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Arbitragem no setor de saneamento

terça-feira, 29 de abril de 2025

Atualizado em 28 de abril de 2025 15:00

A arbitragem no setor de saneamento desponta como garantia estratégica para a viabilização de concessões de infraestrutura hídrica no Brasil. Com a promulgação do novo marco legal do saneamento (lei 14.026/20), o país não apenas traçou metas ambiciosas de universalização, mas também reconheceu, ainda que tardiamente, que não há investimento privado sem segurança jurídica - e não há segurança jurídica sem um sistema confiável de resolução de conflitos. É nesse ponto que a arbitragem se insere, não como panaceia institucional, mas como elemento técnico-jurídico capaz de blindar os contratos da inconstância política e da morosidade judicial.

Porém, a simples previsão de cláusula compromissória não imuniza o contrato contra litígios estruturais. O que se pode arbitrar - e, mais importante, o que não se pode - é o verdadeiro ponto de inflexão da arbitragem em concessões públicas. A arbitrabilidade, longe de ser um salvo-conduto contratual, é recorte normativo fundado em duas exigências cumulativas: patrimonialidade e disponibilidade. A presença de ambas legitima a jurisdição arbitral; a ausência de qualquer uma delas a contamina de nulidade.

No saneamento, o litígio comum é patrimonial por natureza: inadimplementos contratuais, desequilíbrios econômico-financeiros, descumprimentos de metas, acionamento de garantias, divergência sobre outorga variável, cálculo de indenizações por extinção antecipada. Todos esses conflitos são economicamente quantificáveis e suscetíveis de decisão por árbitros especializados - não apenas em direito, mas em modelagem contratual, estrutura tarifária e engenharia financeira.

Entretanto, há um campo minado. Quando a controvérsia desloca seu eixo da esfera contratual para a esfera regulatória, a arbitragem se torna arriscadamente intrusa. A revisão de penalidades administrativas, o controle de legalidade de decretos de caducidade, a reconfiguração de políticas públicas e o juízo de conveniência sobre decisões estatais são matérias indisponíveis, por definição. O árbitro que se aventura nesse território pode ultrapassar não apenas os limites do contrato, mas também os da própria jurisdição arbitral.

A confusão entre efeitos patrimoniais e causas institucionais é o grande risco. É juridicamente admissível discutir, em arbitragem, a compensação econômica de uma rescisão contratual? Sim. Mas é inadmissível que o árbitro declare inválido o ato estatal que motivou essa rescisão, especialmente quando se trata de exercício de poder de polícia. O que está em jogo não é apenas a disponibilidade do direito, mas a própria separação de funções institucionais entre Poder Público e jurisdição arbitral.

Os contratos de concessão no saneamento não são documentos estanques - são arquiteturas econômicas dinâmicas, desenhadas para durar décadas sob condições de incerteza. O modelo tarifário, os mecanismos de reequilíbrio e a alocação de riscos constituem a espinha dorsal dessa estrutura negocial. Quando o contrato perde sua capacidade de adaptação - seja por omissão regulatória, seja por resistência do poder concedente em reconhecer desequilíbrios - o litígio se torna inevitável. A arbitragem, nesse contexto, atua como válvula técnica de preservação contratual: protege o investimento privado sem transgredir o interesse público.

Um dos pontos sensíveis é o tratamento das externalidades não previstas. Eventos como inflação descontrolada, alterações legislativas ou colapsos ambientais impactam diretamente a equação econômica do contrato. A recomposição do equilíbrio não é uma indulgência à concessionária, mas uma cláusula de sobrevivência do próprio arranjo concessório. Ignorar esse dado econômico é tratar a concessão como contrato estático - o que contraria a sua lógica estrutural. A arbitragem permite que esses ajustes se deem com base em prova técnica e dentro da moldura contratual originalmente pactuada.

O sucesso da concessão está diretamente vinculado à previsibilidade do fluxo de caixa. Investidores e financiadores avaliam não apenas a rentabilidade projetada, mas a robustez dos mecanismos de proteção jurídica. Um contrato com cláusula de arbitragem, combinada com matriz de risco bem definida e regra de reequilíbrio objetiva, é menos vulnerável à volatilidade política. Em mercados regulados como o saneamento, essa previsibilidade é o que transforma interesse privado em compromisso público. E é justamente por isso que a arbitragem, quando bem delimitada, não é obstáculo - é alicerce.

O caso Águas de Itu v. Município da Estância Turística de Itu expõe, com crueza, esse dilema. A arbitragem foi deflagrada para discutir os efeitos econômicos da caducidade contratual. O tribunal arbitral reconheceu sua competência. O Judiciário anulou a sentença parcial, alegando inarbitrabilidade da matéria. Aqui, a arbitrabilidade foi tratada não como questão de recorte material, mas como variável ideológica: onde há interesse público, presume-se a inarbitrabilidade, mesmo quando a disputa é nitidamente patrimonial. Uma inversão perigosa da lógica normativa1.

É preciso afirmar com clareza: nem todo litígio que envolve o poder público é, por isso, inarbitrável. O que define a arbitrabilidade não é o sujeito envolvido, mas a natureza do direito em disputa. Quando o Estado atua como contratante, assume deveres patrimoniais disponíveis - e pode, legitimamente, ser parte em arbitragens. O que ele não pode, sob pretexto de interesse público, é fugir da arbitragem sempre que o contrato se torna economicamente desfavorável ou quando suas próprias ações podem ensejar consequências indesejáveis.

O caso IGUÁ v. Estado do Rio de Janeiro é outro exemplo emblemático. A suspensão do pagamento de outorga por decisão de árbitro de emergência foi interpretada como afronta à supremacia do interesse público. Esquece-se, porém, que a cláusula compromissória estava expressamente pactuada e que a medida cautelar visava preservar a equação econômica do contrato - não anular ato administrativo, nem interferir em planejamento orçamentário. Confunde-se tutela técnica com subversão institucional.

O discurso da "grave lesão à ordem pública" tornou-se, em certos casos, senha de ativação para a sabotagem da arbitragem. O Estado pactua cláusulas arbitrais em tempos de bonança e as ignora em tempos de escassez. Essa ambivalência - ora celebrando a arbitragem como símbolo de modernização contratual, ora execrando-a como ameaça à soberania - desidrata a credibilidade do modelo e encarece o custo do investimento privado.

A arbitragem é - ou deveria ser - o espaço institucional da previsibilidade. Quando um tribunal arbitral decide, com base em provas técnicas, que uma obrigação contratual deve ser suspensa até que se apure o reequilíbrio do contrato, ele não viola o interesse público: ele o protege. É a ausência de recomposição tempestiva que compromete o serviço, não a sua concessão cautelar. O que desorganiza as finanças públicas não é a arbitragem, mas a má gestão do próprio Estado.

É por isso que a jurisdição arbitral deve ser respeitada, inclusive em suas decisões liminares. O Judiciário tem seu papel, mas não lhe cabe controlar arbitragem por antecipação. O controle de legalidade da sentença arbitral é ex post, não ex ante. Subverter essa ordem é transformar o juiz togado em sentinela da conveniência pública - e o árbitro em servidor clandestino do interesse estatal.

O controle judicial da arbitrabilidade não pode ser confundido com controle de mérito. A sindicabilidade, como expressão do devido processo legal, serve para evitar abusos, não para reescrever sentenças arbitrais com tinta pública. Há uma linha tênue - mas intransponível - entre a revisão da legalidade da convenção arbitral e a interferência política na decisão técnica do árbitro. O Judiciário que ignora essa linha converte-se em agente de instabilidade.

A arbitragem no saneamento não é risco; é remédio. Desde que bem delimitada, ela assegura decisões céleres, técnicas e despolitizadas. Não se trata de usurpar funções do Estado, mas de garantir que as promessas contratuais não sejam rompidas por conveniências conjunturais. Em um setor regido por metas de universalização, investimentos bilionários e prazos longos, a previsibilidade não é um luxo - é uma condição de existência.

A seguir, sistematiza-se, de modo sintético e funcional, os principais tipos de controvérsias em concessões de saneamento, distinguindo-se aquelas que podem ser solucionadas por arbitragem daquelas que demandam apreciação judicial exclusiva:

Tipo de Controvérsia

Arbitrável

Por quê?

Reclamações sobre desequilíbrio econômico do contrato

Sim

Envolvem valores econômicos concretos e previsão contratual, passíveis de apuração técnica.

Indenizações por rescisão antecipada

Sim

Fundadas em cláusulas contratuais e cálculo de ativos não amortizados.

Revisões tarifárias e investimentos associados

Sim

Disputas com repercussão financeira objetiva e previsão contratual.

Não cumprimento de metas contratuais

Sim

Obrigações com impacto financeiro mensurável, apurável por perícia.

Multas e retenções previstas em contrato

Sim

Comportam mensuração contábil e decorrem de cláusulas específicas.

Disputas sobre garantias contratuais

Sim

Questões sobre execução e validade de garantias financeiras.

Divergências sobre outorga variável

Sim

Controvérsias econômico-financeiras sobre parâmetros de cálculo.

Debates sobre prazos de investimento

Sim

Litígios com implicações econômicas e técnica contratual.

Contestação de valores indenizatórios

Sim

Avaliação patrimonial com base em parâmetros financeiros.

Suspensão de obrigações por fato superveniente

Sim

Aceitável se contratualmente prevista e tecnicamente fundamentada.

Controle da legalidade de ato estatal (ex: caducidade)

Não

Matéria de poder de polícia, exclusiva do Judiciário.

Questionamentos sobre motivação de atos administrativos

Não

Implica controle da legalidade do ato, vedado à arbitragem.

Reavaliação de sanções impostas por agências reguladoras

Não

Trata-se de exercício de função regulatória, insuscetível de arbitragem.

Debates sobre políticas públicas e metas de governo

Não

Envolvem escolhas políticas e orçamentárias, de natureza indisponível.

Análise de impactos ambientais de grande escala

Não

Responsabilidade civil ambiental, de competência judicial e ministerial.


Em suma, é preciso refundar a compreensão institucional da arbitragem em concessões de saneamento. Nem onipotente, nem decorativa. A arbitragem é a válvula de racionalidade contratual em um ambiente permeado por volatilidade política, riscos regulatórios e pressões fiscais. Reduzir seu alcance é empurrar os conflitos de volta para a ineficiência do contencioso judicial. Expandir sem limites é subverter a lógica do interesse público. O caminho do meio exige precisão dogmática, compromisso institucional e, sobretudo, coragem intelectual para reconhecer que o Estado também deve cumprir os contratos que assina.

__________

1 Processos 1008052-51.2021.8.26.0286 em trâmite no TJ/SP, com recursos pendentes de julgamento no STJ até a data de conclusão deste artigo.