O STF como Poder Moderador: A permanência do Imperator
segunda-feira, 7 de julho de 2025
Atualizado em 4 de julho de 2025 13:22
Observamos recentemente uma decisão significativa do ministro Alexandre de Moraes que merece reflexão profunda. Ao suspender simultaneamente tanto o decreto presidencial que elevava o IOF quanto o decreto legislativo que o sustava, o Ministro evidenciou um fenômeno institucional brasileiro contemporâneo: a posição central do STF como árbitro final das questões políticas nacionais. Esta atuação, embora revestida de neutralidade jurídica, projeta o tribunal como autêntico "poder moderador" da República, evocando, não sem certa ironia histórica, a figura do imperador constitucional do Brasil oitocentista.
A Constituição de 1824 conferiu ao imperador o chamado "Poder Moderador", concebido como quarto poder, superior aos demais, para equilibrar as instituições. Sua missão consistia precisamente em arbitrar conflitos entre Executivo, Legislativo e Judiciário, assegurando a continuidade estatal. Apesar de a República ter formalmente eliminado tal estrutura, sua essência persiste - e até se fortaleceu - na função política que o STF desempenha no século XXI.
O episódio do IOF ilustra perfeitamente esta dinâmica. Perante o embate entre decretos do Executivo e do Legislativo, ambos formalmente legítimos em seus respectivos âmbitos constitucionais, coube ao Supremo - mediante decisão liminar individual - suspender ambas as medidas. Tal intervenção proporcionou estabilidade imediata ao cenário económico-financeiro, evitando tanto o aumento tributário quanto a insegurança jurídica resultante do confronto institucional. Contudo, por trás da solução jurídica, revela-se uma intervenção essencialmente política: o STF atuou como moderador de um impasse entre poderes eleitos, sob o argumento de proteger a ordem jurídica e a racionalidade econômica.
Este fenómeno não constitui exceção, mas tornou-se regra. A judicialização política brasileira transcende a mera proliferação de ações de inconstitucionalidade ou o uso frequente de medidas cautelares em questões delicadas. Representa, fundamentalmente, a consolidação de uma cultura política onde os protagonistas do sistema - Executivo, Legislativo, partidos e mesmo organizações da sociedade civil - recorrem ao Supremo para dirimir controvérsias que, teoricamente, deveriam resolver-se no âmbito político ordinário.
A hipertrofia do STF como árbitro não decorre apenas das omissões ou disfunções dos demais poderes. Resulta, também, de um acordo tácito de governabilidade: a estabilidade institucional brasileira, carente de mecanismos formais para resolução de impasses típicos de sistemas parlamentaristas, passou a depender da disposição do Supremo em exercer esta função moderadora. Embora negado pelos próprios ministros e juristas, este papel manifesta-se constantemente, como evidencia o caso do IOF.
Nesta perspectiva, o Supremo converte-se, efetivamente, num novo "Imperator" republicano. Não por ambição autocrática, mas pela ausência de alternativas institucionais viáveis no atual modelo presidencialista. A governabilidade contemporânea exige o reconhecimento do STF como elemento estrutural do jogo político, não apenas como guardião abstrato da Constituição, mas como ator que delineia os contornos efetivos da ação governamental.
Importa salientar que tal função comporta riscos consideráveis. A excessiva concentração de decisões relevantes no STF pode comprometer a legitimidade democrática das suas intervenções, particularmente quando sua atuação substitui - e não apenas corrige ou arbitra - as escolhas dos representantes eleitos. O equilíbrio entre moderação institucional e protagonismo político revela-se extremamente delicado, e o Supremo caminha constantemente sobre esta fronteira tênue.
No Brasil do século XXI, o "Poder Moderador" já não pertence ao monarca. Reside na toga dos onze ministros do STF. E, tal como no Império, sua atuação revela-se vital para o funcionamento institucional - ainda que à custa da transparência, previsibilidade e estabilidade características de um sistema de freios e contrapesos que deveria apresentar melhor desenho e institucionalização.
Em vez de impérios ou repúblicas ideais, deparamo-nos com um sistema político que, devido às falhas em sua estruturação, ressuscitou o papel moderador - agora sob a roupagem jurídica da Corte Constitucional. Por ora, o Brasil permanece dependente de um "Imperator togado" para arbitrar suas crises de governabilidade.