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Tício, Mévio, Caio e a nova advocacia

quarta-feira, 16 de julho de 2025

Atualizado em 15 de julho de 2025 12:00

Há quem não queira aceitar, mas a advocacia vai encolher. Não no sentido de perder relevância - pelo contrário, nunca foi tão necessária a presença estratégica do advogado na vida das pessoas, das empresas e dos sindicatos. O encolhimento a que me refiro é outro: menos advogados farão mais trabalho. Menos estruturas físicas abrigarão mais tecnologia. Menos tarefas manuais sobreviverão diante da automação crescente.

Estamos vivendo o que poderíamos chamar de "desinflação profissional": o mercado jurídico se expande em complexidade, mas não em volume de pessoas contratadas. Isso significa que a profissão se tornará mais enxuta e especializada, exigindo de cada profissional três características fundamentais:

Eficiência Operacional. Não haverá mais espaço para advogados que operam apenas como repassadores de informação ou replicadores de modelos prontos. Escritórios e departamentos jurídicos buscarão, cada vez mais, profissionais capazes de produzir mais resultados com menos recursos. Isso inclui dominar fluxos de trabalho, ferramentas de automação, gestão de projetos e comunicação clara com clientes e equipe.

Visão Estratégica. Advogados que enxergam apenas o contencioso perderão lugar para aqueles que compreendem o impacto de suas teses na saúde financeira do cliente, na reputação, no mercado e no planejamento de longo prazo. Saber interpretar cenários, mapear riscos e apresentar soluções preventivas será diferencial para permanecer na profissão.

Especialização Inteligente. O tempo do generalista puro está no fim. A inteligência artificial ocupará rapidamente as tarefas jurídicas repetitivas e de baixa complexidade. O advogado do futuro (que já é o do presente) precisará se posicionar como especialista em resolver problemas relevantes, seja dominando um nicho técnico, seja integrando conhecimento jurídico a outras áreas estratégicas dos clientes.

Imaginemos que a advocacia reduza cerca de 20% ao ano nos próximos 5 anos no que diz respeito ao volume de profissionais necessários para executar tarefas jurídicas operacionais. Isso significa que, até 2030, escritórios poderão ter estruturas reduzidas pela metade (ou mais) em áreas que lidam com demandas repetitivas, sem comprometer (e, em muitos casos, aumentando) a produtividade.

Por que essa redução aconteceria?

Automação massiva. Petições iniciais, contestações, contratos simples, publicações e leituras de andamentos estão sendo automatizados por softwares jurídicos integrados a IA generativa e bancos de dados jurisprudenciais.        

Aumento de eficiência. Ferramentas de workflow, gestão de prazos, extração de dados de processos e análise preditiva reduzirão drasticamente a necessidade de intervenção manual.

Mudança no modelo de contratação na advocacia empresarial. Muitos departamentos jurídicos terceirizarão apenas o estratégico, mantendo o operacional automatizado internamente ou com parceiros de tecnologia.

Vamos fazer uma conta simples para dimensionar o impacto desse exercício de futurologia:

Hoje, o Brasil conta com aproximadamente 1 milhão e meio de advogados ativos. Se o mercado reduzir a necessidade de profissionais em cerca de 20% ao ano, isso significa que em 5 anos, o mercado demandará menos de 500 mil advogados para realizar o mesmo trabalho que hoje ocupa 1,5 milhão de profissionais.

Disclaimer importante: não confunda advogado com portador de OAB.

Esse cenário se torna ainda mais dramático quando olhamos para os números dos resultados do Exame da Ordem: adiciona-se dezenas de milhares de novos profissionais ao ano em um mercado que, ao mesmo tempo, elimina centenas de milhares de posições em função da automação e do encolhimento estrutural.

É como encher um balde furado: a formação continua em ritmo acelerado, mas a absorção real de novos advogados encolhe drasticamente.

O futuro de Tício, Mévio e Caio

Para ilustrar o problema, usarei as figuras (nossas velhas conhecidas) de Tício, Mévio e Caio, intercalando estórias que poderiam representar os caminhos possíveis na advocacia que vem aí.

Tício: O advogado operacional

Tício sempre foi rápido. Aprendeu primeiro a usar inteligência artificial para redigir petições, contratos e consultas. Sua produtividade disparou. Mas, aos poucos, Tício parou de ler livros, jurisprudência e artigos. Confiava cegamente no ChatGPT e outras ferramentas de IA.

Quando o escritório implementou IA integrada aos bancos de dados internos, perceberam que o sistema produzia tudo que Tício produzia - mas sem salário ou encargos, 24 horas, 7 dias por semana. Tornou-se dispensável.

Hoje, Tício vende seguros. Diz que cansou da advocacia, mas a verdade é que a advocacia não era para ele.

O encolhimento não é apenas efeito colateral da tecnologia. A inteligência artificial está funcionando como um grande mecanismo de controle da população de advogados. Ela elimina a necessidade de trabalho humano nas tarefas de baixa complexidade, forçando um filtro natural: permanecem apenas aqueles que agregam inteligência crítica, estratégia e especialização real ao mercado.

Em termos darwinianos, é a lei do mais adaptável. Mas, em termos sociais, é um novo controle: forma-se muito mais do que o mercado precisa, mas apenas quem se diferencia sobrevive.

Mévio: O advogado estrategista em IA jurídica

Mévio também usava IA, mas diferente de Tício. Lia cada petição gerada, revisava fundamentos, atualizava jurisprudência, complementava com doutrina e usava o tempo que economizava para estudar novos temas, como tecnologia jurídica, gestão de dados e inteligência artificial aplicada ao Direito.

Percebendo que a automação era inevitável, decidiu não apenas ser usuário de IA, mas dominar sua lógica e potencial. Fez cursos de IA para advogados, estudou data analytics jurídico e passou a trabalhar diretamente com a gestão para mapear processos, parametrizar softwares jurídicos e treinar ferramentas de automação para aumentar a eficiência do escritório.

Quando o escritório precisou reduzir advogados operacionais, Mévio não só permaneceu como se tornou essencial. Hoje, atua como legal operations strategist, sendo o responsável por identificar quais tarefas podem ser automatizadas, parametrizar sistemas para ganho de eficiência, garantir a qualidade jurídica do que é produzido pela IA, treinar a equipe para usar tecnologia com pensamento crítico, e criar novos modelos de serviços jurídicos baseados em dados.

Mévio deixou de ser apenas advogado redator de peças para se tornar o estrategista de tecnologia jurídica, integrando Direito, gestão e IA. Seu papel hoje é garantir que o escritório não apenas produza mais rápido, mas também pense melhor e entregue maior valor aos clientes.

Um estudo recente do MIT Media Lab comprova o risco que Tício viveu. A pesquisa Your Brain on ChatGPTmostrou que pessoas que usam IA para escrever apresentam menor engajamento cerebral, especialmente em áreas responsáveis pelo pensamento crítico, criatividade, memória e tomada de decisão.

Os pesquisadores chamaram isso de "dívida cognitiva": cada vez que você terceiriza o raciocínio sem esforço prévio, acumula déficit de aprendizado, perdendo, a longo prazo, a capacidade de fundamentar, argumentar e criar com autonomia.

Se, por um lado, a IA traz velocidade e produtividade, por outro, cria um risco real: o emburrecimento profissional. Advogados que terceirizam todo o raciocínio jurídico para ferramentas automáticas, deixam de exercitar sua capacidade de análise crítica, interpretação sistêmica e argumentação lógica.

A isso soma-se um fenômeno silencioso, mas perigoso: a redução drástica do hábito da leitura. Muitos advogados estão deixando de ler doutrina, jurisprudência e obras formadoras de pensamento jurídico, confiando apenas em resumos de IA, vídeos curtos ou petições pré-prontas. Isso faz com que uma geração de profissionais não domine fundamentos, mas saiba onde clicar.

Em pouco tempo, tornam-se apenas operadores de sistemas, sem entender o que estão entregando. Um exemplo prático: jovens advogados que constroem todas as suas petições com IA, sem revisar fundamentos doutrinários ou jurisprudenciais, passam a escrever sem pensar. O resultado? Textos que "parecem certos", mas sem consistência técnica, aumentando riscos para o cliente e para sua própria credibilidade no mercado.

Em resumo: quanto mais você usa IA para tudo, menos inteligente se torna.

Caio: O advogado especialista

Caio nunca quis grandes bancas. Desde cedo, montou sua boutique especializada em direito digital e proteção de dados. Mergulhou em estudos, construiu reputação e formou equipe enxuta, mas altamente técnica.

Usa IA para agilizar tarefas operacionais, mas seus clientes o contratam por sua capacidade de enxergar riscos antes que aconteçam e estruturar soluções estratégicas.

Ele não teme o encolhimento do mercado. Sabe que a advocacia vai reduzir nos próximos anos, mas também sabe que quem resolve problemas complexos nunca ficará sem trabalho.

Voltando a Darwin, não é o mais forte que sobrevive, nem o mais inteligente, mas o que melhor se adapta às mudanças. Essa é a essência do que acontecerá com a advocacia nos próximos anos. Não serão os maiores escritórios, nem os advogados com mais diplomas que prosperarão, mas sim aqueles que souberem: usar tecnologia com inteligência, fortalecer o pensamento crítico, manter hábitos profundos de estudo e leitura, e especializar-se estrategicamente.

Nesse cenário, as boutiques ganham força. São mais enxutas, técnicas e reconhecidas pela profundidade intelectual. Não competem por volume, competem por qualidade, resultado e confiança.

Enquanto os Tícios serão substituídos, Mévio e Caio seguirão no jogo.

Advogados e escritórios que desejam sobreviver e prosperar precisarão tomar decisões corajosas o mais rápido possível:

  • Investir em tecnologia de forma planejada, sabendo o que automatizar e o que manter como serviço humano premium;
  • Revisar o modelo de negócios, entendendo que vender somente hora ou petição não sustenta crescimento exponencial;
  • Desenvolver habilidades de liderança, gestão e negociação, que não podem ser substituídas por máquinas;
  • Fortalecer sua marca pessoal ou institucional, deixando claro ao mercado qual problema você resolve e por que é melhor nisso;
  • Fomentar cultura de aprendizado contínuo, para lidar com a obsolescência acelerada dos conhecimentos jurídicos isolados;
  • Ser como Mévio ou Caio, não como Tício.

Nesse novo mundo jurídico, a IA atuará como grande filtro, reduzindo vagas, controlando o mercado e emburrecendo quem a usa sem reflexão. No final, será o advogado que pensar melhor, fundamentar melhor e liderar melhor, não o que automatizar tudo, que permanecerá indispensável.

Diga para nós: você está mais para Tício, Mévio ou Caio?

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1 Disponível aqui.