítimo.

Para acessar o livro, basta aqui.

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1 Disponível aqui.

2 Diniz, Maria Helena.Código civil anotado I Maria Helena Diniz.-II. ed.- São Paulo: Saraiva, 2014. Pág. 592.)