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Navegando por mares jurisprudenciais: Construção Naval - Parte X - contratos de construção e reparo de navios

quinta-feira, 22 de maio de 2025

Atualizado em 21 de maio de 2025 11:33

O Direito Marítimo é especial. É um ramo autônomo do Direito que disciplina operações relacionadas ao transporte marítimo, de cargas ou passageiros, englobando atividades que, como visto, mesmo nos mais difíceis tempos de pandemia, não podem jamais parar.

Internacional por natureza e, ao mesmo tempo, vital ao nosso país e ao nosso cotidiano, ainda que por vezes isso possa passar despercebido pelo cidadão comum.

Diante de tamanha relevância, buscaremos desenvolver uma coletânea de artigos dedicados a tratar os mais diversos aspectos do Direito Marítimo, à luz da Jurisprudência dos Tribunais Brasileiros, abordando tópicos do Direito Marítimo retratados na obra de "Jurisprudência Marítima"1 e enfrentados em lides forenses, denotando a complexidade e especialização da matéria. 

Este artigo tem como objetivo abordar a construção e os reparos navais, começando com um breve panorama histórico. Discutiremos sucintamente o conceito de navio, o papel das sociedades classificadoras e os principais aspectos envolvidos nos contratos de construção e reparação naval. Para exemplificar a relevância e as implicações jurídicas do tema, analisaremos dois julgados, proporcionando uma análise mais detalhada e prática do assunto.

A construção naval no Brasil teve início no século XIX, com o estaleiro fundado por Barão de Mauá, em Niterói/RJ. Mas foi apenas a partir da década de 1950, durante o governo Juscelino Kubitschek, que o setor ganhou impulso. Em 1958, com o Plano de Metas, o país passou a investir estrategicamente na indústria naval, por meio do FMM - Fundo da Marinha Mercante e da Taxa de Renovação da Marinha Mercante - depois substituída pelo AFRMM - Adicional de Frete para Renovação da Marinha Mercante. Esses incentivos permitiram que, em 1972, o Brasil alcançasse a posição de segundo maior parque industrial de navios mercantes do mundo, atrás apenas do Japão.

Entretanto, no final da década de 1970, a combinação de alta inflação, dependência de encomendas do setor estatal, especialmente da Companhia Lloyd Brasileiro, e o foco excessivo no mercado interno marcou o início de uma crise na indústria naval brasileira, que se estenderia por duas décadas. Com capacidade ociosa e dificuldade para competir no mercado internacional, os estaleiros enfrentaram sérias limitações. Custos elevados, alto endividamento, processos produtivos ineficientes, atrasos nas entregas e navios que não atendiam às exigências de um mercado cada vez mais competitivo contribuíram para o declínio do setor.

Atualmente, a indústria naval brasileira está em momento de retomada, com investimentos e encomendas a crescer, mas também com desafios a serem superados. Estaleiros especializados em embarcações de apoio marítimo e portuário estão a se destacar com aumentos de produção e expansão internacional. No entanto, alguns estaleiros ainda enfrentam dificuldades, como falta de demanda e processos de recuperação judicial, e a retomada da indústria naval como um todo depende de novos estímulos e investimentos.

Nesse cenário de retomada gradual e reestruturação do setor, é importante compreender os elementos jurídicos fundamentais que envolvem a construção naval. Um deles é o próprio navio, que, embora juridicamente classificado como bem móvel, possui características peculiares que o diferencia. Sua possibilidade de ser hipotecado e sua necessidade de ser levado a registro, por exemplo, levam parte da doutrina a considerá-lo um bem móvel sui generis, evidenciando a complexidade das relações contratuais e regulatórias que envolvem sua construção, operação e financiamento.

Dentro desse contexto técnico e normativo, destaca-se o papel das sociedades classificadoras. Os navios mercantes utilizados em operações de longo curso, cabotagem ou apoio marítimo e portuário devem ser projetados, construídos, inspecionados e entregues de acordo com as normas estabelecidas por uma sociedade classificadora autorizada pelas autoridades marítimas do país de bandeira. No entanto, a exigência da classificação obrigatória depende do porte da embarcação e do nível de risco que ela representa para a tripulação, instalações portuárias e meio ambiente, sendo dispensada em determinados casos de menor risco ou dimensão.

As sociedades classificadoras são entidades técnicas, de natureza privada, que exercem função pública delegada em alguns países, atuando em nome das autoridades marítimas para fins de certificação estatutária. Sua principal função é verificar e atestar a conformidade das embarcações com critérios técnicos nacionais e internacionais, voltados à segurança da navegação, à proteção da vida humana, da propriedade e do meio ambiente.

Essa estrutura técnico-regulatória influencia diretamente o modelo contratual adotado na construção naval. A modalidade mais comum, tanto no Brasil quanto no exterior, é a construção por empreitada, regulamentada por uma relação contratual firmada entre o armador e o estaleiro.

No âmbito da construção naval, a empreitada geralmente envolve o estaleiro como responsável tanto pelo fornecimento dos materiais quanto pela execução da obra, assumindo integralmente os riscos até a entrega do navio ao armador. Diante dos altos valores envolvidos e da complexidade do processo construtivo é comum que as partes adotem instrumentos contratuais de segurança, como garantias financeiras, cláusulas resolutivas e seguros, com o objetivo de mitigar eventuais prejuízos decorrentes do inadimplemento de uma das partes e assegurar maior equilíbrio e previsibilidade à relação contratual.

O TJ/RJ reafirma, conforme o julgado abaixo, que as disposições aplicáveis ao contrato de empreitada se estendem à construção naval, com a obrigação do estaleiro voltada para a entrega do navio conforme os termos acordados (obrigação de resultado).

APELAÇÃO. Ação ordinária de cobrança, cumulada com perdas e danos. Reconvenção. Contrato de construção naval. Armadora e estaleiro que o firmaram em duas versões, na mesma data, com valores distintos: o de maior valor, que previa financiamento pelo BNDES, cujo crédito foi aberto na mesma data, tendo sido levado ao registro público competente; o de menor valor não foi registrado, nem aludia ao financiamento do BNDES, todavia foi aquele efetivamente norteador da execução das obrigações avençadas, inclusive quanto ao valor efetivamente pago, ao prazo de entrega do navio e à repactuação de prazos e formas de pagamento. O registro não constitui requisito de validade do contrato de construção naval em face da legislação de regência; não se trata de transferência de propriedade de embarcação, mas de construção de embarcação nova. Prevalência do contrato efetivamente observado pela conduta das partes. Nada obstante a existência de dois termos contratuais, não se configura a litigância de má-fé aventada pelo julgado de piso, dado que, em princípio, ambas as partes pretenderiam beneficiar-se dessa dualidade com o fim de obter-se o financiamento, ao passo que a litigância de má-fé pressupõe o uso do processo por uma das partes em detrimento da outra. Natureza jurídica do contrato de construção naval ajustado entre as partes: contrato de empreitada, também nominado de contrato por escopo, cujo prazo cumpre função meramente moratória, não induzindo a extinção da obrigação se, esgotado o seu termo final, o escopo não se aperfeiçoou integralmente; prorrogação que se impõe, para que se alcance o escopo, no caso, a construção e entrega do navio encomendado, o que não afasta as cominações decorrentes da mora, sindicada a participação de cada contraente para dar-lhe causa. Conjunto probatório exaustivo, integrado por documentos, perícia e testemunhos, a demonstrar atraso de pagamento pela empresa armadora contratante, financiadora da construção, e atraso de execução pelo estaleiro contratado, sem provocar lesão à honra objetiva deste, mas a produzir efeitos patrimoniais atraentes das penalidades moratórias, bem aplicadas pela sentença. Pleitos principal e reconvencional parcialmente procedentes (...).

(TJ/RJ, AC, 0003873-97.2005.8.19.0205, Des. Jessé Torres, 2ª Câmara Cível, j. 24/8/11)

No âmbito dos contratos de reparo naval, a obrigação assumida pelo prestador de serviço também é de resultado, exigindo-se a entrega da embarcação em condições adequadas para operar. Essa abordagem foi adotada pelo STJ em caso paradigmático, no qual se discutiu a gravidade do descumprimento contratual por parte do estaleiro contratado, diante da reprovação técnica de reparos que inviabilizaram o uso da embarcação pelo armador.

PROCESSUAL CIVIL E CIVIL. RECURSO ESPECIAL. RECURSO MANEJADO SOB A ÉGIDE DO NCPC. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. OMISSÃO. INEXISTÊNCIA. AÇÃO DE COBRANÇA. EXCEÇÃO DO CONTRATO NÃO CUMPRIDO. REPARO EM NAVIO. REPROVAÇÃO DE PARTE DOS SERVIÇOS REALIZADOS POR AGÊNCIA DE CLASSIFICAÇÃO QUE IMPEDIU A CONCESSÃO DA AUTORIZAÇÃO PARA NAVEGAÇÃO. INADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL DO CONTRATO. RECONHECIMENTO. RECURSO PROVIDO. (...) 2. Devidamente analisada e discutida pelo Tribunal fluminense a questão referente a reprovação, pela agência de classificação, dos reparos realizados no navio, que impediram a concessão da autorização para sua navegação, com fundamento claro e expresso, de modo a esgotar a prestação jurisdicional, não há que se falar em violação dos arts. 489 e 1.022, ambos do NCPC. 3. Em decorrência do princípio da boa-fé objetiva, um contratante não pode exigir que o outro cumpra a obrigação que lhe cabe sem antes adimplir a sua (art. 476 do CC/2002). 4. A arguição da exceptio non adimpleti contractus exige que o inadimplemento seja substancial, relevante, a ponto de causar desproporcionalidade na sinalagma entabulada entre os contratantes. 5. Na espécie, diante da necessidade de se realizar reparos em um navio, uma empresa especializada foi contratada para a prestação do serviço e alguns pontos foram reprovados pela agência classificadora, impedindo que a embarcação voltasse a operar, ou seja, o navio não poderia navegar, não serviria sequer para catraia, caracterizando o descumprimento substancial da obrigação pelo prestador do serviço, ensejando o acolhimento da arguição da exceção do contrato não cumprido. 6. Navio que não navega não serve, porque navegar é preciso. 7. Recurso especial provido. (...)

Colhe-se do acórdão recorrido que a ela foi contratada para realizar reparos em navio da GLOBAL, tais como trocas de chapas de aço e de válvulas, instalação e remoção de equipamentos, reparos do sistema propulsor e de comando, tratamento, pintura, entre outros (e-STJ, fl. 1.138). Todavia, parte dos serviços foi reprovada pela classificadora Bureau Veritas, (...), o que teria impedido a embarcação de operar (e-STJ, fl. 1.139). O acórdão recorrido também transcreveu parte das respostas do perito aos quesitos apresentados, esclarecendo que muitos serviços contratados não foram realizados (e-STJ, fl. 1.141). Ao final descreveu os serviços e reparos realizados por conta da GLOBAL, mediante contratação de terceiros, que só então obteve a autorização para operar/navegar. Pelas circunstâncias delimitadas pelo acórdão recorrido, observa-se que diante da necessidade de se realizar reparos em um navio, uma empresa especializada foi contratada para a prestação do serviço e alguns itens foram reprovados pela sociedade classificadora, a ponto de impedir que a embarcação voltasse a operar, ou seja, o navio não poderia navegar. E navegar é preciso! Dessa forma, não se pode afirmar que o descumprimento contratual foi mínimo, como concluiu o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro; o inadimplemento foi elevado, grave, substancial, a ponto do navio ser impedido de operar, não poder navegar, não serviria nem sequer para catraia. Navio que não navega não serve. (...) Portanto, se o navio, após a realização dos serviços, não mais servia para o seu propósito, caracterizado ficou o descumprimento substancial da obrigação pela ENAVI, ensejando o acolhimento da arguição da exceção do contrato não cumprido.

(STJ, REsp 1907391, Rel. ministro MOURA RIBEIRO, 3ªTURMA, j, 22/6/21)

No recurso especial colacionado acima, o STJ entendeu que a reprovação de parte dos reparos pela sociedade classificadora, impedindo a autorização para navegação, configurou inadimplemento substancial da contratada.

A Corte reconheceu que a embarcação, ao não atender às condições mínimas de operação, tornou-se inservível ao seu propósito. Com base na quebra do equilíbrio contratual e na violação da boa-fé objetiva, foi acolhida a exceção do contrato não cumprido, autorizando a suspensão das obrigações da parte lesada e eventual indenização.

Como destacou o relator, de forma emblemática, "navio que não navega não serve, porque navegar é preciso".

Diante da análise das questões jurídicas relacionadas à construção e reparação naval, é possível observar que, tanto nos contratos de construção quanto nos de reparo e modernização de embarcações, a natureza de obrigação de resultado se impõe.

Em ambos os casos, o cumprimento integral das obrigações contratuais é fundamental para garantir a funcionalidade das embarcações e a segurança das operações. Além disso, as decisões judiciais demonstram que o descumprimento dos prazos e a qualidade dos serviços prestados geram consequências jurídicas substanciais, evidenciando a importância de um contrato bem estruturado e da vigilância constante sobre o cumprimento das condições acordadas.

Os julgados mencionados, assim como diversos outros envolvendo temas relacionados à figura dos agentes marítimos, estão disponíveis no Livro de Jurisprudência Marítima, que reúne diversos acórdãos de grande relevância para o Direito Marítimo.

Para acessar o livro, clique aqui. 

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1 Disponível aqui.