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A regulação do sinistro na lei 15.040/24

quarta-feira, 24 de setembro de 2025

Atualizado em 23 de setembro de 2025 09:01

A lei 15.040/24 dispôs sobre normas de seguro privado, revogando os dispositivos do CC de 2002 em relação ao tema.

Inovação importante da nova legislação foi a inclusão, na Seção XIII, de dispositivos relativos à regulação e liquidação de sinistros (arts. 75 a 88).

O contrato de seguro gera uma relação dinâmica. Ocorrido o sinistro, o direito do segurado não é instantâneo: haverá necessidade de liquidar e acertar a situação de fato para se verificar se ela se ajusta ao contrato e, só aí, definir o direito do segurado à indenização.

De fato, a obrigação da seguradora não é automática, mas sujeita a condição: concretização do risco ou verificação do sinistro. É preciso verificar se restou configurado in concreto o dano a interesse do segurado coberto pelo seguro, pois o segurador não está obrigado a pagar indenização senão em contrapartida à configuração das hipóteses fáticas (riscos) expressamente consignadas na apólice.

Por essa razão, há de existir um procedimento para apurar se um determinado fato noticiado pelo segurado e não presenciado pelo segurador inclui-se dentre aqueles que desencadearão o pagamento da indenização (contraprestação). Trata-se de verdadeiro processo de apuração de fatos, onde serão coletadas todas as informações e realizadas diligências tendentes a elucidar possíveis dúvidas quanto aos fatos investigados.

O CC de 2002 não cuidou da disciplina da "regulação do sinistro". Apenas previu que, "sob pena de perder o direito à indenização", o segurado deverá participar o sinistro ao segurador, "logo que o saiba", devendo, ainda, tomar "as providências imediatas para minorar-lhe as consequências" (art. 771).

A regulação do sinistro configura procedimento indispensável ao cumprimento do contrato de seguro, como sempre se reconheceu na literatura especializada. Há interesses de ordem pública no âmbito das operações de seguro, o qual se insere no amplo campo da mutualidade, de modo que o sucesso da atividade do segurador depende do zelo para que somente sejam pagas indenizações que correspondam exatamente aos riscos acobertados pelo contrato. Do contrário, o equilíbrio da carteira de seguros pode arruinar-se, em prejuízo de todos os participantes do grupo que mantém o equilíbrio das operações geridas pelo segurador.

Bruno Miragem e Luiza Petersen ensinam que a regulação integra a fase de execução do contrato, constituindo "etapa contratual voltada ao adimplemento", tendo como função determinar "a existência de garantia para os fatos narrados no aviso de sinistro e sua extensão, com a mensuração do valor a indenizar ou do capital segurado a ser pago"1. Prepara, então, o cumprimento da obrigação pelo segurador, uma vez que define o an e o quantum debeatur.

De fato, tão integrado à prestação indenizatória, o procedimento regulatório deve ser considerado como parte do objeto obrigacional, que, juridicamente, corresponde "a toda atividade projetada para satisfação do credor"2. Em outras palavras: ocorrido o sinistro, surge o direito do segurado ou do beneficiário à indenização, mas, para exigir seu cumprimento, tem de ter superado o estágio da regulação, a ser praticado por provocação do segurado e mediante diligência do segurador. Eis por que, funcionalmente, o procedimento regulatório integra a "conduta a prestar", a cargo do segurador3.

Uma vez que, dentro da sistemática da relação obrigacional do contrato de seguro, a regulação do sinistro é o instrumento e a condição para que a indenização seja paga ao segurado, em boa hora o legislador incluiu na lei 15.040/24 dispositivos sobre essa importante fase contratual, embora não a tenha regulado de forma pormenorizada.

O art. 75 da lei estabelece que a reclamação do pagamento do sinistro determina a "prestação dos serviços de regulação e liquidação, que têm por objetivo identificar as causas e os efeitos do fato comunicado pelo interessado e quantificar em dinheiro os valores devidos pela seguradora" (g.n.).

Segundo a lei "cabem exclusivamente à seguradora a regulação e a liquidação do sinistro" (art. 76, caput), podendo, no entanto, contratar regulador e liquidante para desenvolver esse serviço. Mas a lei ressalva que somente a seguradora pode decidir sobre "a cobertura do fato comunicado pelo interessado e o valor devido ao segurado" (parágrafo único do art. 76). 

Como procedimento que é, preparatório de possíveis pretensões que possam eventualmente surgir para as partes após a sua finalização, esse processo deve ter um curso dialético, contraditório e bilateral. A lei não previu detalhadamente o procedimento, mas estabeleceu cumprir ao regulador e ao liquidante do sinistro "informar os interessados de todo o conteúdo de suas apurações, quando solicitado", respeitadas as informações consideradas confidenciais ou sigilosas por lei (art. 80, II). Assim, estabeleceu a necessidade de se garantir o contraditório.

Como se trata de procedimento conduzido pelo segurador, mas que tem por objetivo aferir a existência do direito do segurado, a este deve ser oportunizada ampla participação em todas as fases da regulação, permitindo-lhe o acompanhamento de todas as diligências desencadeadas pelo regulador nomeado pelo segurador, bem como a impugnação de laudos técnicos e o direito de opinar sobre as providências a serem adotadas. Só mediante o respeito a esses direitos é que a regulação terá atingido sua finalidade. Ademais, é de se observar também o princípio da boa-fé, tão caro ao direito pátrio e especialmente aos contratos de seguro.

Ainda em relação à regulação e liquidação do sinistro, a nova lei trouxe importante inovação ao prever que o relatório produzido nessa fase contratual é documento comum às partes (art. 82). Por isso, negada a cobertura, no todo ou em parte, a seguradora deverá entregar aos interessados os documentos produzidos ou obtidos na regulação que fundamentem a sua decisão, ressalvados os "documentos e demais elementos probatórios que sejam considerados confidenciais ou sigilosos por lei ou que possam causar danos a terceiros" (art. 83 e parágrafo único).

A doutrina pátria, antes mesmo da lei, já considerava esses documentos como sendo comuns às partes:

"Todos os atos praticados na regulação do sinistro deverão ser registrados em relatório. Outrossim, todos os documentos coletados e produzidos na regulação deverão ser considerados comuns às partes (segurado/terceiro e segurador), se relevantes para a tomada da decisão a respeito da cobertura e tenham sido coletados e produzidos com a participação de ambas as partes. Ressalvam-se apenas aqueles reputados confidenciais ou sigilosos"4 (g.n.).

No mesmo sentido o entendimento dos tribunais estaduais:

(i) "Em obrigações decorrentes de contrato de seguro, a parte tem o dever de exibir os documentos produzidos dentro da regulação do sinistro, porquanto se trata de documento comum. Ante as peculiaridades do caso, existindo documentos sigilosos e estranhos à demanda principal, o magistrado deverá selecionar aqueles comuns e relevantes para o deslinde do feito para posterior juntada aos autos. Recurso provido"5 (g.n.).

(ii) "Medida cautelar - Exibição judicial de documento - Admissibilidade - Seguradora que se recusa a pagar a indenização devida, advinda de contrato de seguro de veículos, com a alegação de que o automóvel já estava em outro país, na data em que o segurado alegou ter ocorrido o roubo. Pretensão do segurado de que seja exibida cópia integral do procedimento de regulação do sinistro - Admissibilidade - Hipótese abrangida pelo art 844, II, do CPC - Documento que pode ser tido por comum, por estar ligado a uma relação jurídica de que participa o autor e que envolve ambas as partes - Documento em poder de uma das partes que envolve relação jurídica que prejudica a outra - Ação procedente - Sentença confirmada"6 (g.n.).

Entretanto, a 4ª turma do STJ, em julgamento sobre o tema, entendeu que a seguradora não estava obrigada a apresentar todos os documentos da regulação ao segurado, pois isto trazer desequilíbrio concorrencial à empresa:

"Ainda, como é notório e admitido na peça exordial, as seguradoras usualmente se valem de empresas terceirizadas especializadas para a realização do procedimento, sendo evidente que uma condenação cingindo-se apenas à ré ocasionaria sérias restrições para a recorrente, uma vez que, por óbvio, a entrega de toda a documentação exporia o modo de atuar, isto é, o próprio know-how da reguladora terceirizada, que, como é de sabença, é, por natureza, elemento de propriedade industrial sigiloso.

Igualmente, apresentar todos os documentos obtidos no procedimento de regulação, a toda evidência, representaria extensa exposição ao mercado do modo de apurar da seguradora e de sua parceira reguladora (know-how de ambas), trazendo desequilíbrio concorrencial, risco de ocasionar dissabores, danos morais e materiais a segurados e terceiros beneficiários de seguro, como também dificultando sobremaneira a eficiência da regulação de seus contratos de seguro (facilitação de fraudes)"7 (g.n.).

Como se vê, o legislador superou o entendimento adotado pelo STJ, prestigiando a corrente que considera comum os documentos relativos à regulação do sinistro. Desta forma, salvo os elementos probatórios confidenciais e que puderem causar prejuízo a terceiro, a seguradora está obrigada a apresentar os documentos produzidos naquela fase contratual (arts. 82 e 83).

De fato, a jurisprudência, embora não seja fonte primária ou originária do direito, exerce importante função na interpretação e aplicação da lei, quer no preenchimento das lacunas, quer na uniformização da inteligência dos enunciados das normas quer formam o ordenamento. Ao concretizar a norma legal genérica e abstrata, adequando seus enunciados às contingências da infinita variação dos fatos da convivência humana, o juiz desempenha uma função criativa, que não se confunde com a do legislador, mas que nela se insere, em papel complementar e secundário. Vale dizer: não pode o julgador negar ou ignorar a norma legislada, mas pode e deve complementá-la, nas lacunas e nas aplicações e interpretações exigidas pela visão sistemática da ordem jurídica como um todo8.

Nesse contexto, em razão da expressa disposição dos arts. 82 e 83 da nova lei, não se mostra mais adequado o entendimento anterior do STJ, de modo que, ao final do procedimento de regulação do sinistro, a seguradora é obrigada a apresentar ao segurado ou interessado o relatório produzido e todos os documentos que fundamentaram a sua recusa ao pagamento da indenização.

A lei 15.040 estabeleceu, ainda, prazo máximo (i) para que a seguradora finalize a regulação (30 dias), sob pena de decair do direito de recusar a cobertura (art. 86), e (ii) para pagamento da indenização ou do capital estipulado (também 30 dias) (art. 87). Referidos prazos, contudo, podem ser majorados pela autoridade fiscalizadora, em casos de maior complexidade para apuração do sinistro.

_______

1 Miragem, Bruno; PETERSEN, Luiza. Direito dos seguros. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 243. "A regulação será instrumento para o cumprimento e, simultaneamente, parte integrante do cumprimento" (TZIRULNIK, Ernesto. Regulação de sinistro. 3. ed., São Paulo: Max Limonad, 2001, p. 35).

2 BUERES, Alberto J. Responsabilidad civil de las clínicas y establecimientos médicos. 2. ed., Buenos Aires: Abaco, 1981, pp. 130 e 140, apud TZIRULNIK, Ernesto, Regulação de Sinistro cit., p. 40.

3 AGOGLIA, Maria M. Responsabilidad por incumplimiento contractual. Buenos Aires: Hammurabi, 1993, pp. 47/48.

4 MIRAGEM, Bruno; PETERSEN, Luiza. Direito dos seguros cit., p. 254.

5 TJ/MG, 14ª Câmara Cível, Ag. 1.0024.04.285632-8/005, Rel. Des. Estêvão Lucchesi, ac. 10.04.2014, data da publicação da súmula 25/4/2014.

6 TJ/SP, 29ª Câmara de Direito Privado, Ap. 9174840-60.2005.8.26.0000, Rel. Des. Djalma Lofrano Filho, ac. 11/5/2006, data de publicação 16/8/2006.

7 Voto do Relator do STJ, 4ª T., REsp. 1.836.910/SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, ac. 29.09.2022, DJe 8/11/2022.

8 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. 58 ed., Rio de Janeiro: Forense, 2025, v. III, n.º 608, p. 687.