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Navegando por mares Jurisprudenciais: Parte XII - Inaplicabilidade do CDC no transporte marítimo

quinta-feira, 17 de julho de 2025

Atualizado em 16 de julho de 2025 08:51

O Direito Marítimo é especial. É um ramo autônomo do Direito que disciplina operações relacionadas ao transporte marítimo, de cargas ou passageiros, englobando atividades que, como visto, mesmo nos mais difíceis tempos de pandemia, não podem jamais parar.

Internacional por natureza e, ao mesmo tempo, vital ao nosso país e ao nosso cotidiano, ainda que por vezes isso possa passar despercebido pelo cidadão comum.

Diante de tamanha relevância, buscaremos desenvolver uma coletânea de artigos dedicados a tratar os mais diversos aspectos de Direito Marítimo, à luz da Jurisprudência dos Tribunais Brasileiros, abordando tópicos de Direito Marítimo retratados na obra de "Jurisprudência Marítima"1  e enfrentados em lides forenses, denotando a complexidade e especialização da matéria.

O presente artigo tem por objetivo analisar a inaplicabilidade do CDC às relações jurídicas decorrentes do transporte marítimo internacional, notadamente quando envolvem contratos de afretamento, transporte regular de carga ou outras operações de caráter comercial entre entes empresariais. A crescente judicialização de controvérsias no setor revela, com frequência, a tentativa de se aplicar o regime protetivo do CDC a relações que, por sua natureza técnica, estrutura contratual e equilíbrio de forças, não se amoldam ao conceito de relação de consumo.

Embora o CDC represente importante marco protetivo nas relações assimétricas entre consumidor e fornecedor, sua aplicação pressupõe a presença de elementos específicos como a vulnerabilidade técnica, jurídica ou econômica da parte consumidora que não se fazem presentes nas operações marítimas entre empresas de grande porte ou entre agentes com expertise no comércio internacional. A extensão indevida do microssistema consumerista a tais relações implica desconsiderar não apenas a legislação especial aplicável ao transporte marítimo, mas também os princípios da autonomia da vontade e da força obrigatória dos contratos, tão caros ao direito privado

A distinção entre relações de consumo e relações comerciais no âmbito do transporte marítimo é, portanto, crucial para a preservação da segurança jurídica, da previsibilidade contratual e da funcionalidade das práticas comerciais internacionalmente consolidadas. A aplicação inadequada do CDC pode resultar na atribuição de ônus desproporcionais a uma das partes, desestruturando os fundamentos contratuais pactuados e criando precedentes que comprometem a eficiência e a estabilidade do setor logístico e portuário.

Para ilustrar os reflexos práticos dessa controvérsia e fomentar o debate sobre os limites da aplicação do CDC, o presente estudo analisará dois julgados emblemáticos. A análise comparativa dessas duas jurisprudências permitirá uma reflexão crítica sobre os critérios utilizados pelos tribunais brasileiros para qualificar as relações jurídicas no setor marítimo, evidenciando a necessidade de maior rigor técnico na distinção entre contratos comerciais e relações de consumo, bem como o impacto dessas decisões na prática do direito marítimo nacional.

Primeiro Julgado:

Transporte Marítimo - Reclamação por Avaria de Carga - Inaplicabilidade do CDC 10.1 RECURSO ESPECIAL. TRANSPORTE MARÍTIMO DE CARGAS. AVARIAS. RESPONSABILIDADE CIVIL. PAGAMENTO DE INDENIZAÇÃO SECURITÁRIA. NÃO INCIDÊNCIA DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. - Ação ajuizada em 10/2/2006. Recurso especial interposto em 24/7/2012 e distribuído a este gabinete em 25/8/2016. - Inaplicabilidade do CDC, como regra geral, aos contratos de transporte marítimo pela dificuldade de enquadramento como consumidor das partes contratantes. - Ausência de demonstração de vulnerabilidade de uma das partes para a aplicação da legislação consumerista. - Recurso especial conhecido e provido.

(STJ, 1.391.650/SP, rel. ministra Nancy Andrighi, 3ª turma, julgado em 18/10/2016, DJe 21/10/2016)

Segundo Julgado:

10.21 (...) Trata-se de ação de cobrança de valores referentes a despesas de sobre-estadia de contêiner, com base na alegação de que o prazo para a devolução foi ultrapassado, em confronto ao avençado pelas partes. Inexiste relação de consumo a autorizar reconhecimento de vício por força do disposto na relação consumerista. Consumidor, reza o artigo 2º do citado diploma legal, é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final. No caso das pessoas físicas, a condição de destinatário final presumida. Porém, no caso de pessoas jurídicas, a presunção é inversa, cabendo à interessada demonstrar tal condição, que no caso, sequer é alegada. Neste sentido julgado publicado na Revista dos Tribunais, volume 763,p. 268/271, cuja ementa transcrevo: "PESSOA JURÍDICA Consumidor Impossibilidade da presunção de ser parte vulnerável na relação de consumo, por se dedicar a atividade produtiva e lucrativa Aplicação da proteção do Código de Defesa do Consumidor que depende da afirmação e demonstração da satisfação aos requisitos de ordem subjetiva, objetiva e finalística. Ementa Oficial: Por não presumir parte vulnerável e por se dedicar a atividade produtiva e lucrativa, a pessoa jurídica, por isso mesmo, não se presume consumidora e só terá proteção do Código do Consumidor se afirmar e demonstrar a satisfação aos requisitos de ordem subjetiva, objetiva e finalística". Esta é a correta interpretação do disposto no art. 2º do CDC ao incluir as pessoas jurídicas no conceito de consumidores, que reclama atenção à distinção da condição da pessoa física e jurídica na relação de consumo (...).

(TJ/SP, Processo 1008181-67.2022.8.26.0562, juiz Joel Alonso Beltrame Júnior, 10ª vara Cível do Foro de Santos, DJ 24/8/2022)

No primeiro caso selecionado para análise, o STJ, ao julgar o REsp 1.391.650/SP, firmou entendimento no sentido da inaplicabilidade do CDC às relações de transporte marítimo de cargas, especialmente em contextos nos quais não se comprova a vulnerabilidade da parte contratante. Trata-se de uma ação indenizatória por avarias em carga transportada por via marítima, na qual o Tribunal de origem havia reconhecido a aplicação do CDC à relação contratual firmada entre a parte autora e o transportador, com fundamento na suposta hipossuficiência da demandante.

A 3ª turma do STJ, entretanto, reformou o acórdão recorrido ao enfatizar que, como regra geral, os contratos de transporte marítimo não se submetem ao regime consumerista, uma vez que as partes envolvidas normalmente empresas de grande porte ou agentes do comércio exterior não se enquadram na figura do consumidor final, tampouco demonstram a vulnerabilidade necessária à incidência do microssistema protetivo. A relatora, ministra Nancy Andrighi, ressaltou expressamente que "a ausência de demonstração de vulnerabilidade de uma das partes afasta a aplicação da legislação consumerista", restabelecendo a racionalidade técnica exigida para o tratamento jurídico desse tipo de relação contratual.

Esse precedente é especialmente relevante por reforçar a distinção entre relações de consumo e relações empresariais complexas, reconhecendo que o transporte marítimo internacional de cargas se insere no campo do direito comercial e do direito marítimo, os quais possuem normas próprias e consolidadas para regência de obrigações, responsabilidade civil, limitações legais e cláusulas contratuais específicas.

A decisão, portanto, coaduna-se com os princípios da segurança jurídica e da especialidade normativa, evitando a sobreposição indevida de regimes jurídicos distintos que poderiam desestruturar as práticas comerciais do setor marítimo. Além disso, o acórdão reafirma a necessidade de análise casuística e técnica para se identificar, com precisão, se há elementos que justifiquem a aplicação do CDC, o que, naquele caso concreto, não se verificou.

O segundo caso examinado refere-se a uma ação de cobrança de sobre-estadia (demurrage) de contêiner, proposta com fundamento no descumprimento contratual relativo ao prazo de devolução da unidade. A controvérsia foi submetida à 10ª vara Cível de Santos, que enfrentou a alegação, por parte da ré, consignatária das mercadorias, de existência de relação de consumo capaz de atrair a aplicação do CDC e, consequentemente, mitigar suas obrigações contratuais.

O juiz da causa, de forma técnica e alinhada à jurisprudência dominante, rechaçou a incidência do CDC, afirmando expressamente que não se presumem relações de consumo quando envolvidas pessoas jurídicas que atuam com finalidade econômica, especialmente quando a parte interessada não demonstra a condição de destinatária final nem a existência de vulnerabilidade específica.

Fundamentando-se no art. 2º do CDC e em julgados doutrinadores, o magistrado destacou que, no caso das pessoas jurídicas, não há presunção de hipossuficiência, sendo necessário comprovar, cumulativamente, os requisitos subjetivos (vulnerabilidade), objetivo (finalidade do serviço) e finalístico (uso como destinatário final), sob pena de se banalizar a proteção consumerista.

A decisão valoriza a teoria finalista aprofundada, amplamente adotada pela doutrina e pela jurisprudência, segundo a qual a pessoa jurídica somente poderá ser considerada consumidora quando demonstrar que a aquisição ou utilização do serviço ocorreu fora do seu ciclo produtivo ou empresarial, e que se encontra em situação de desigualdade técnica ou econômica frente ao fornecedor.

No caso concreto, nada disso foi demonstrado. Ao contrário, a parte ré figurava como agente ativo da cadeia logística, com pleno domínio técnico sobre os termos do contrato de transporte e armazenagem, razão pela qual não se justificava a incidência de normas protetivas excepcionais.

Além disso, a fundamentação do juízo de primeiro grau apresenta relevante contribuição teórica ao reafirmar a necessidade de diferenciar os regimes jurídicos aplicáveis conforme o perfil dos contratantes, resguardando a autonomia das convenções privadas no campo das relações comerciais marítimas. Isso é particularmente importante nas disputas envolvendo sobre-estadia de contêiner, cuja disciplina está associada à eficiência da cadeia de suprimentos e ao uso racional dos ativos logísticos, e que não pode ser comprometida por distorções interpretativas baseadas em um enquadramento jurídico indevido.

Este julgado, portanto, confirma a orientação já consolidada no STJ quanto à incompatibilidade estrutural entre as normas do CDC e as operações típicas do comércio marítimo, especialmente quando travadas entre operadores econômicos que atuam com grau equivalente de sofisticação, expertise e poder negocial.

Os julgados mencionados, assim como diversos outros envolvendo temas relacionados, estão disponíveis no livro de Jurisprudência Marítima, que reúne diversos acórdãos de grande relevância para o direito marítimo.

Para acessar o livro, basta clicar aqui.

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1 Disponível aqui.