COLUNAS

  1. Home >
  2. Colunas

Migalhas Securitárias

Análises e tendências do Direito do Seguro no Brasil, com foco em questões jurídicas e de mercado.

Ilan Goldberg e Gustavo de Medeiros Melo
quarta-feira, 22 de outubro de 2025

Seguro em favor de terceiro na lei 15.040/24

Introdução Os arts. 24 a 32 da lei 15.040/24, lei que alguns denominam por marco legal dos seguros - o que faz outros interpretarem ser ela o nascedouro do disciplinamento da matéria, equivocadamente, por óbvio -, constituem a Seção V que é, para nós, de relevante interesse. Embora pudéssemos discorrer sobre cada um dos artigos da referida cessão, focaremos naquilo que nos parece mais importante para não transformar o que deve ser objeto de meras considerações em longuíssimo ensaio.  A Seção abriga várias espécies de seguro em favor de terceiro - que, em princípio, regula o que no CC se denomina "Seguro a conta de outrem". Nesta seção pode-se enquadrar, por exemplo, o seguro denominado APP - Acidentes Pessoais a Passageiros, que garante o interesse contra os riscos de invalidez e morte por acidente dos ocupantes de um determinado veículo, estando garantido contra os riscos também o próprio contratante do seguro, espécie conhecida como seguro sobre quem corresponder. Neste exemplo, os segurados, passageiros, são conhecidos apenas no momento da ocorrência do sinistro, e não no momento da contratação. Ou, por outro exemplo, o detentor do interesse é conhecido desde logo. É o caso do locatário que celebra seguro de incêndio para garantir interesses sobre a edificação e sobre seu conteúdo. Sendo ele o contratante, normalmente é qualificado, nas apólices de seguro, como segurado, mas na verdade se trata de outro seguro em favor de terceiro, conjugado com um seguro por conta própria. Titular do interesse sobre o conteúdo do prédio será, em regra, o locatário, mas o titular do interesse sobre a edificação será o locador, proprietário, ainda que ele não figure na apólice nem mesmo como beneficiário. A diferença neste exemplo em relação ao anterior é que o terceiro, a favor de quem se contratou a garantia contra os riscos ao prédio, é desde logo conhecido - o locador, proprietário do prédio -, repita-se. Observe-se, apenas, que, no primeiro exemplo, o interesse segurado é o mesmo, podendo ser vários os seus titulares; já no segundo exemplo, há interesses diversos para distintos segurados (locatário e locador). É possível apontar, também, que estejam regulados nessa Seção seguros que se distinguem dos seguros a conta de outrem típicos, porque o risco recai sobre a pessoa do estipulante, porém com destinação obrigatória do capital ao beneficiário indicado, daí porque também tenha sido considerado pelo legislador como um seguro em favor de terceiro.1 O interesse segurado não seria, então, e também neste caso, do estipulante, e sim do beneficiário.  Explique-se: o seguro a conta de outrem, como o conhecemos, é espécie que se encontra na categoria dos seguros de dano, e o risco incide sobre o bem da vida que de maneira alguma afeta o estipulante se o sinistro vier a ocorrer. Já no seguro sobre a própria vida, por exemplo, embora o interesse seja também do beneficiário indicado a título oneroso, o risco recai sobre a vida do estipulante. Mas, repita-se, sem dúvida se trata de um seguro a favor de terceiro, sendo este o titular do interesse garantido. E regula, ainda, o seguro coletivo, ou em grupo, que, mesmo que se queira considerá-lo seguro em favor de terceiro, seria espécie sui generis dessa categoria, já que ele não é celebrado a conta de outrem, nem a favor de terceiros, mas em proveito de grupo determinado.  Notas explicativas A cabeça do art. 24 diz com o seguro que é estipulado por pessoa distinta daquela que detém o interesse segurado, hipótese equivalente àquela do art. 767 do CC e, cremos, sobre isto dúvida não há, inclusive aplicando-se aqui, como luva, os exemplos que demos acima acerca dos seguros a favor de terceiros. Já seu § 1º cuida de determinar as formas pelas quais se chega à figura do que nele se chama por beneficiário. Claro está, no entanto, que essa figura denominada beneficiário outra não é senão aquela que detém o interesse segurado.2 Mas o § 2º parece tratar de outra espécie de seguro, porque refere-se ao beneficiário a título oneroso. Não se consegue imaginar um beneficiário a título oneroso em decorrência de lei (§ 1º) - ao menos em seguros facultativos. Apenas se o concebe na hipótese de indicação por ato próprio do estipulante. Embora não se trate de um clássico seguro a conta de outrem, sem dúvida é em favor de terceiro. Com a leitura do § 2º vem, então, à mente um contrato de seguro sobre a vida que alguém celebra indicando, como beneficiário, o seu credor, causa da indicação e que se traduz numa indicação a título oneroso. Tendo este beneficiário já um direito, advém daí a obrigação de lhe ser entregue a documentação atinente ao contrato celebrado. Enfim, considera a lei, segundo entendemos e com o que concordamos, que é desse beneficiário o interesse segurado.  O art. 25 determina que seja declarado, quando conhecido, o interesse de terceiro - veja-se que a declaração é quanto à existência de interesse de terceiro, e não quanto a quem seja esse terceiro que, como já vimos, pode ser desconhecido no momento da contratação. Mas a aparente cogência do caput - "deve ser declarado" - se esvai com o § 1º, porque basta que "em razão das circunstâncias ou dos termos do contrato", a seguradora possa identificar a existência desse interesse alheio, ainda que não declarado. Quanto ao § 2º, ele seria de fácil interpretação não fosse o trecho "ainda que decorrente de cumprimento de dever". Mais uma vez vem à mente, pelo uso da expressão, seguros em que a indicação de beneficiário é feita a título oneroso - como é possível acontecer no conhecido seguro prestamista. Possível, mas inusual. Quando a lei se refere a estipulante neste parágrafo, ela parece estar se referindo ao devedor, consumidor, que contrata seguro individual indicando a entidade credora como beneficiária a título oneroso. Ora, quando for assim, por certo cabe a ele a escolha do corretor e da seguradora, não obstante possa a entidade credora recusar a escolha de determinada seguradora que, notoriamente, enfrente desequilíbrios entre as garantias que presta e o capital e as reservas que constitui. Mas o seguro prestamista é, presentemente, quase sempre celebrado por via de uma apólice coletiva em que o estipulante é a instituição credora. Nesses casos, a apólice coletiva é contratada com a natureza de um seguro sobre a vida de outrem ou não. Noutras palavras, a instituição credora pode celebrar uma apólice coletiva em que estarão incluídos todos os seus devedores. Essa apólice é contratada com prêmios pagos pela instituição sem que os devedores saibam de sua existência, ou precisem saber - hipótese atualmente autorizada pelo art. 790 do CC; ou, a instituição credora pode estipular apólice coletiva em que o seu cliente, para obter crédito, se obriga a aderir à apólice estipulada pela entidade credora, ficando ele responsável pelo pagamento da parcela do prêmio global que lhe compete.3 Veja-se: numa hipótese, seguro sobre a vida de terceiro em que o estipulante é o credor do capital segurado em caso de sinistro; noutra hipótese, seguro contratado sobre a própria vida tendo como credora beneficiária - insubstituível, diga-se - a entidade estipulante. Como se vê, por um ou por outro modo, é seguro que se celebra para garantir, caso haja sinistro coberto, o pagamento da dívida da pessoa devedora. E, então, se assim é, não se vê por que o estipulante - no caso a entidade credora e aqui considerado, como estipulante, aquele de apólice coletiva - não possa indicar a seguradora, já que é a ela que a garantia é dada. Veja-se que, quando se diz que a instituição credora, na qualidade de estipulante de apólice coletiva, pode indicar a seguradora, não se está dizendo que possa ela impor ao devedor a seguradora que tenha, em relação a outras do mercado, preços e condições mais desvantajosas. Quando isto se demonstrar, e aí sim, deve ser do devedor a escolha da seguradora. Até mesmo a instituição credora poderia ter, e deveria ter, à disposição do seu cliente e naqueles casos em que ele adere à apólice pagando prêmio (contribuição), mais de uma apólice coletiva com seguradoras diferentes para que o consumidor pudesse optar por uma ou por outra. Pseudo-estipulante Pula-se, agora, porque também merecedor de destacada atenção, para o art. 31, que pretende definir o estipulante de apólices coletivas. Em verdade, ao definir a figura do estipulante, acaba por definir o que é, de fato, um seguro coletivo: é aquele em que o estipulante contrata o seguro em proveito de um grupo com o qual tenha vínculo anterior a essa contratação e, ainda, que esse vínculo não decorra da intenção de estipular seguros - é isto o que a norma pretende ao afirmar que o vínculo há de ser "não securitário", segundo entendemos. As exigências para a formação de um seguro coletivo estão bem-postas, mas não bastam para evitar o nascimento de apólices que, mesmo preenchendo esses requisitos, de seguro coletivo não se trate. Pense-se num banco, que tem, com seus correntistas, vínculo anterior e desvinculado de seguro. Ele tem os elementos exigidos pelo artigo em foco para tornar-se estipulante de um verdadeiro seguro coletivo e ele, então, celebra seguro coletivo com a seguradora que compõe o mesmo grupo econômico a que ele pertence. Mas, veja-se, o banco, na qualidade de estipulante, deve representar o grupo segurado, agindo em prol de seus interesses conforme o art. 32. Ora, parece indiscutível que o banco se orientará primeiro por seus próprios interesses - já que recebe gorda remuneração da seguradora para captação de segurados -, depois pelos da seguradora pertencente ao mesmo grupo econômico, e só a partir disso atentará para os interesses dos componentes do grupo segurado. Então, se é assim, embora preenchidos os requisitos do artigo agora sob estudo, de seguro coletivo não se tratará, exatamente por faltar a ele a representação, de fato, do grupo de segurados e exigida pelo art. 32. O mesmo se pode dizer das denominadas apólices coletivas estipuladas por administradoras de cartões de crédito que, em alguns casos, são remuneradas em percentuais do prêmio superiores àqueles necessários à garantia do risco. É possível dizer que representam os interesses do grupo segurado? Em alguns casos, inclusive, o resultado financeiro da apólice (valores de prêmio menos valores de indenização) influi na remuneração desses chamados estipulantes. Diga-se, menos sinistro, maior o lucro da seguradora e maior a remuneração dos pseudo-estipulantes. Por isto caberá ao intérprete atenta análise da casuística para se definir se se trata ou não de verdadeiro seguro coletivo, sempre levando em conta, para a análise deste artigo, a representação do grupo pelo estipulante tal como exigida pelo art. 32. A repercussão dessa análise não é meramente acadêmica. Ela repercute, por exemplo, na vigência dos contratos firmados, na data em que os valores são atualizados monetariamente e na comunicação entre a seguradora e o segurado que, em não se tratando de seguro coletivo verdadeiro, é direta e não passa pelo chamado estipulante. E, é claro, as disposições aplicáveis a seguro em grupo, inclusive as desta lei, são diferentes das aplicáveis aos seguros de contratação individual. Por fim, merece destaque ainda o art. 32, ao qual já nos referimos de passagem. Veja-se que ele aponta o estipulante como representante legal dos segurados inclusive no momento da formação do contrato-mestre.4 Parece-nos um importante equívoco. Sobre o seguro em grupo, destaca a doutrina: "O contrato de seguro em grupo não é celebrado pelos componentes do grupo segurável, por aqueles que estão sujeitos aos riscos e pretendem a garantia. O contrato é celebrado entre a pessoa física ou jurídica que mantém vínculo determinado com os componentes do grupo segurável (o empregador, o sindicato, a associação), a qual será denominada estipulante, e a seguradora. O estipulante celebrará com a seguradora um contrato matriz, que será chamado de contrato-mestre ou apólice-mestra, contendo o conteúdo do vínculo: as garantias do seguro, os riscos excluídos, a forma de adesão ou de inclusão dos componentes do grupo segurável, a taxa de prêmio, início de vigência do próprio contrato-mestre e das relações individuais constituídas, critérios determinadores da extinção do contrato-mestre e das relações individuais, enfim tudo o que for do interesse da comunidade de riscos. Celebrado o contrato-mestre, a ele poderão aderir ou ser incluídos, conforme estabelecido em suas cláusulas, os componentes do grupo segurável, obtendo a garantia individual que desejam."5 Ainda: "O estipulante de seguro coletivo facultativo é representante dos componentes do grupo segurado. Mas o estipulante também pratica, antes e durante a vigência do seguro coletivo, atos que lhe são próprios e não de representação. Como vimos há pouco, a celebração do contrato mestre se dá entre segurador e estipulante apenas, e este, nesse momento, age em nome próprio e não em representação do grupo segurado, ainda inexistente. (...)  Nesse sentido, Fabio Konder Comparato: "O estipulante é parte em sentido formal, disse eu, não é representante do grupo segurado - que não tem organicidade - nem tampouco de cada um dos segurados de per si, na contratação do seguro. Não age em nome dos segurados, e sim em seu próprio nome'".6 Então, de se concluir que os componentes do grupo segurável apenas aderem a um contrato já pronto e com todas as suas cláusulas já estabelecidas. O estipulante não representa o grupo de segurados, até porque ainda inexistente, nem o grupo de seguráveis, mas age em nome próprio. Daí que os componentes do grupo segurável, ao aderirem ao contrato-mestre, estão por consequência aceitando tudo o quanto pactuado entre estipulante e seguradora. Ora, se a lei afirma, porém, que o estipulante representa os segurados no ato de formação do contrato, o seguro coletivo sequer poderia compor esta Seção, porque de seguro em favor de terceiro não se trataria. Tratar-se-ia de um seguro celebrado em nome próprio - dos segurados -, só que por via de um representante. E nem seria compatível com a figura de representante as obrigações a ele impostas pelo § 2º do art. 31. Ainda é cedo para saber se haverá repercussão prática no cotidiano do seguro coletivo decorrentemente da lei apontar o estipulante como representante dos segurados - ainda inexistentes - na formação do contrato. Admite-se que uma lei nova pode tratar diferentemente da lei antiga determinada questão, mas revela-se, a opção legislativa, uma afronta à lógica dessa espécie contratual considerando-se seus contornos operacionais, além da impropriedade de alocá-la em seção destinada a seguros em favor de terceiro. ______________________ 1 Cabe esclarecer que também um seguro a conta própria, em que a indicação de beneficiário é feita a título gratuito, é um seguro em favor de terceiro, mas veja-se que, na Seção a que nos propusemos estudar, a referência é apenas quanto à indicação a título oneroso. Talvez isto se explique pelo fato de que o beneficiário a título oneroso tem, a partir do nascimento do contrato, um direito, embora condicional, enquanto o beneficiário a título gratuito não tem nenhum direito, a não ser com a consumação do sinistro. 2 Em muitas passagens da lei, utiliza-se da palavra beneficiário para referir-se a quem, de fato, é o segurado, detentor do interesse. 3 Prêmio global é aquele devido pelo estipulante à seguradora considerados todos os componentes do grupo segurado. Esses componentes, por sua vez, podem contribuir (seguro contributário) com o pagamento do prêmio global. Quando isto acontece, esta contribuição é a parcela que lhes compete pagar. 4 Contrato-mestre é aquele formado pelo ajuste de vontades entre estipulante e seguradora ao qual poderão aderir, num momento seguinte, pessoas aptas a integrar o grupo de segurados. 5 TZIRULNIK, Ernesto. CAVALCANTI, Flavio de Queiroz. PIMENTEL, Ayrton. O contrato de seguro de acordo com o Código Civil brasileiro. 3ª ed., São Paulo: RT, 2016, p. 297. 6 CAMPOY, Adilson José. Contrato de seguro de vida. São Paulo: RT, 2014, p. 168.
Ao longo dos últimos anos vivenciamos, no mínimo, quatro grandes episódios que modificaram nossa percepção sobre a incidência dos riscos estratégicos e suas consequências em nossas vidas: a pandemia, a guerra entre Rússia e Ucrânia, os fenômenos climáticos extraordinários que atingiram o Rio Grande do Sul e os conflitos no Oriente Médio. O Relatório de Riscos Globais 2025, elaborado pelo Fórum Econômico Mundial com apoio da Marsh McLennan, reforça esta percepção, na medida em que destaca as mudanças climáticas como uma preocupação central, associada ao aumento de eventos climáticos extremos, como ondas de calor, enchentes, incêndios florestais e furacões, impulsionados pelo uso contínuo de combustíveis fósseis. Além disso, o documento evidencia o impacto de conflitos geopolíticos, tensões geoeconômicas, desinformação e polarização social, que contribuem para a complexidade do cenário de riscos globais. Esses fatores representam desafios significativos para a gestão de riscos e a tomada de decisões estratégicas por organizações nos próximos anos. Os riscos e incertezas provocados por episódios desta natureza nos levam ao aprofundamento de, no mínimo, três grandes preocupações que impactam no desenvolvimento da Infraestrutura no Brasil: Nossos contratos possuem uma estrutura adequada de seguros e garantias para preservar o equilíbrio entre as partes, atrair investidores e financiadores?  Estamos preparados para enfrentar as catástrofes naturais?  Como implementar a resiliência climática em Infraestrutura? A estrutura de seguros e garantias prevista em um contrato de colaboração público-privada não pode ser considerada como "uma bala de prata" para combater todos os fenômenos naturais e riscos de descontinuidade contratual. Existem diversos "antídotos" que, em conjunto com uma política de seguros e garantias adequada, podem ser aplicados para amenizar as consequências econômicas, financeiras, ambientais e sociais da materialização de eventos inesperados, dentre eles: a seleção adequada das partes contratantes, da cadeia de suprimentos, contratos concebidos com matrizes de riscos personalizadas, projetos de engenharia bem elaborados, instrumentos de gestão e administração contratual, dentre outros. Especificamente em relação à estrutura de garantias, salvo na incidência de caso fortuito e força maior, é sabido que se houver necessidade de executá-las certamente falhamos em alguma etapa da gestão e administração contratual, e aí reside um dos "pontos críticos" a ser considerado: a definição do tipo, forma, conteúdo e limites das garantias contratuais. As garantias dos contratos celebrados entre entes privados devem ser estruturadas com base no "acordo de vontade entre as partes", ou seja, a definição do tipo, valor, forma de execução da garantia será pactuada livremente entre as partes, seguindo as melhores práticas de mercado. Já os contratos de natureza público-privada, necessariamente, deverão seguir a legislação de licitações e contratos administrativos. A estrutura de garantias prevista na lei 8.987/1995 (concessões) e na lei 11.079/04 (PPPs) foi concebida, à época, com base nos dispositivos presentes na lei 8.666/1993 (licitações), que, por ser anterior ao surgimento dos contratos de concessão, foi calibrada para garantir a execução de contratos de obras públicas de curto prazo. Decorridos 30 anos, surge a necessidade de rever e estruturar um novo padrão de garantias para concessões e PPPs, em conformidade com a matriz de riscos dos contratos, tendo em vista que os dispositivos de garantias previstos na atual lei de licitações 14.133/21,  seguindo os princípios da lei anterior, foram concebidos para obras públicas visando  garantir  o "sobre custo" decorrente da substituição do contratado inadimplente por outra empresa que deverá assumir a obra e concluir os serviços interrompidos. Em um contrato de concessão ou PPP, o garantidor não será o novo operador do serviço concedido, caso o atual descumpra o contrato. O papel dele será colaborar com o Poder Concedente (beneficiário da garantia) para resolver o conflito, arcando com os custos (multas, penalidades e indenizações) decorrentes da troca do operador inadimplente por outro que possa assumir o serviço. O garantidor não deverá operar diretamente o serviço concedido, até pelo fato de não possuir conhecimento técnico e operacional para isso. Nos últimos anos, observamos uma boa evolução das matrizes de riscos dos contratos de concessão e PPPs, introduzindo inovações importantes como um melhor endereçamento dos riscos ordinários e extraordinários, no entanto ainda existe muito a fazer, como exemplo: melhor definição dos conceitos de riscos extraordinários, residuais dentre outros. Devemos considerar que o comportamento climático constatado no passado já não é o mesmo do presente e, certamente, será diferente no futuro. Precisamos diminuir o grau de incertezas presentes nos contratos para  ampliar a atratividade dos leilões, inclusive do mercado segurador e ressegurador, que apesar de sua vocação natural em lidar com riscos, quando não consegue dimensionar o montante de sua responsabilidade futura, ou até mesmo os limites de seu envolvimento, ou aumenta o preço das apólices de seguros para contingenciar o desconhecido, ou simplesmente se recusa a participar do risco, fato este que contribui para escassez de seguradores interessados em assumir riscos em projetos de infraestrutura. Infraestrutura se faz com Project Finance, onde a estrutura de recebíveis proporcionará sustentabilidade ao projeto, oferecendo segurança aos financiadores e investidores, e não através do Corporate Finance, onde a capacidade financeira dos acionistas é quem banca o risco do projeto. Daí a necessidade de uma análise e dimensionamento adequado da estrutura de riscos e seguros durante toda a etapa do projeto, desde as fases pré-completion, até o atingimento do completion físico e financeiro. A matriz de riscos deve ser considerada como "espinha dorsal" dos nossos contratos e utilizada como alicerce no dimensionamento das garantias entre todas as partes e integrantes do projeto.  O Seguro Garantia é uma das principais modalidades de garantias praticadas para mitigação dos riscos de inadimplência contratual. Não é autônomo, mas sim acessório ao contrato que será objeto da garantia, e que deve contemplar em um dispositivo específico todos procedimentos e definições para execução da apólice de seguros. Um bom exemplo é a definição de Caso Fortuito e Força Maior, que apesar de constar como excludente de responsabilidades nas apólices de seguros garantia e na legislação brasileira, pode ser amparada por outras modalidades de seguros desenvolvidas especificamente para cobrir esse tipo de evento, como inundações, vendavais e outros fenômenos naturais ou extremos. No que tange à estrutura de garantias destinadas aos financiadores e investidores, embora haja avanços perceptíveis - como a maior previsibilidade na utilização do seguro garantia em contratos de financiamento com o BNDES e a possibilidade de seguradoras ajustarem as cláusulas das apólices de seguro em conformidade com a resolução CNSP 407/21 (grandes riscos) - ainda se apresenta uma oportunidade significativa para ampliar sua aplicação no mercado de capitais. Tal potencial é especialmente relevante diante do novo ciclo de investimentos previsto com a recente aprovação da legislação específica para debêntures de infraestrutura (lei 14.801/24). Embora tenhamos a ambição de estruturarmos financiamentos sob o modelo de Project Finance full non-recourse - no qual os recebíveis do próprio projeto constituem a principal garantia - reconhecemos que muitos projetos ainda serão estruturados sob a lógica do Limited Recourse, com exigência de garantias adicionais. Atualmente, essas estruturas têm se apoiado predominantemente em cartas de fiança emitidas por bancos tradicionais, os quais, em decorrência das restrições impostas pelo Acordo de Basileia III, enfrentam limitações que, além de elevar os custos operacionais, reduzem o limite de crédito disponível ao tomador junto à instituição financeira emissora da fiança. Diante das transformações no cenário econômico, tanto interno quanto externo, torna-se oportuno revisitar essa abordagem e considerar a adoção do seguro garantia do tipo Completion Bond como uma alternativa eficaz à fiança bancária, especialmente na fase pré-conclusão dos financiamentos classificados como Limited Recourse. Para isso, é essencial a existência de um programa de seguros bem estruturado e abrangente, capaz de oferecer cobertura adequada durante as etapas de implantação, comissionamento e operação do projeto. A incorporação do seguro garantia aos contratos de financiamento pode não apenas contribuir para a mitigação de riscos de forma mais eficiente, como também gerar redução dos custos dos projetos, desde que respaldada por uma matriz de riscos bem definida e uma estrutura contratual compatível com as melhores práticas de mercado. Catástrofes maturais De acordo com informações divulgadas no Atlas Digital de Desastres no Brasil e no estudo intitulado 2024: O Ano mais quente da História, os desastres climáticos no Brasil têm se tornado cada vez mais frequentes e intensos nas últimas décadas, refletindo os impactos das mudanças climáticas. O aumento das temperaturas globais e os padrões climáticos extremos têm exacerbado fenômenos como secas, enchentes e tempestades, evidenciando a urgência de implementar medidas de mitigação e promover a resiliência das comunidades mais afetadas. Entre 1995 e 2023, os prejuízos totalizaram R$ 547,2 bilhões. Nos primeiros quatro anos da década atual (2020-2023), os danos já somam R$ 188,7 bilhões, representando 80% do total da década anterior (2010-2019) e correspondendo a 0,5% do PIB nacional acumulado nesse período. Embora os dados de 2024 ainda não estejam disponíveis, espera-se que os prejuízos superem os totais das décadas anteriores, especialmente devido aos desastres no Rio Grande do Sul e queimadas em vários Estados. O prejuízo médio anual entre 2020 e 2023 foi de R$ 47 bilhões, mais que o dobro da média da década anterior (R$ 22 bilhões/ano). A taxa média de aumento dos prejuízos entre 1995 e 2023 foi de R$ 165 milhões por ano, com um crescimento de quase R$ 0,5 milhão por desastre reportado anualmente. No Brasil, a média de proteção de seguros em relação às catástrofes naturais equivale entre 5% e 10%, ou seja, a cada $ 100 de prejuízos, somente $5 a $10 são segurados. De acordo com dados divulgados por Swiss Re Institute, globalmente, esta média pode variar entre 60% e 80%. Este fato comprova a ausência da penetração do mercado de seguros no Brasil, cenário que poderá ser revertido se houver mudança cultural da população com prevenção de riscos, em conjunto com ampliação da oferta de produtos de seguros para pessoas, indústria, comercio, serviços, além de novas modalidades de seguros para amparar prejuízos decorrentes de fenômenos climáticos extraordinários, tais como seguros paramétricos climáticos e seguros para riscos catastróficos. Outro aspecto que merece reflexão adicional refere-se às perdas financeiras enfrentadas tanto por empresas privadas quanto pelo Estado, decorrentes de acidentes provocados por eventos catastróficos. Durante o período de crise e na fase de retomada das atividades econômicas, profissionais liberais e empresas frequentemente interrompem a comercialização de produtos e serviços, resultando em uma redução drástica da atividade econômica. Tal cenário impacta diretamente o Estado devido à queda na arrecadação de impostos. No âmbito do setor privado, existem modalidades de seguros voltadas à cobertura de perdas de receita ou lucros cessantes. Contudo, o setor público permanece vulnerável, uma vez que, mesmo na hipótese remota de oferta de produtos de seguros destinados à proteção do Estado, as restrições fiscais e orçamentárias, predominantes na maioria dos Estados e municípios brasileiros, dificultam a aquisição dessas apólices. Independentemente dessa limitação, há iniciativas em andamento voltadas à estruturação de programas de seguros para fundos de catástrofe de Estados e municípios. Destaca-se, nesse contexto, a pesquisa coordenada pelo professor Gesner de Oliveira, do Instituto de Inovação em Seguros e Resseguros da FGV, cujo objetivo é desenvolver um manual de conceitos e práticas para seguros contra eventos climáticos extremos voltados a municípios. O estudo está sendo realizado no município de Ribeirão Preto e abrange fenômenos climáticos como enchentes, secas e suas respectivas consequências. Além disso, o projeto oferece uma perspectiva sobre a drenagem urbana e o reúso de água como fatores de mitigação de riscos. Resiliência climática A reconstrução de ativos de infraestrutura afetados por fenômenos climáticos extraordinários exige a implementação de técnicas de engenharia resiliente. Sem essa abordagem, a ocorrência de novos eventos extremos poderá gerar perdas semelhantes às observadas em incidentes anteriores. Para que a engenharia resiliente seja efetivamente aplicada, além de um projeto de engenharia bem estruturado e de previsões adequadas acerca das mudanças climáticas futuras, é imprescindível a elaboração de um orçamento que contemple investimentos em serviços e materiais capazes de mitigar os efeitos de fenômenos climáticos extremos no futuro. O financiamento de infraestrutura resiliente dependerá de recursos financeiros que podem ser provenientes tanto do Estado, do contratante ou do mercado segurador. No âmbito da contratação de apólices de seguro destinadas a garantir a recuperação de ativos danificados, seja na fase de construção ou na operação, os valores segurados são definidos com base no uso, no estado de conservação e no valor de reposição dos bens existentes. Assim, a contratação de seguro não ocorre por um valor diferente daquele constatado e reconhecido como valor de reposição. Algumas modalidades de seguros permitem a contratação de coberturas adicionais prevendo a reposição do bem por, no máximo, duas vezes o valor atual depreciado pelo seu uso, estado e conservação. Normalmente aplicável para seguros de máquinas e equipamentos. Vale destacar que a legislação e a regulação do mercado de seguros impõem limites que impedem que um bem seja segurado por um valor superior ao seu valor de mercado, a fim de evitar fraudes contratuais. Contudo, ao analisarmos os recentes acidentes ocorridos no Rio Grande do Sul, que demandaram a reconstrução de ativos de infraestrutura devido a eventos climáticos extremos, fica evidente que não considerar a reconstrução desses ativos com um novo padrão de engenharia capaz de suportar volumes maiores de água, ventos mais intensos ou temperaturas elevadas configura uma oportunidade perdida de implementar melhorias essenciais. Assim, na eventualidade de novos fenômenos climáticos, esses ativos poderão ser novamente danificados, agravando os prejuízos. Por exemplo, a reconstrução de uma ponte sobre um rio, que foi danificada por um volume de água superior ao histórico anterior, deveria ser realizada com um método construtivo diferenciado, com estrutura reforçada e capacidade aumentada de resistência. Embora esse investimento seja maior do que a simples reconstrução nos mesmos termos e condições anteriores, a questão central reside em quem deverá arcar com o custo adicional decorrente do upgrade do ativo, de modo a torná-lo capaz de suportar futuros eventos climáticos extremos. Até o momento, os modelos tradicionais de seguros não oferecem uma solução adequada para essa conjuntura. Como alternativa, podem ser consideradas novas modalidades de seguros, como o paramétrico climático, cuja indenização não depende da apuração de prejuízos específicos ou de uma avaliação detalhada dos danos ocasionados pelo evento climático. Em vez disso, essa modalidade baseia-se em parâmetros preestabelecidos e objetivos, que, ao serem atingidos, acionam automaticamente o pagamento de indenização ao segurado. Antes da contratação do seguro paramétrico, são definidos critérios objetivos relacionados ao evento climático, tais como intensidade do vento, volume de chuva, altura de ondas, temperatura, entre outros. Esses parâmetros são fundamentados em dados históricos, modelos meteorológicos e análises técnicas. Durante a vigência do contrato, o evento climático é monitorado por fontes confiáveis, como estações meteorológicas, satélites ou centros de previsão meteorológica. Quando os dados indicam que os limites predefinidos foram atingidos ou ultrapassados, considera-se que o evento ocorreu, e o pagamento da indenização é efetuado de forma automática. Embora ainda pouco desenvolvido no Brasil, o seguro paramétrico climático apresenta-se como uma solução eficiente para mitigar riscos associados a eventos extremos, oferecendo uma resposta rápida e objetiva. Essa modalidade é especialmente útil em situações de desastres naturais, nas quais a agilidade na assistência e na reparação dos danos é fundamental para a recuperação das comunidades afetadas. Portanto, tratar a engenharia resiliente como prioridade na construção ou reconstrução de ativos de infraestrutura é fundamental para preservar esses ativos frente a eventos climáticos extremos, além de evitar disputas judiciais ou contratuais entre segurados, seguradoras, poder concedente e concessionários. Essa abordagem visa garantir maior segurança e resiliência diante de futuros fenômenos climáticos, minimizando os riscos de danos severos e promovendo uma gestão mais eficiente dos recursos públicos e privados. Conclusão Questões complexas não admitem respostas simplificadas; assim como, para cada sintoma apresentado, o médico prescreve um tratamento alinhado ao diagnóstico, o nosso planeta também requer um tratamento adequado. Estamos diante de uma crise climática global, cuja gravidade exige a intensificação das ações recomendadas: a transição energética e a descarbonização, essenciais para mitigar os efeitos colaterais já evidentes e que podem se intensificar caso não sejam adotadas medidas de adaptação, seja por meio de intervenções de engenharia resiliente ou por estratégias não relacionadas à engenharia. Como medidas de adaptação de não engenharia, que se mostram fundamentais para atrair e ampliar a capacidade de financiamento, investimento e segurabilidade, destacam-se as seguintes ações: Aperfeiçoar os capítulos relativos à alocação e transferência de riscos previstos nos editais e contratos de concessão, limitando a responsabilidade do concessionário aos riscos ordinários, conhecidos e transferíveis. Os riscos extraordinários devem ser alocados ao Poder Concedente; Revisitar as cláusulas que tratam do reequilíbrio dos contratos, na incidência de caso fortuito e força maior, normalmente ancoradas na impossibilidade de contratação de seguros, sem prever limites dos custos para transferência deste risco; Definir de forma precisa os bens que integram a concessão e estabelecer claramente a forma de sua reversão ao término dos contratos; Estabelecer os valores a serem considerados pelos licitantes na fase pre-licitatória, para a formulação do CAPEX - Capital Expenditure e OPEX - Operational Expenditure; Determinar o DMP - Dano Máximo Possível e a PMP - Perda Máxima Provável, que servirão como parâmetros para os licitantes, seguradores e resseguradores, possibilitando o dimensionamento adequado dos riscos envolvidos; Estipular os tipos de seguros e os limites mínimos a serem contratados, em conformidade com a matriz de riscos de cada contrato; Estabelecer prazo para revisão periódica do programa de seguros e garantias, visando adaptá-los à realidade e ao risco de cada projeto (3 a 5 anos); Implementar novas modalidades de seguros para proteção dos eventos climáticos extremos, riscos cibernéticos, ambientais dentre outros; Instrumentalizar os fundos de catástrofes dos Estados e municípios para combater as despesas emergenciais necessárias ao atendimento imediato da população afetada. Investir na revisão e aprimoramento desses conceitos reduzirá incertezas nos contratos de colaboração público-privada e proporcionará maior atratividade aos projetos. Também contribuirá para reduzir o risco de seleção adversa nos leilões de infraestrutura, uma vez que todos os licitantes seguirão premissas uniformes na formulação de suas propostas ao Poder Concedente, que, por sua vez, entregará à sociedade uma infraestrutura urbana, logística e social de qualidade, atendendo às necessidades da população de forma eficiente e sustentável.
quarta-feira, 24 de setembro de 2025

A regulação do sinistro na lei 15.040/24

A lei 15.040/24 dispôs sobre normas de seguro privado, revogando os dispositivos do CC de 2002 em relação ao tema. Inovação importante da nova legislação foi a inclusão, na Seção XIII, de dispositivos relativos à regulação e liquidação de sinistros (arts. 75 a 88). O contrato de seguro gera uma relação dinâmica. Ocorrido o sinistro, o direito do segurado não é instantâneo: haverá necessidade de liquidar e acertar a situação de fato para se verificar se ela se ajusta ao contrato e, só aí, definir o direito do segurado à indenização. De fato, a obrigação da seguradora não é automática, mas sujeita a condição: concretização do risco ou verificação do sinistro. É preciso verificar se restou configurado in concreto o dano a interesse do segurado coberto pelo seguro, pois o segurador não está obrigado a pagar indenização senão em contrapartida à configuração das hipóteses fáticas (riscos) expressamente consignadas na apólice. Por essa razão, há de existir um procedimento para apurar se um determinado fato noticiado pelo segurado e não presenciado pelo segurador inclui-se dentre aqueles que desencadearão o pagamento da indenização (contraprestação). Trata-se de verdadeiro processo de apuração de fatos, onde serão coletadas todas as informações e realizadas diligências tendentes a elucidar possíveis dúvidas quanto aos fatos investigados. O CC de 2002 não cuidou da disciplina da "regulação do sinistro". Apenas previu que, "sob pena de perder o direito à indenização", o segurado deverá participar o sinistro ao segurador, "logo que o saiba", devendo, ainda, tomar "as providências imediatas para minorar-lhe as consequências" (art. 771). A regulação do sinistro configura procedimento indispensável ao cumprimento do contrato de seguro, como sempre se reconheceu na literatura especializada. Há interesses de ordem pública no âmbito das operações de seguro, o qual se insere no amplo campo da mutualidade, de modo que o sucesso da atividade do segurador depende do zelo para que somente sejam pagas indenizações que correspondam exatamente aos riscos acobertados pelo contrato. Do contrário, o equilíbrio da carteira de seguros pode arruinar-se, em prejuízo de todos os participantes do grupo que mantém o equilíbrio das operações geridas pelo segurador. Bruno Miragem e Luiza Petersen ensinam que a regulação integra a fase de execução do contrato, constituindo "etapa contratual voltada ao adimplemento", tendo como função determinar "a existência de garantia para os fatos narrados no aviso de sinistro e sua extensão, com a mensuração do valor a indenizar ou do capital segurado a ser pago"1. Prepara, então, o cumprimento da obrigação pelo segurador, uma vez que define o an e o quantum debeatur. De fato, tão integrado à prestação indenizatória, o procedimento regulatório deve ser considerado como parte do objeto obrigacional, que, juridicamente, corresponde "a toda atividade projetada para satisfação do credor"2. Em outras palavras: ocorrido o sinistro, surge o direito do segurado ou do beneficiário à indenização, mas, para exigir seu cumprimento, tem de ter superado o estágio da regulação, a ser praticado por provocação do segurado e mediante diligência do segurador. Eis por que, funcionalmente, o procedimento regulatório integra a "conduta a prestar", a cargo do segurador3. Uma vez que, dentro da sistemática da relação obrigacional do contrato de seguro, a regulação do sinistro é o instrumento e a condição para que a indenização seja paga ao segurado, em boa hora o legislador incluiu na lei 15.040/24 dispositivos sobre essa importante fase contratual, embora não a tenha regulado de forma pormenorizada. O art. 75 da lei estabelece que a reclamação do pagamento do sinistro determina a "prestação dos serviços de regulação e liquidação, que têm por objetivo identificar as causas e os efeitos do fato comunicado pelo interessado e quantificar em dinheiro os valores devidos pela seguradora" (g.n.). Segundo a lei "cabem exclusivamente à seguradora a regulação e a liquidação do sinistro" (art. 76, caput), podendo, no entanto, contratar regulador e liquidante para desenvolver esse serviço. Mas a lei ressalva que somente a seguradora pode decidir sobre "a cobertura do fato comunicado pelo interessado e o valor devido ao segurado" (parágrafo único do art. 76).  Como procedimento que é, preparatório de possíveis pretensões que possam eventualmente surgir para as partes após a sua finalização, esse processo deve ter um curso dialético, contraditório e bilateral. A lei não previu detalhadamente o procedimento, mas estabeleceu cumprir ao regulador e ao liquidante do sinistro "informar os interessados de todo o conteúdo de suas apurações, quando solicitado", respeitadas as informações consideradas confidenciais ou sigilosas por lei (art. 80, II). Assim, estabeleceu a necessidade de se garantir o contraditório. Como se trata de procedimento conduzido pelo segurador, mas que tem por objetivo aferir a existência do direito do segurado, a este deve ser oportunizada ampla participação em todas as fases da regulação, permitindo-lhe o acompanhamento de todas as diligências desencadeadas pelo regulador nomeado pelo segurador, bem como a impugnação de laudos técnicos e o direito de opinar sobre as providências a serem adotadas. Só mediante o respeito a esses direitos é que a regulação terá atingido sua finalidade. Ademais, é de se observar também o princípio da boa-fé, tão caro ao direito pátrio e especialmente aos contratos de seguro. Ainda em relação à regulação e liquidação do sinistro, a nova lei trouxe importante inovação ao prever que o relatório produzido nessa fase contratual é documento comum às partes (art. 82). Por isso, negada a cobertura, no todo ou em parte, a seguradora deverá entregar aos interessados os documentos produzidos ou obtidos na regulação que fundamentem a sua decisão, ressalvados os "documentos e demais elementos probatórios que sejam considerados confidenciais ou sigilosos por lei ou que possam causar danos a terceiros" (art. 83 e parágrafo único). A doutrina pátria, antes mesmo da lei, já considerava esses documentos como sendo comuns às partes: "Todos os atos praticados na regulação do sinistro deverão ser registrados em relatório. Outrossim, todos os documentos coletados e produzidos na regulação deverão ser considerados comuns às partes (segurado/terceiro e segurador), se relevantes para a tomada da decisão a respeito da cobertura e tenham sido coletados e produzidos com a participação de ambas as partes. Ressalvam-se apenas aqueles reputados confidenciais ou sigilosos"4 (g.n.). No mesmo sentido o entendimento dos tribunais estaduais: (i) "Em obrigações decorrentes de contrato de seguro, a parte tem o dever de exibir os documentos produzidos dentro da regulação do sinistro, porquanto se trata de documento comum. Ante as peculiaridades do caso, existindo documentos sigilosos e estranhos à demanda principal, o magistrado deverá selecionar aqueles comuns e relevantes para o deslinde do feito para posterior juntada aos autos. Recurso provido"5 (g.n.). (ii) "Medida cautelar - Exibição judicial de documento - Admissibilidade - Seguradora que se recusa a pagar a indenização devida, advinda de contrato de seguro de veículos, com a alegação de que o automóvel já estava em outro país, na data em que o segurado alegou ter ocorrido o roubo. Pretensão do segurado de que seja exibida cópia integral do procedimento de regulação do sinistro - Admissibilidade - Hipótese abrangida pelo art 844, II, do CPC - Documento que pode ser tido por comum, por estar ligado a uma relação jurídica de que participa o autor e que envolve ambas as partes - Documento em poder de uma das partes que envolve relação jurídica que prejudica a outra - Ação procedente - Sentença confirmada"6 (g.n.). Entretanto, a 4ª turma do STJ, em julgamento sobre o tema, entendeu que a seguradora não estava obrigada a apresentar todos os documentos da regulação ao segurado, pois isto trazer desequilíbrio concorrencial à empresa: "Ainda, como é notório e admitido na peça exordial, as seguradoras usualmente se valem de empresas terceirizadas especializadas para a realização do procedimento, sendo evidente que uma condenação cingindo-se apenas à ré ocasionaria sérias restrições para a recorrente, uma vez que, por óbvio, a entrega de toda a documentação exporia o modo de atuar, isto é, o próprio know-how da reguladora terceirizada, que, como é de sabença, é, por natureza, elemento de propriedade industrial sigiloso. Igualmente, apresentar todos os documentos obtidos no procedimento de regulação, a toda evidência, representaria extensa exposição ao mercado do modo de apurar da seguradora e de sua parceira reguladora (know-how de ambas), trazendo desequilíbrio concorrencial, risco de ocasionar dissabores, danos morais e materiais a segurados e terceiros beneficiários de seguro, como também dificultando sobremaneira a eficiência da regulação de seus contratos de seguro (facilitação de fraudes)"7 (g.n.). Como se vê, o legislador superou o entendimento adotado pelo STJ, prestigiando a corrente que considera comum os documentos relativos à regulação do sinistro. Desta forma, salvo os elementos probatórios confidenciais e que puderem causar prejuízo a terceiro, a seguradora está obrigada a apresentar os documentos produzidos naquela fase contratual (arts. 82 e 83). De fato, a jurisprudência, embora não seja fonte primária ou originária do direito, exerce importante função na interpretação e aplicação da lei, quer no preenchimento das lacunas, quer na uniformização da inteligência dos enunciados das normas quer formam o ordenamento. Ao concretizar a norma legal genérica e abstrata, adequando seus enunciados às contingências da infinita variação dos fatos da convivência humana, o juiz desempenha uma função criativa, que não se confunde com a do legislador, mas que nela se insere, em papel complementar e secundário. Vale dizer: não pode o julgador negar ou ignorar a norma legislada, mas pode e deve complementá-la, nas lacunas e nas aplicações e interpretações exigidas pela visão sistemática da ordem jurídica como um todo8. Nesse contexto, em razão da expressa disposição dos arts. 82 e 83 da nova lei, não se mostra mais adequado o entendimento anterior do STJ, de modo que, ao final do procedimento de regulação do sinistro, a seguradora é obrigada a apresentar ao segurado ou interessado o relatório produzido e todos os documentos que fundamentaram a sua recusa ao pagamento da indenização. A lei 15.040 estabeleceu, ainda, prazo máximo (i) para que a seguradora finalize a regulação (30 dias), sob pena de decair do direito de recusar a cobertura (art. 86), e (ii) para pagamento da indenização ou do capital estipulado (também 30 dias) (art. 87). Referidos prazos, contudo, podem ser majorados pela autoridade fiscalizadora, em casos de maior complexidade para apuração do sinistro. _______ 1 Miragem, Bruno; PETERSEN, Luiza. Direito dos seguros. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 243. "A regulação será instrumento para o cumprimento e, simultaneamente, parte integrante do cumprimento" (TZIRULNIK, Ernesto. Regulação de sinistro. 3. ed., São Paulo: Max Limonad, 2001, p. 35). 2 BUERES, Alberto J. Responsabilidad civil de las clínicas y establecimientos médicos. 2. ed., Buenos Aires: Abaco, 1981, pp. 130 e 140, apud TZIRULNIK, Ernesto, Regulação de Sinistro cit., p. 40. 3 AGOGLIA, Maria M. Responsabilidad por incumplimiento contractual. Buenos Aires: Hammurabi, 1993, pp. 47/48. 4 MIRAGEM, Bruno; PETERSEN, Luiza. Direito dos seguros cit., p. 254. 5 TJ/MG, 14ª Câmara Cível, Ag. 1.0024.04.285632-8/005, Rel. Des. Estêvão Lucchesi, ac. 10.04.2014, data da publicação da súmula 25/4/2014. 6 TJ/SP, 29ª Câmara de Direito Privado, Ap. 9174840-60.2005.8.26.0000, Rel. Des. Djalma Lofrano Filho, ac. 11/5/2006, data de publicação 16/8/2006. 7 Voto do Relator do STJ, 4ª T., REsp. 1.836.910/SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, ac. 29.09.2022, DJe 8/11/2022. 8 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. 58 ed., Rio de Janeiro: Forense, 2025, v. III, n.º 608, p. 687.
Os contratos de seguro no Brasil são regidos pelas normas legais (até o momento, o Código Civil e outras legislações esparsas, como o decreto-lei 73/19661 e LC 126/20072) e infralegais, essas últimas publicadas, principalmente, pelo CNSP - Conselho Nacional de Seguros Privados e pela Susep - Superintendência de Seguros Privados. Com o advento da lei 15.040/24, a "lei do contrato de seguro", naturalmente, algumas resoluções e circulares precisarão ser adaptadas, ou até mesmo criadas, para regulamentar pontos da nova lei que demandam critérios e regras mais específicos. Em 2/7/25, a Susep divulgou ao mercado um ofício3 para informar que está atuando para adequar o seu marco regulatório à lei do contrato de seguro como parte do Plano de Regulação de 2025. Esclareceu que a regulamentação infralegal irá "elucidar alguns pontos necessários" e "editar complementos importantes", mas que a lei 15.040/24 deverá ser seguida para todos os fins. Mesmo sendo sabido que a lei do contrato de seguro deve ser cumprida integralmente a partir de sua vigência, em 11/12/25, alguns pontos devem ser adequadamente regulados pela Susep ou pelo CNSP, para atender a comandos legais ou evitar insegurança jurídica para o mercado. De modo a fortalecer o debate, trazemos a seguir cinco artigos da lei 15.040/24 que, no nosso entender, demandarão uma análise atenta da autarquia. 1 - Proposta de resseguro Art. 60. [...] § 1º O contrato de resseguro é funcional ao exercício da atividade seguradora e será formado pelo silêncio da resseguradora no prazo de 20 dias, contado da recepção da proposta. Atualmente, o resseguro é disciplinado pela resolução CNSP 451/22 e pela circular Susep 683/22, mas não há detalhamento, nestes normativos, sobre como deve ser realizada uma proposta para ofertar os riscos pela seguradora ao ressegurador. As normas se preocupam, principalmente, com o cumprimento da oferta preferencial, qual seja, o direito de preferência que os resseguradores locais possuem em relação aos demais resseguradores, e com a comprovação da insuficiência de oferta de capacidade dos resseguradores locais e estrangeiros para fins de transferência de riscos com resseguradores não autorizados a operar no país. Ambos os normativos não preveem, assim, o que constitui uma proposta de resseguro, quais as condições que devem ser apresentadas, qual seria o seu conteúdo mínimo ou o meio de envio da consulta formal. A lei do contrato de seguro também não elenca essas especificidades. Observa-se, portanto, que não há um regulamento específico sobre o modelo de envio da proposta aos resseguradores, porém, considerando que na dinâmica imposta pela nova lei o silêncio importará em anuência, previsão que não encontra similaridade nos países que possuem leis regulando o contrato de seguro,4 é razoável pensar que o envio de um simples e-mail pela seguradora com informações básicas sobre o risco, como é feito atualmente, pode não ser mais suficiente para dar início ao prazo de 20 dias para a análise do ressegurador. Nesse sentido, questiona-se: a proposta deverá ser formal e escrita? Deverá seguir algum modelo prévio? Eventualmente, pode ser elaborado um formulário que exija a apresentação de informações específicas? Quais informações deverão ser passadas na oferta aos resseguradores? Ditas informações serão iguais para resseguros automáticos e facultativos? A ordem firme deixará de ter natureza de proposta, como em alguns casos funciona hoje? Deverá haver algum destinatário previamente informado à Susep, para fins de estabelecimento dessa comunicação? Estes são alguns pontos que merecem ser debatidos com o mercado, por meio de consulta pública a ser promovida pela Susep, para traçar parâmetros acerca da realização da proposta. Essa necessidade advém, principalmente, da possibilidade de as seguradoras afirmarem ter se esvaído o prazo e o resseguro ter sido tacitamente aceito, e as resseguradoras argumentarem em sentido oposto, que, na realidade, o prazo não havia se iniciado devido à falta de informações para composição da proposta. 2 - Repositório de decisões arbitrais Art. 129. [...] Parágrafo único. A autoridade fiscalizadora disciplinará a divulgação obrigatória dos conflitos e das decisões respectivas, sem identificações particulares, em repositório de fácil acesso aos interessados. Uma obrigação da Susep, determinada pela própria Lei, é a criação de um repositório de decisões de resolução de conflitos por meios alternativos. Isso significa que todos os conflitos resolvidos extrajudicialmente pelos métodos de conciliação, mediação ou arbitragem, deverão ser disponibilizados à autarquia para serem inseridos nesse repositório, para fins de acesso pelos interessados. Necessário, portanto, que a Susep determine qual o meio de envio dessas decisões, quem são os interessados referidos na lei e se há alguma limitação a eles, uma vez que os sujeitos não poderão ser identificados, bem como a forma de acesso, se por autenticação via SEI, por exemplo, ou acesso público. A existência desse repositório de decisões irá reforçar teses jurídicas e aumentará as fontes de busca sobre o seguro, certamente enriquecendo as discussões judiciais. Porém, é preciso que a Autarquia discipline os mecanismos de envio e acesso, bem como a forma como as decisões serão disponibilizadas e quais trechos serão suprimidos, com vistas a evitar qualquer problema na confidencialidade dos dados. Considerando, no entanto, a especificidade das decisões e o baixo número de arbitragens envolvendo o mercado, é possível dizer que será um desafio para a Susep divulgar os documentos sem revelar as partes envolvidas na Arbitragem. Ainda quanto a esse dispositivo, vale dizer que a lei do contrato de seguro, de espécie ordinária, ampliou a competência da Susep, atributo que coube ao decreto-lei 73/1966, recepcionado pela Constituição Federal com status de lei complementar. A lei do contrato de seguro, portanto, invadiu a competência estabelecida pela lei complementar. 3 - Pagamento de capital abandonado ao Funcap Art. 115. [...] § 4º Se a seguradora, ciente do sinistro, não identificar beneficiário ou dependente do segurado para subsistência no prazo prescricional da respectiva pretensão, o capital segurado será tido por abandonado, nos termos do inciso III do caput do art. 1.275 da lei 10.406, de 10/1/2002 (Código Civil), e será aportado no Funcap - Fundo Nacional para Calamidades Públicas, Proteção e Defesa Civil. O que é feito com o montante do capital segurado nos casos em que não é possível localizar o beneficiário de um seguro de vida? Inicialmente, paga-se metade ao cônjuge e metade aos herdeiros (art. 792 do Código Civil e art. 115 da lei do contrato de seguro). Se não existirem, o pagamento é destinado a quem provar que dependia economicamente do segurado (art. 792, § único, do Código Civil e art. 115, § 3º, da lei do contrato de seguro). A dúvida resiste, porém, nos casos em que não se localiza ninguém a quem o capital segurado deverá ser pago. Atualmente, o decreto-lei 5.384/1943 prevê que, nesse caso, a União será a beneficiária, mas não há qualquer menção sobre como será a forma desse pagamento. Ou seja, não são elencados órgãos específicos do Governo Federal a quem as quantias serão destinadas, o que dificulta o procedimento por parte das seguradoras. Sobre este tema, a lei 15.040/24 inovou e passou a determinar que o capital segurado será considerado abandonado, devendo ser destinado ao Funcap - Fundo Nacional para Calamidades Públicas, Proteção e Defesa Civil. O objetivo deste fundo é arrecadar recursos que permitam o auxílio da União em situações de calamidade, como as decorrentes de desastres naturais, de forma que o capital segurado "sem dono" deverá ser destinado para este fim. Nesse sentido, a lei cumpre com a determinação do decreto-lei 5.384/1943, ao prever que o valor será destinado à União, e busca sanar o problema sobre qual órgão deverá receber a quantia ao indicar a Funcap. Ocorre que a forma de aporte ao Funcap permanece sem regramento, de modo que deverá ser regulada pela Susep, com especial atenção para a caracterização do abandono do capital segurado a partir da obtenção de provas que permitam a caracterização do prazo prescricional de três anos, nos termos do art. 126, III, da lei do contrato de seguro. Esta questão poderá ganhar especial relevância para os casos de morte presumida do segurado, em que será preciso seguir os trâmites previstos no Código Civil. Nesse sentido, imagina-se que a Susep disciplinará, por meio de norma, como será a comprovação, pelas seguradoras, de que empreenderam todos os esforços na tentativa de localização do beneficiário. Além disso, também é aguardada a disciplina da forma de realização do referido aporte ao Funcap e sua comprovação à Susep, que poderá ser por meio do FIP, evitando-se o aumento de custos na operação das supervisionadas. Por fim, espera-se que a regulação também enfrente aspectos como a falta de documentação suficiente para a regulação e liquidação do sinistro, ainda que a seguradora esteja "ciente do sinistro". 4 - Critérios comerciais e técnicos de subscrição Art. 51. Os critérios comerciais e técnicos de subscrição ou aceitação de riscos devem promover a solidariedade e o desenvolvimento econômico e social, vedadas políticas técnicas e comerciais conducentes à discriminação social ou prejudiciais à livre iniciativa empresarial. Trata-se de uma norma programática, cujo conteúdo é propositalmente vago e, assim, é relevante que a Susep elabore norma para discipliná-la. É cabível que a autarquia determine o que pode configurar uma política que conduza à discriminação social ou prejudique a livre iniciativa, bem como quais seriam as formas de promover a solidariedade e o desenvolvimento econômico e social, uma vez que a aceitação de riscos está sujeita a esses critérios. As regras sobre taxonomia sustentável e a resolução CNSP 473/24, que trata de seguros sustentáveis, por exemplo, poderão ser alteradas ou utilizadas como base para o desenvolvimento de outros normativos, devendo todos eles estar em consonância com o previsto na lei do contrato de seguro. Ademais, também é relevante que sejam disciplinadas as consequências para os casos de não atendimento da norma, como multas e suspensão do produto. A título de ilustração, vale referir ao art. 15º da lei de seguros de Portugal (decreto-lei 72/2008), especialmente os numerais 2 e 3, no sentido de demonstrar um critério a propósito da licitude do que poderá ser feito pelas seguradoras em termos de subscrição: "Artigo 15.º Proibição de práticas discriminatórias 1 - Na celebração, na execução e na cessação do contrato de seguro são proibidas as práticas discriminatórias em violação do princípio da igualdade nos termos previstos no art. 13.º da Constituição. 2 - São consideradas práticas discriminatórias, em razão da deficiência ou em risco agravado de saúde, as acções ou omissões, dolosas ou negligentes, que violem o princípio da igualdade, implicando para as pessoas naquela situação um tratamento menos favorável do que aquele que seja dado a outra pessoa em situação comparável. 3 - No caso previsto no número anterior, não são proibidas, para efeito de celebração, execução e cessação do contrato de seguro, as práticas e técnicas de avaliação, selecção e aceitação de riscos próprias do segurador que sejam objectivamente fundamentadas, tendo por base dados estatísticos e actuariais rigorosos considerados relevantes nos termos dos princípios da técnica seguradora. 4 - Em caso de recusa de celebração de um contrato de seguro ou de agravamento do respectivo prémio em razão de deficiência ou em risco agravado de saúde, o segurador deve, com base nos dados obtidos nos termos do número anterior, prestar ao proponente informação sobre o rácio entre os factores de risco específicos e os factores de risco de pessoa em situação comparável mas não afectada por aquela deficiência ou risco agravado de saúde, nos termos 3 a 6 do art. 178.º 5 - Para dirimir eventuais divergências resultantes da decisão de recusa ou de agravamento, pode o proponente solicitar a uma comissão tripartida que emita parecer sobre o rácio entre os seus factores de risco específicos e os factores de risco de pessoa em situação comparável mas não afectada por aquela deficiência ou risco agravado de saúde. 6 - O referido parecer é elaborado por uma comissão composta por um representante do Instituto Nacional para a Reabilitação, I. P., um representante do segurador e um representante do Instituto Nacional de Medicina Legal, I. P. 7 - O segurador, através do seu representante na comissão referida nos n.os 5 e 6, tem o dever de prestar todas as informações necessárias com vista à elaboração do parecer, nomeadamente, indicando as fontes estatísticas e actuariais consideradas relevantes nos termos do n.º 3, encontrando-se a comissão vinculada ao cumprimento do dever de confidencialidade. 8 - O parecer emitido pela comissão, nos termos do n.º 6, não é vinculativo. 9 - A proibição de discriminação em função do sexo é regulada por legislação especial." 5 - Definição de prazos para a regulação e a liquidação de sinistros Art. 86. [...] § 5º A autoridade fiscalizadora poderá fixar prazo superior ao disposto no caput deste artigo para tipos de seguro em que a verificação da existência de cobertura implique maior complexidade na apuração, respeitado o limite máximo de 120 dias. Art. 87. [...] § 5º A autoridade fiscalizadora poderá fixar prazo superior ao disposto no caput deste artigo para tipos de seguro em que a liquidação dos valores devidos implique maior complexidade na apuração, respeitado o limite máximo de 120 dias. O principal ponto que a lei 15.040/24 deixa explicitamente pendente de regulação pela Susep diz respeito aos prazos para regulação e liquidação daqueles seguros cujos sinistros são mais complexos, o que se trata de uma referência implícita aos seguros de grandes riscos e outros que, por sua vultuosidade financeira ou operacional, também demandem prazos mais longos. Em casos de seguros para grandes obras, seguros marítimos, nucleares, que envolvam empresas mundialmente reconhecidas, além dos demais citados na resolução CNSP 407/21, natural que a regulação de um sinistro requeira maior atenção por parte da seguradora, de modo que os 30 dias previstos em lei podem ser insuficientes. Isso porque, além de serem sinistros complexos e muitas vezes de alto valor envolvido, também poderão demandar análises técnicas especializadas que superam a expertise dos analistas e reguladores normalmente contratados pela seguradora. Não se pode descuidar ainda daqueles casos em que a análise envolve a apuração de eventual fraude, o que deverá ser cuidadosamente avaliado na regulação devido aos impactos no custo dos prêmios, como já bem pontuado pelo STJ.5 Por essa razão, será dever da Susep indicar em quais seguros o prazo para a análise do sinistro e a apuração de eventuais valores devidos a título de indenização será superior, chegando ao máximo de 120 dias. O critério para a escolha dos seguros, bem como para a determinação dos prazos, é algo que demandará publicidade por parte da Autarquia, mas certamente renderá grandes discussões no mercado securitário. A título de sugestão, refere-se à diretiva europeia 2009/138, de 25/11/2009, e aos critérios nela estabelecidos. 6 - Conclusão     Diante de todo o exposto, observa-se que a lei do contrato de seguro inaugurou um marco normativo específico, mas também deixou aspectos ainda em aberto, que deverão ser detalhados e regulamentados pela Susep e pelo CNSP. Como informado pela Autarquia, em breve devem ser divulgadas consultas públicas para a atualização regulatória que possibilitem a participação ativa do mercado, com vistas a construir uma regulação mais clara e eficiente da lei 15.040/24. Por força do art. 128 da lei do contrato de seguro, a Susep, ao elaborar estes atos normativos, não poderá contrariar a lei e deverá atuar para a proteção dos interesses dos segurados e de seus beneficiários, devendo esta proteção estar atenta ao tipo de segurado que está sendo protegido. Se para os seguros massificados o interesse dos segurados é ter regras fixas e bem definidas, para os seguros de grandes riscos, por outro lado, o interesse do segurado é por maior liberdade negocial, o que deverá guiar a atuação da autarquia. Com este artigo, espera-se ter jogado luz em pontos que demandarão especial atenção da Susep, com o fim de auxiliar o mercado segurador na participação nas consultas públicas, esclarecendo algumas dificuldades que poderão surgir caso as normas legais não sejam adequadamente reguladas. ___________ 1 Dispõe sobre o Sistema Nacional de Seguros Privados, disciplina as operações de seguros e resseguros e as operações de proteção patrimonial mutualista e dá outras providências. 2 Dispõe sobre a política de resseguro, retrocessão e sua intermediação, as operações de co-seguro, as contratações de seguro no exterior e as operações em moeda estrangeira do setor securitário. 3 Ofício Circular Eletrônico nº 1/2025/SUPERINTENDENTE/SUSEP. 4 Como exemplo, citamos Portugal (Decreto-Lei nº 72/2008), Espanha (Lei nº 50/1980), Alemanha (Versicherungsvertragsgesetz - VVG, de 2008), França (Code des Assurance - Ordonnance nº 2015-378) e Argentina (Lei nº 17.418/1967). 5 STJ, REsp n. 1.836.910/SP, rel. Min. Luis Felipe Salomão, 4ª Turma, j. em 27 set. 2022.
Judicialização Diante do aumento na judicialização de questões relacionadas ao direito médico e da saúde, a responsabilidade civil do médico ganha destaque no Direito contemporâneo, dado o impacto que eventuais falhas ou omissões na prestação dos serviços médicos podem causar à vida e à integridade dos pacientes. O profissional médico está cada vez mais exposto a riscos jurídicos crescentes. Os dados mais recentes do CNJ evidenciam uma intensa e contínua judicialização da saúde no Brasil, especialmente em ações relacionadas a tratamentos e erro médico. Em 2024, foram registrados 663.8641 novos processos na área da saúde, um aumento de 16,8% em relação a 2023. Especificamente, o tratamento médico-hospitalar lidera as disputas com 157.155 novas ações em 2024, e envolvem desde pedidos de tratamentos até indenizações por supostos erros profissionais. No primeiro trimestre de 2025 esta tendência se manteve forte, razão pela qual o pronunciamento do CNJ qualificou este número como "epidemia judicial"2. Esses dados evidenciam que o profissional médico está cada vez mais exposto a riscos jurídicos crescentes, o que reforça a necessidade de proteção e exige atenção e diligência não só para a aplicação da técnica mais adequada, como também para a produção de evidências necessárias para a melhor instrução do paciente e decisões a serem executadas.  Tal contexto origina-se diretamente do dever jurídico que se impõe ao médico de reparar os danos decorrentes de sua atuação, desde que comprovada a ocorrência de ato ilícito tipificado no art. 186 do CC, com nexo de causalidade entre sua conduta e o dano experimentado pelo paciente, além dos aspectos relacionados à culpabilidade - seja por negligência, imprudência ou imperícia. Mister destacar que essa responsabilidade tem por objetivo o restabelecimento do equilíbrio violado e a proteção de bens jurídicos fundamentais, como a saúde e a dignidade da pessoa humana, configurando-se, assim, como elemento essencial para a segurança tanto do paciente quanto do profissional. A responsabilidade civil do médico é subjetiva, de modo que há a necessidade de verificação da culpa relacionada ao ato médico praticado, especialmente no tocante à ação ou omissão negligente, imprudente ou imperita para sua configuração. Nesse sentido, em regra, a responsabilidade objetiva não se aplica à sua atividade profissional.  O ato médico pode ser definido, neste caso, como qualquer tipo de procedimento profissional que o médico preste a terceiros e seja inerente à prestação de serviços de saúde. Sua responsabilidade advém também do Código de Ética Médica3 com a previsão de que é vedado ao médico "causar dano ao paciente, por ação ou omissão, caracterizável como imperícia, imprudência ou negligência" (art. 1º). Em outras palavras, não será aplicável a presunção de culpa na atividade médica, restando necessária, portanto, para verificação de responsabilidade, a apuração da conduta praticada e em que medida referida conduta concorreu para a caracterização do evento danoso.  Consentimento informado Para que se compreenda integralmente a responsabilidade civil no contexto médico é imprescindível reconhecer que a mitigação dos riscos decorrentes do tratamento não se limita à análise de conduta culposa, mas também envolve a qualidade da comunicação entre médico e paciente. Nesse sentido deverá o paciente participar efetivamente da contextualização de seu tratamento e tomada das decisões que dizem respeito à sua saúde, e como resultado desta participação deverá consentir à atuação médica. Essa dimensão preventiva, centrada no respeito à autonomia e no fortalecimento do consentimento informado, reforça o caráter integral da responsabilidade civil médica. Desta feita, o profissional pode ser responsabilizado na medida em que não cumpre com seu dever de informar adequadamente o paciente acerca de seu diagnóstico, não expõe com clareza os procedimentos aos quais o paciente precisará ser submetido e não obtém do paciente seu consentimento na realização das etapas de seu tratamento. Neste sentido, sobre a definição de consentimento informado, ensinam Rosa Maria de Andrade Nery e Nelson Nery Junior4: "O consentimento informado é capacidade de decisão do paciente quanto ao tratamento médico que receberá, decisão esta que só poderá ser tomada após detalhado esclarecimento médico e fornecimento de todas as informações relativas ao procedimento que foi eleito pelos médicos, como considerado o melhor e o mais eficaz. (...) O consentimento informado engloba a obrigação do médico de dar, antes de qualquer intervenção e por meio de linguagem compreensível ao paciente, informação adequada sobre sua condição de saúde, bem como dos métodos possíveis e disponíveis para o tratamento de sua doença. O médico deve indicar-lhe os resultados esperados, os riscos da intervenção pretendida, o custo desta intervenção e as alternativas que possam existir. O médico deve, também, dar ao paciente oportunidade para refletir e tomar sua decisão sem que sobre esta exerça qualquer tipo de pressão. Dizer que o médico necessita fornecer informação adequada ao paciente para que esse possa exteriorizar sua vontade consciente é necessariamente analisar que tipo de informação, e em que quantidade, deve o médico prover." Assim, o dever de informação busca proteger o paciente e evitar seja constrangido a submeter-se a tratamento em que desconheça os riscos envolvidos e sob quais condições poderão acontecer. Por outro lado, o profissional médico deve atentar-se para cumprir tal obrigação não somente porque lhe cabe tal dever, mas também porque lhe será extremamente útil, futuramente, em caso de eventual discussão, seja ela administrativa ou judicial. É essencial que o consentimento informado faça parte da documentação médica como salvaguarda de sua conduta. Situações como a ausência de consentimento informado, a falta de apresentação clara ao paciente acerca do diagnóstico, do prognóstico, das contraindicações do tratamento indicado e das possíveis complicações podem caracterizar erro médico, ensejando o dever de indenizar em razão da omissão de informações sobre riscos, além de ocasionar dano moral quando se verificam sequelas permanentes no paciente. Observa-se de julgamentos dos Tribunais e de doutrinas sobre o tema que o consentimento informado consubstancia a formalização obtida do paciente capaz e apto a entender as diretrizes que envolvem o procedimento a que será submetido, tendo avaliado os riscos expressamente explicados e traduzidos em linguagem leiga como forma de propiciar o correto entendimento. Em caso de eventual dano, de acordo com o art. 951 do CC,5 a indenização devida pelo médico que causar a morte do paciente, agravar-lhe o mal, causar-lhe lesão ou ainda inabilitá-lo ao trabalho abrange (i) o pagamento das despesas com o tratamento da vítima, seu funeral e o luto da família; (ii) prestação de alimentos às pessoas a quem o morto os devia, levando-se em conta a duração provável da vida da vítima. Nos casos de lesão ou outra ofensa à saúde, a indenização abrange o pagamento das despesas do tratamento e dos lucros cessantes até ao fim da convalescença, além de algum outro prejuízo que o ofendido prove haver sofrido. E, ainda, se a ofensa resultar em lesão pela qual o ofendido não possa exercer o seu ofício ou profissão, ou que lhe diminua a capacidade de trabalho, a indenização, além das despesas do tratamento e lucros cessantes até ao fim da convalescença, poderá incluir pensão correspondente à importância do trabalho para que se inabilitou, ou da depreciação que ele sofreu. Observa-se assim o grande risco de eventual condenação a que estará sujeito o profissional médico quando, no exercício de sua profissão, causar dano a seu paciente. Daí a necessidade de uma boa gestão e controle dos riscos que envolvem sua atividade, de sorte que, em caso de eventual decisão judicial desfavorável, tenha proteção financeira adequada que permita o pagamento da condenação e a continuidade do exercício profissional. Seguro de responsabilidade civil profissional O contrato de seguro de responsabilidade civil profissional médica proporciona a proteção financeira relacionada à ocorrência de evento incerto pelo qual o médico seja responsabilizado civilmente no exercício de sua atividade. Sua finalidade é respaldá-lo contra o risco de futura reclamação decorrente de erro profissional em que reste caracterizada a responsabilidade civil do médico pelo dano causado ao paciente. A contratação de seguro de responsabilidade civil profissional para atividade médica é condição indispensável a todo profissional que almeja segurança para o exercício de sua atividade. No Brasil, este seguro ainda não é amplamente contratado pelos profissionais. Já no exterior, nota-se grande preocupação com a efetiva necessidade de garantias complementares pelos profissionais. Principalmente nos Estados Unidos, em virtude da grande judicialização, o seguro conhecido como "medical malpractice insurance" é amplamente contratado pelos médicos, considerando que a maioria deles já se deparou com reclamação judicial em sua carreira. Os profissionais entendem que não há meios de desempenhar a atividade médica sem a contratação do referido seguro. A obrigatoriedade de sua contratação varia conforme o Estado, mas, em geral, é altamente estimulada. Extrai-se, portanto, a relevância da contratação do seguro para garantir maior segurança à atividade profissional do médico, inclusive em virtude de eventual insuficiência de seu patrimônio individual exposto a acidentes que originem sua responsabilização, e/ou ainda para mantê-lo indene. O princípio da boa-fé objetiva nos contratos de seguro é essencial no compartilhamento de informações com o fim de entender a dinâmica de trabalho do profissional da área médica e identificar a exposição relacionada não só à atividade profissional em si, carregada de suas características e particularidades, como também estudar o contexto da atividade na atuação individualizada do profissional. Portanto, identificado claramente o risco segurável, passa-se à proposta de seguro, que surge como documento inicial em busca de adequação aos produtos disponíveis para comercialização no mercado, atrelados à necessidade específica e muito particular de cada atividade profissional. Desta feita, as informações coletadas pela seguradora - como dados pessoais, qualificação profissional, existência de proteções securitárias, características exigidas para a apólice, histórico profissional e do exercício da atividade, inclusive eventuais demandas existentes, bem como fatos que possam ensejar reclamações futuras, especializações e demais elementos relevantes para o gerenciamento de risco - são essenciais para que a seguradora possa compreender com precisão o perfil do segurado e, assim, personalizar as coberturas e condições da apólice de forma justa e adequada à sua realidade, garantindo maior proteção e melhor custo-benefício. Nesse sentido, e atento ao princípio da boa-fé, o preenchimento do questionário de risco pelo proponente deverá conter toda a informação necessária, de forma transparente, clara e precisa, quanto ao cenário de risco envolvido por sua prática profissional, sem quaisquer omissões ou inexatidões importantes que possam ter reflexo, ainda que futuro, no escopo do contrato que se pactua.  Esta avaliação do cenário de risco permitirá não só à seguradora indicar as proteções mais adequadas a serem comercializadas como também viabilizará ao profissional estabelecer procedimentos efetivos para minimizar os riscos inerentes de sua atividade, e propiciará maior clareza em sua análise quanto à abrangência das proteções securitárias de seu interesse. No Brasil, o seguro de responsabilidade civil profissional para médicos oferece ampla cobertura contra danos materiais, corporais, morais e estéticos, além de incluir custos com defesa jurídica, honorários advocatícios e outras despesas emergenciais, tão importantes quanto os valores envolvidos em uma eventual indenização.  Trata-se, pois, de proteção vital para profissionais que, mesmo atuando com total diligência que a profissão requer, estão sujeitos a riscos decorrentes de alegações de erro, negligência ou omissão. Apesar de não ser obrigatório, o seguro proporciona tranquilidade para que os médicos possam focar no atendimento de qualidade, ao mesmo tempo em que ampara seu patrimônio frente às demandas judiciais crescentes no país. Nos Estados Unidos, as apólices oferecem coberturas mais amplas e customizáveis, abrangendo desde indenizações por danos civis até suporte robusto para defesa jurídica e consultoria preventiva. O mercado americano é maduro e competitivo, refletindo uma cultura consolidada de gestão de riscos e compliance que busca não só proteger o profissional, mas também evitar litígios através de práticas preventivas. Esse comparativo revela um cenário no qual o Brasil possui um mercado promissor e necessário, que ainda carece da ampla cultura de conscientização e proteção, já observada nos Estados Unidos. Para os profissionais brasileiros, a contratação do seguro de responsabilidade civil representa uma medida estratégica não apenas para resguardar seu patrimônio individual, mas para garantir a continuidade séria e segura do exercício da medicina num ambiente de crescente exposição a litígios. A experiência internacional demonstra que o seguro é um instrumento eficaz para mitigar riscos, proporcionando segurança jurídica e financeira, elementos essenciais para a valorização e estabilidade da carreira médica no Brasil.  Incentivar a adoção deste tipo de proteção torna-se indispensável diante do atual cenário de judicialização da saúde e da complexidade das demandas contra profissionais médicos, beneficiando o sistema de saúde como um todo, ao reduzir conflitos e promover soluções extrajudiciais mais céleres.  __________________ 1 Disponível aqui. Acesso em 15.07.2025. 2 Disponível aqui. Acesso em 15.07.2025. 3 Brasil. Código de Ética Médica. Disponível aqui. Acesso em 15.07.2025. 4 NERY, Rosa Maria de Andrade; NERY JUNIOR, Nelson. Instituições de Direito Civil. Direitos da Personalidade. São Paulo: RT, 2018, v. VII, p. 155.  5 CC, Art. 951. O disposto nos arts. 948, 949 e 950 aplica-se ainda no caso de indenização devida por aquele que, no exercício de atividade profissional, por negligência, imprudência ou imperícia, causar a morte do paciente, agravar-lhe o mal, causar-lhe lesão, ou inabilitá-lo para o trabalho.
A lei 15.040, de 9 de dezembro de 2024, "Lei de Seguros" como passou a ser chamada, inovou no ordenamento jurídico nacional ao introduzir 10 artigos específicos sobre os seguros de responsabilidade civil, antes referidos por apenas dois artigos no Código Civil de 2002. A importância deste segmento de seguros no Brasil se fez notar nos últimos vinte anos, diante da multiplicação dos tipos comercializados pelas seguradoras. Antes reservados aos riscos industriais e comerciais (existência da empresa criando riscos para a circunvizinhança; distribuição de produtos; prestação de serviços em locais de terceiros; shoppings centers; obras civis e instalações-montagens; condomínios), mais recentemente a expansão se voltou para os seguros de riscos profissionais (área da saúde; advogados; engenharia de projetos; corretores), também para a responsabilidade civil decorrente da gestão de empresas e fundos (diretores e administradores - D&O), riscos cibernéticos e riscos ambientais. A cobertura para a responsabilidade civil decorrente da circulação de veículos automotores terrestres tem sido contratada facultativamente no Brasil, através de ramo próprio, usualmente atrelada à apólice do Seguro Automóvel, sendo que este seguro passou a ter maior relevância em função da recente extinção do seguro obrigatório de danos pessoais pela circulação de veículos (DPVAT), sem um modelo substitutivo até o momento. Os brasileiros, precisamente os empresários e os profissionais autônomos, perceberam que a sociedade contemporânea é mais suscetível a reclamar os seus direitos, toda vez que sofre danos pela ação ou omissão deles. Aquela ideia de "dano injusto", propagada ainda nos anos 1980 pelo ilustre Orlando Gomes, conforme o giro conceitual proposto pelo doutrinador1, a partir do vetusto ato ilícito, tem prosperado na atualidade. A monetização dos riscos e dos prejuízos através dos contratos de seguros de responsabilidade civil tem alcançado patamar significativo. O fenômeno do incremento da comercialização dos referidos seguros segue uma ordem natural, motivada pelo interesse que os segurados têm de se protegerem contra a obrigação de indenizar terceiros em geral, incluindo clientes e pacientes nesta categoria amplificada, uma vez sobrevindo danos durante o desempenho de suas atividades. Eles têm não só adquirido os seus próprios seguros, como também, acreditando na natureza garantidora do seguro, passaram a exigir de terceiros contratados por eles a comprovação de que possuem apólices que possam beneficiá-los em caso de falhas na prestação dos serviços, provocando-lhes danos. É o fenômeno da horizontalização.2 Os seguros de responsabilidade civil no Brasil começaram a ser operacionalizados a partir de 1960 quando o Instituto de Resseguros do Brasil (IRB), no regime de monopólio estatal do resseguro, criou a Divisão de Responsabilidade Civil Geral. A intervenção do referido ressegurador foi fundamental para o desenvolvimento do segmento, sendo que ele oferecia, além da capacidade de resseguro para as seguradoras, também as condições contratuais e tarifárias dos diferentes tipos dos seguros. Esse modelo persistiu pelo longo período do monopólio (1939-2007), quando a LC 126, de 15/1/2007, desmonopolizou o resseguro no país. A Superintendência de Seguros Privados (Susep), em função da abertura, passou a padronizar os textos de coberturas, de 2007 até o final de 2020, quando através do movimento modernizador iniciado pela própria Autarquia, houve a liberalização para as seguradoras estabelecerem as respectivas bases de coberturas, cujo procedimento sempre foi praticado pelos mercados de seguros modernos e maduros e que finalmente chegou ao Brasil. Em razão desse cenário, ou seja, da forte presença condutora do Estado no estabelecimento das bases contratuais dos seguros de responsabilidade civil, com a acomodação das seguradoras privadas, os modelos praticados não se encontram atualizados, sequer nos moldes exigidos pelo Código Civil de 2002, com raríssimas exceções. Podem revelar, inclusive, determinados descompassos com o regramento previsto no Código de Defesa do Consumidor, apesar de ter sido promulgado pela lei 8.078, de 11/9/1990.  Feita essa digressão no tempo e de modo a situar o estado da arte das condições contratuais das diferentes apólices de seguros de responsabilidade civil no mercado brasileiro, convém destacar o novo enfoque dado pela lei 15.040/2024, a qual impõe atualizações pontuais em todos os modelos atualmente comercializados no país. Não bastasse essa inovação legislativa, o mercado de seguros terá de enfrentar, ainda, provavelmente em curto espaço de tempo, a reforma do Código Civil, que trará com ela uma verdadeira revolução no âmbito do instituto jurídico da responsabilidade civil. O Comitê de Juristas encarregado das propostas, para essa parcela do trabalho de revisão, deixou marcado no relatório final de apresentação ao Senado o escopo da atualização proposta: "A responsabilidade civil de 2023 se encontra em um momento muito distante do estado da arte dos anos setenta do século XX, época em que foi forjado o Código Civil. Não se trata apenas de um hiato de 50 anos, porém de meio século que transformou a vida humana e os seus costumes de modo mais significativo que os últimos 2.000 anos de civilização". (...) "Acresça-se a isso que, diferentemente da fertilidade legislativa atuante sobre vários setores do Direito Civil nos últimos 20 anos, na temática da responsabilidade civil não houve sequer uma inovação legal. Em resumo, verifica-se um desajuste temporal de mais de 100 anos". A modernização proposta é das mais amplas e coloca o ordenamento em sintonia com os riscos, os anseios e os interesses da sociedade pós-moderna. Para as mentes abertas e oxigenadas, sem apego a dogmas insepultos, o resultado do trabalho é não só estimulante, como alvissareiro em face do abandono dos velhos conceitos, carcomidos pelo tempo, deixando-os presos no passado. A atualização traz figuras já conhecidas da doutrina mais refinada e especializada, assim como da ainda claudicante jurisprudência dos tribunais. Figuras como "danos ao projeto de vida", "sanção pecuniária pedagógica", "dano social", "danos atuais e futuros", "perda de uma chance", "danos extrapatrimoniais indiretos ou reflexos", "ofensa à integridade física, psíquica ou psicológica" - "dano existencial", "dano ao meio ambiente", "responsabilidade civil preventiva", "fortuito interno", além da reafirmação do "princípio da indenização integral", acolhidos e positivados, espelham a grandiosidade do instituto da responsabilidade civil, guindando-o ao devido lugar de destaque na reforma do Código Civil. Evidencia-se, nas propostas, a hipervalorização dos danos extrapatrimoniais, que na verdade compreendem grande parte da vasta nomenclatura atribuída aos diferentes tipos de danos, representando parcelas contributivas para o quantum indenizatório e de modo a torná-lo o mais justo possível e com vistas na indenização integral das vítimas. O olhar dos juristas revisores também foi criterioso para identificar mecanismos mínimos para a valoração dos danos. Do patrimonialismo que se encontra presente no Código Civil de 2002, a reforma tem o condão de romper com esse pensamento oitocentista, recolocando o homem no centro do ordenamento e valorizando-o para além do "ser unicamente laboral". A indenização integral da vítima se espelhará nesse novo estágio valorativo, "do ter para o ser", sem o apego e a interferência de dogmas puramente civilistas, assim como a questão do enriquecimento injusto em face da vítima que se tornou completamente inválida, modificando drasticamente o seu projeto de vida. Os contratos de seguros devem acompanhar a evolução. As condições contratuais dos seguros de responsabilidade civil deverão sofrer, forçosamente, os impactos decorrentes das modificações do Código Civil, mesmo porque elas importam em maior grau de exposição para os segurados, requerendo a consequente garantia da cobertura das apólices. Em face do princípio da utilidade subsumido no contrato de seguro, os de responsabilidade civil deverão acolher essa exposição complementar que será determinada, de forma cogente, no Código Civil. As definições encontradas nas apólices brasileiras de seguros de responsabilidade civil, especialmente para a garantia de lesões corporais causadas a terceiros3, se mostram extremamente reduzidas e sequer acobertam de forma ampla, como deveriam garantir, na vigência do atual ordenamento. São encontradas limitações pontuais, assim como a exclusão de danos morais e estéticos, sendo que a cobertura para as respectivas parcelas é oferecida de forma adicional, com sublimitação da importância segurada; o dano estético, por sua vez, nem sempre é ofertado mesmo sob a condição de cobertura acessória. O dano moral fica circunscrito ao dano corporal, quando diretamente decorrente deste e exclusivamente sofrido pela pessoa diretamente lesada. A reforma do Código Civil não só revigora os danos extrapatrimoniais, como também deixa clara a abrangência das consequências reflexas para além da pessoa da vítima. Ao distinguir o dano atual do futuro, o ordenamento jurídico abre para os contratos de seguros de responsabilidade civil um novo parâmetro determinante do pagamento da indenização. Até o momento atual, a forma majoritária recai na liquidação realizada de uma única vez. A tendência, a partir da reforma, será a constituição de capital de renda, de modo a acompanhar a evolução da lesão da vítima. Os danos futuros estão relacionados, basicamente, com a majoração das sequelas deixadas pela lesão inicial, assim como a necessidade de uma nova cirurgia ou tratamento, troca de próteses e outras situações correlatas. Não há como negar que essa necessidade já existe na atualidade, mas o ordenamento vigente se mostra menos criterioso e detalhista, fato que motiva as seguradoras a adotar o procedimento menos trabalhoso. Essas e outras modificações inovadoras, a serem introduzidas pela reforma do Código Civil, repercutirão em todos os cidadãos, colocando-os diante de uma maior exposição ao risco de imputação de responsabilidade, com destaque nos empresários e nos profissionais autônomos. As apólices de seguros de responsabilidade civil já se apresentam como instrumento financeiro eficaz de proteção, na medida em que resguardam a indenidade dos segurados, em face do patrimônio que deixa de ser afetado, assim como os terceiros prejudicados, diante da garantia de indenização que é conferida a eles, conforme o disposto no art. 98 da lei 15.040/2024. A reforma do Código Civil reforçará ainda mais essa necessidade social, da contratação dos referidos seguros.  __________ 1 ORLANDO, Gomes. Tendências modernas na teoria da responsabilidade civil. in: DI FRANCESCO, José Roberto Pacheco. (org.) Estudos em homenagem ao Professor Silvio Rodrigues. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 289-302. 2 POLIDO, Walter A. Horizontalização na contratação dos seguros de responsabilidade civil. in: PRADO, Camila Affonso. MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo. SOARES, Flaviana Rampazzo. ROSENVALD, Nelson. (coords.) Seguros e Responsabilidade Civil. São Paulo: Foco, 2024, p. 147-169. 3 POLIDO, Walter A. O estágio atual da cobertura para danos pessoais (corporais) nos contratos de seguros de responsabilidade civil no Brasil. Novos danos e/ou Novos direitos. São Paulo: Roncarati, 2020 [e-book gratuito, Último acesso em 31/5/2025].