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Navegando por mares Jurisprudenciais: Parte XI - Contêiner x Mercadoria

quinta-feira, 3 de julho de 2025

Atualizado em 2 de julho de 2025 09:59

O Direito Marítimo é especial. É um ramo autônomo do Direito que disciplina operações relacionadas ao transporte marítimo, de cargas ou passageiros, englobando atividades que, como visto, mesmo nos mais difíceis tempos de pandemia, não podem jamais parar.

Internacional por natureza e, ao mesmo tempo, vital ao nosso país e ao nosso cotidiano, ainda que por vezes isso possa passar despercebido pelo cidadão comum.

Diante de tamanha relevância, buscaremos desenvolver uma coletânea de artigos dedicados a tratar os mais diversos aspectos de Direito Marítimo, à luz da Jurisprudência dos Tribunais brasileiros, abordando tópicos de Direito Marítimo retratados na obra de "Jurisprudência Marítima"1  e enfrentados em lides forenses, denotando a complexidade e especialização da matéria.

Neste artigo, abordaremos a dicotomia entre "Contêiner x Mercadoria" no contexto do transporte marítimo, explorando especialmente a importância de distinguir corretamente esses dois elementos, de forma que o ônus de um não recaia indevidamente sobre o outro. Para melhor compreensão do tema, serão apresentados dois casos práticos, proporcionando uma análise mais concreta e minuciosa.

Ao tratarmos da relação entre carga e contêiner no transporte marítimo, é essencial reconhecer que ambos desempenham funções distintas e possuem naturezas próprias. Essa diferenciação é fundamental para a adequada atribuição de responsabilidades. Se de um lado a mercadoria representa a carga, objeto do transporte, de outro o contêiner representa um acessório do navio, sendo um meio pelo qual o transporte daquela carga é operacionalizado. Assim, eventuais obrigações relacionadas à carga não devem ser automaticamente transferidas ao contêiner, pois a ausência dessa individualização pode levar à imputação indevida de encargos, comprometendo a segurança jurídica e o equilíbrio nas relações contratuais.

Conforme estabelece o art. 24 da lei 9.611/1998, o contêiner não deve ser confundido como embalagem da mercadoria. Ele é, na verdade, um equipamento próprio, acessório do navio, utilizado para a unitização de cargas, ou seja, para reunir e acondicionar diferentes volumes em uma única estrutura, facilitando o transporte. Sua principal função é tornar o deslocamento de mercadorias mais ágil, seguro e eficiente, especialmente quando envolve a combinação de modais, como navio, caminhão e trem.

Art. 24. Para os efeitos desta lei, considera-se unidade de carga qualquer equipamento adequado à unitização de mercadorias a serem transportadas, sujeitas a movimentação de forma indivisível em todas as modalidades de transporte utilizadas no percurso.

Parágrafo único. A unidade de carga, seus acessórios e equipamentos não constituem embalagem e são partes integrantes do todo.

Diante disso, fica claro que o contêiner é um equipamento acessório à embarcação, destinado exclusivamente ao transporte de cargas, mantendo-se, contudo, juridicamente distinto e independente em relação a elas.

Contudo, mesmo com a clareza do exposto acima quanto à distinção entre carga e contêiner, é comum, na prática, que essa separação não seja devidamente respeitada. A carga está sujeita a diversas obrigações legais, fiscais e aduaneiras - como apresentação de documentos no prazo, pagamento de tributos e cumprimento de exigências sanitárias ou ambientais.

Quando essas obrigações não são cumpridas, a mercadoria pode ser retida, considerada abandonada ou até mesmo declarada perdida pela Autoridade Alfandegária. Essas medidas são legítimas e fazem parte do poder de polícia do Estado, mas devem se aplicar exclusivamente à carga e aos seus responsáveis legais.

No entanto, em razão dessas medidas aplicadas à carga, o contêiner utilizado no transporte frequentemente permanece retido junto com a mercadoria, ainda que não haja qualquer irregularidade que lhe diga respeito, fato que causa inúmeros prejuízos ao transportador.

Essa prática atribui ao contêiner - um equipamento logístico auxiliar, com função específica - os impactos de uma sanção que, em termos jurídicos, deveria se limitar à carga. Como resultado, o contêiner fica retido, causando atrasos nas operações logísticas, custos extras, como a cobrança de demurrage (sobrestadia), armazenagem, bloqueio da disponibilidade do equipamento para novos embarques e possíveis disputas entre os diferentes elos da cadeia de transporte.

Feitas estas considerações iniciais, passaremos a analisar dois julgados constantes no livro de Jurisprudência Marítima, os quais tratam da inexistência de vínculo jurídico entre o contêiner e a carga nele transportada.

Primeiro Julgado:

ADMINISTRATIVO. DESEMBARAÇO ADUANEIRO. DESUNITIZAÇÃO DE CARGA E DEVOLUÇÃO DE CONTÊINERES. APLICAÇÃO DA PENALIDADE DE PERDIMENTO DAS MERCADORIAS TRANSPORTADAS EM RAZÃO DE ABANDONO DAS MERCADORIAS IMPORTADAS. LEGITIMIDADE PASSIVA DA AUTORIDADE ALFANDEGÁRIA. CONTÊINERES DE PROPRIEDADE DE SOCIEDADE DE TRANSPORTE MARÍTIMO. RETENÇÃO. IMPOSSIBILIDADE.

(...) 5 - Em relação ao mérito, a controvérsia cinge-se em verificar a legalidade ou não do ato perpetrado pelo Inspetor-Chefe da Alfândega do Porto do Rio de Janeiro, consistente na retenção de contêineres de propriedade da impetrante, sociedade do ramo de transporte marítimo, em razão do abandono das mercadorias transportadas contidas em seu interior pelo importador. 6 - Na hipótese dos autos, após as mercadorias acondicionadas nos contêineres de propriedade da impetrante terem sido descarregadas no Porto do Rio de Janeiro, não foi iniciado pelo importador, dentro do prazo legal, o desembaraço aduaneiro, de modo que as mercadorias 1 foram consideradas abandonadas, sujeitando-se a procedimento administrativo fiscal para aplicação da penalidade de perdimento, o que não justifica a retenção dos contêineres. 7 - O contêiner possui como finalidade a realização de transporte de cargas, não se confundindo com a própria carga ou com a embalagem das mercadorias transportadas, de maneira que não há que falar em identidade entre o contêiner e sua carga, tampouco em existência de relação de acessoriedade entre eles, conforme se depreende do disposto no artigo 24, da Lei nº 9 .611/98. 8 - Mostra-se, pois, ilegal a conduta da autoridade impetrada em penalizar o proprietário da unidade de carga, com a retenção do equipamento, uma vez que a infração foi cometida pelo proprietário da mercadoria importada, devendo apenas este último sujeitar-se aos prejuízos decorrentes da apreensão da carga. 9 - Remessa necessária e recurso de apelação desprovidos.

(TRF-2 - AC: 01057197920124025101 RJ 0105719-79.2012.4.02.5101, Relator.: JULIO EMILIO ABRANCHES MANSUR, Data de Julgamento: 17/11/2016, 5ª TURMA ESPECIALIZADA)

Segundo Julgado:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. MANDADO DE SEGURANÇA. RETENÇÃO DE CONTAINER. DESCABIMENTO. RECURSO PROVIDO. 1. É iterativa a jurisprudência do Colendo Superior Tribunal de Justiça no sentido de que o contêiner não é acessório da mercadoria importada e, verificado o abandono ou a perda da carga por infração aduaneira, não se justifica sua manutenção no recinto alfandegado. 2. O fato de o Poder Público não possuir condições para o adequado armazenamento da mercadoria não pode acarretar privação de bens particulares, a não ser que expressamente autorizado por lei. 3. Com efeito, é de exclusiva responsabilidade do importador o desembaraço aduaneiro da mercadoria importada, não se podendo imputar ao transportador ônus decorrente de sua omissão ou das limitações físicas de espaço da agravada em comportar as mercadorias importadas, mesmo porque o artigo 3º do Decreto-Lei nº 116/67 evidencia que "a responsabilidade do navio ou embarcação transportadora começa com o recebimento da mercadoria a bordo e cessa com a sua entrega à entidade portuária ou trapiche municipal, no porto de destino, ao costado do navio". 3. Ademais, o responsável pela manutenção e guarda da mercadoria é o recinto alfandegado, o qual inclusive é remunerado para tanto, e não a transportadora. A desunitização no interior do recinto alfandegado em nada prejudica eventual procedimento administrativo. (....)

(TRF-3 - AI: 00096396120164030000 SP, Relator: desembargador Federal Marcelo Saraiva, 4ª turma, Data de Publicação: 10/3/2017)

Pode-se observar que, no julgado proferido pelo TRF da 2ª região, a Corte concluiu pela ilegalidade da retenção dos contêineres de propriedade da transportadora marítima, em decorrência do abandono da carga pelo importador.

O acórdão destaca que a penalidade de perdimento das mercadorias, imposta em razão do não cumprimento, pelo importador, do desembaraço aduaneiro no prazo legal, não justifica a apreensão dos contêineres utilizados no transporte, haja vista que esses equipamentos não devem se confundir com a carga que transportam.

O Tribunal reconhece, ainda, que o contêiner é mero instrumento logístico, cuja finalidade é a viabilização do transporte da mercadoria, não havendo qualquer relação de identidade jurídica entre si. Tal entendimento tem como fundamento o art. 24 da lei 9.611/1998.

Dessa forma, o entendimento firmado é no sentido de que a retenção dos contêineres se caracteriza como medida ilegal, por impor ao proprietário do equipamento uma penalidade por infração cometida exclusivamente pelo importador da carga.

No segundo julgado, o TRF da 3ª região destaca uma questão crucial: a incapacidade do Poder Público em disponibilizar condições adequadas para o armazenamento da mercadoria não pode justificar a retenção ou apreensão de bens particulares, como os contêineres. Essa posição reforça que limitações estruturais ou administrativas da autoridade alfandegária não podem gerar prejuízos a terceiros que não tenham cometido infrações, garantindo a proteção da propriedade privada.

O Tribunal reafirma que o desembaraço aduaneiro é responsabilidade exclusiva do importador, cabendo à autoridade alfandegária a guarda e conservação da mercadoria. Portanto, o transportador não deve sofrer penalidades decorrentes de falhas ou limitações no espaço físico do recinto alfandegado, nem da omissão do importador.

Assim, os julgados consolidam o entendimento de que o contêiner é juridicamente distinto da carga, e sua retenção indevida configura violação aos direitos do proprietário do equipamento, devendo ser afastada qualquer transferência indevida de ônus.

Os julgados mencionados, assim como diversos outros envolvendo temas relacionados, estão disponíveis no livro de Jurisprudência Marítima, que reúne diversos acórdãos de grande relevância para o direito marítimo.

Para acessar o livro, basta clicar aqui.

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1 Disponível aqui.