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Ordem na Banca

Melhores práticas na gestão de escritórios de advocacia: Estratégia, sociedade, liderança, pessoas, produção jurídica e finanças.

Lara Selem
Eu aprendi com meu professor da Harvard, Jay Lorsch, um ditado curioso: "liderar advogados é como domar gatos". A imagem é irresistível e quem já tentou conduzir um grupo de advogados em um mesmo projeto sabe exatamente o que isso significa. Gatos são independentes. Não vêm quando você chama, a não ser que queiram. Não gostam de imposição. Escolhem onde dormir, quando caçar, como brincar. Não pedem permissão para explorar novos territórios. Isso soa familiar? Pois é. Na advocacia, a independência é cultivada desde a formação (temos inclusive um artigo na nossa Constituição Federal garantindo isso). O advogado é treinado para questionar, analisar, argumentar, desconfiar. Sua ferramenta de trabalho é o raciocínio próprio, não a obediência cega. E isso, que é uma das grandes forças da profissão, também é um dos maiores desafios para quem precisa liderar um grupo de advogados dentro de um mesmo escritório. E por que advogados são como gatos? Algumas razões. Primeiro, pela independência intelectual. Advogados não seguem ordens apenas porque "sempre foi assim". Querem entender a razão, avaliar a lógica, medir as consequências. Sem convencimento, não há engajamento. Depois tem o territorialismo profissional. Cada advogado tende a proteger seu território: clientes, casos, métodos de trabalho. Qualquer tentativa de interferência pode ser vista como invasão. Conte também com instinto crítico. Advogados são naturalmente treinados para encontrar falhas. É o que os torna bons litigantes, negociadores e estrategistas - mas também pode tornar reuniões intermináveis se não houver método. Por fim, baixa tolerância a microgestão. Assim como gatos se afastam quando tentamos controlá-los demais, advogados se fecham diante de supervisão excessiva. Sentem-se sufocados e reagem com resistência velada. Agora, se a ideia é ter uma equipe jurídica e se todos trabalham de forma isolada, o escritório corre risco de se fragmentar:  A visão estratégica não é compartilhada; As decisões se tornam pontuais, reativas; O cliente percebe falta de alinhamento entre os advogados; A cultura se dilui em práticas individuais, não institucionais. O pior cenário é o da "liderança simbólica": um sócio nominalmente responsável, mas sem influência real sobre as decisões e prioridades dos demais. Nesse modelo, o "líder" não lidera, ele apenas observa. Literalmente, o pulo do gato tem mais a ver com conduzir do que com controlar. Advogados respeitam líderes que sabem para onde estão indo, que dominam seu ofício e que, ao mesmo tempo, dão espaço para que cada profissional exerça sua autonomia com responsabilidade. A liderança felina eficaz nesse contexto se sustenta em alguns pilares: Clareza de visão. Nenhum gato segue um assobio, mas eles seguem um caminho se perceberem segurança, comida e abrigo. Advogados se engajam quando entendem o destino e confiam que o líder sabe a rota. Convite, não imposição. Em vez de ordens verticais, convide à construção conjunta. A participação genuína na decisão aumenta o comprometimento com a execução. Estrutura mínima, liberdade máxima. Regras demais sufocam, ausência de regras cria caos. O equilíbrio é ter processos claros para o que precisa ser padronizado (prazo, controle de qualidade, comunicação com cliente) e liberdade para que cada advogado desenvolva sua forma de trabalhar dentro desse quadro. Reconhecimento com critério. Elogios vazios não funcionam. Reconheça o mérito real e mostre como isso contribuiu para o resultado do escritório. É sobre valorizar a entrega, não alimentar vaidades. É aí que precisa entrar em cena a "coleira invisível" da governança. Ocorre que gatos não usam coleiras. Mas, no mundo dos escritórios, a governança cumpre esse papel: ela alinha comportamento e decisões sem necessidade de comando constante. Comitês, reuniões de pauta definida, políticas claras e critérios objetivos funcionam como essa "coleira invisível" que mantém todos no mesmo rumo. Assim, mesmo advogados muito independentes sabem o que se espera deles, quais são os limites e como suas ações impactam o coletivo. O segredo para "domar os gatos" está no equilíbrio: permitir que cada um tenha seu estilo, mas dentro de uma estrutura comum que garanta consistência e resultados. Quando advogados trabalham juntos por escolha, e não por obrigação, o engajamento é mais profundo. Eles se sentem parte de algo maior, e não apenas peças de um maquinário jurídico. Isso exige três tipos de catnips1: Cultura de responsabilidade compartilhada; Escuta estruturada, para que críticas e ideias circulem antes que virem crises; Clareza de indicadores, para que todos saibam como o desempenho é medido. Já percebemos que liderar advogados não é transformá-los em cães obedientes. Afinal, são felinos e não caninos. É orquestrar os talentos independentes para que os miados aconteçam no mesmo tom. Quando a liderança respeita a autonomia, mas oferece direção clara e mecanismos de alinhamento, o escritório deixa de ser um conjunto de profissionais isolados e se transforma em um time coeso, capaz de entregar mais, com mais qualidade e menos fricção. No fim, a grande lição é esta: bons líderes de advogados não tentam domar gatos, mas sim aprendem a guiá-los na mesma direção, sem que eles percam a elegância de andar sozinhos. _________ 1 Catnip, cientificamente denominada Nepeta cataria, também conhecida como erva do gato, é uma planta in natura que possui a capacidade de modificar o comportamento de gatos domésticos e, inclusive, de felinos selvagens como leões, tigres, leopardos e jaguatiricas.
What would you think if I sang out of tune? Would you stand up and walk out on me? Lend me your ears and I'll sing you a song And I'll try not to sing out of key1 Na parte 1, vimos como os Beatles desafiaram o modelo tradicional de liderança e mostraram que múltiplas vozes, quando alinhadas, podem criar algo verdadeiramente transformador. Mas o que acontece quando esse alinhamento se perde? Como escritórios de advocacia podem se proteger dos mesmos riscos que colocaram um ponto final numa das bandas mais icônicas da história? Liderança compartilhada não é improviso coletivo. Ela depende de estrutura, alinhamento e, repito, maturidade institucional. Funciona quando há acordos claros e falha quando tudo se apoia na boa vontade. Na advocacia, ela brilha quando: Há visão comum sobre o futuro do escritório, ainda que existam estilos diferentes entre os sócios. Divergência de caminhos paralisa. Divergência de estilos enriquece. Os papéis entre os sócios são definidos, respeitados e revisados periodicamente conforme o escritório evolui. Acúmulo de funções e sobreposição de poder só geram ruído. Existem mecanismos de governança que estruturam o diálogo: conselhos, comitês, reuniões com pauta, atas e encaminhamentos. Onde não há estrutura, sobra interpretação. Há confiança suficiente para conversar sobre o que incomoda antes que vire ressentimento. O que não é dito, cresce nas sombras. A cultura interna valoriza autonomia com responsabilidade, e não permissividade disfarçada de liberdade. Ser horizontal não é ser frouxo. Porém, ela implode quando: Há uma competição silenciosa por protagonismo, em que cada sócio defende o próprio feudo, mesmo que isso sabote o todo. O sócio mais jovem tem voz, mas não tem voto. Ele é ouvido, mas não tem espaço real para liderar. O "jovem talento" vira o sócio decorativo, ou o famoso "sócio cotinha". A escuta não é institucionalizada. Os temas difíceis só vêm à tona quando o problema já fugiu do controle, e a reunião vira tribunal sem imparcialidades. A amizade é confundida com sociedade, e o medo do confronto mina a tomada de decisões importantes. As decisões nascem no café, morrem na reunião e ressuscitam no WhatsApp, sem rastro, sem responsabilização, sem lógica. Os Beatles souberam criar juntos enquanto conseguiram decidir juntos. Talento nunca faltou. O que faltou foi estrutura para lidar com o crescimento da complexidade e o amadurecimento dos papeis. Quando isso se perdeu, a banda colapsou, mesmo no auge da capacidade criativa dos quatro. Nos escritórios, acontece o mesmo. Sem governança, a liderança compartilhada vira convivência frágil. E a convivência frágil, com o tempo, vira ruptura, cisão, frustração e drama. Um escritório de advocacia, como uma banda de rock, não sobrevive apenas de talento individual. Você pode ter os melhores advogados, o melhor marketing e os contratos mais robustos, mas, sem direção coletiva, harmonia interna e acordos firmes de convivência e entrega, o som desafina. Excelência jurídica sem estrutura de liderança é só barulho bem-intencionado. E de boas intenções, você sabe, o mercado está cheio. Uma banda de sucesso demanda mais do que bons músicos. Precisa de: Um repertório claro (o que vamos tocar juntos?) Um posicionamento comum (para quem estamos tocando?) Um ritmo bem distribuído (quem entra onde e quando?) E, sobretudo, um acordo sobre quem conduz o show e em que momentos cada um brilha. No escritório, quando não há estrutura de liderança, a queda pode estar próxima: Um escritório sem clareza de papéis vira ensaio interminável: todos tocam, mas ninguém sabe quem está conduzindo. Um escritório onde só um sócio aparece tende ao colapso relacional: protagonismo solitário é combustível para ressentimentos. Um escritório onde ninguém lidera mergulha num silêncio desconfortável e decisões importantes ficam suspensas no ar. Liderar sem hierarquia é, no fundo, compor juntos uma música que todos queiram tocar. É reconhecer que há mais de uma voz e que nenhuma deve se sobrepor ao ponto de silenciar as outras. Quando há respeito, escuta e alinhamento, a banda funciona. E o escritório, mais do que entregar bem, soa como um time coeso, pronto para grandes palcos. No auge, os Beatles compuseram juntos, revezaram o protagonismo, criaram formas inovadoras de gravar e desafiaram o padrão da indústria musical. Foram revolucionários não apenas pelo som, mas pela maneira como construíram juntos, equilibrando talento com escuta, criatividade com convivência. Mas quando a escuta se perdeu, quando os papéis se confundiram e os egos deixaram de se conter em nome do coletivo, até eles desmoronaram. Com os escritórios de advocacia, o enredo é parecido. Sociedades não rompem por falta de técnica. Elas racham por falta de alinhamento, ausência de governança e liderança mal exercida. Liderar bem não é sobre quem manda mais. É sobre saber tocar em conjunto por mais tempo. A liderança contemporânea compreende isso: que é possível construir excelência com múltiplas vozes, desde que haja partitura, cadência e respeito. No fim, o que mantém a banda viva não é o brilho de um único integrante. É a música que só o grupo consegue tocar junto, afinada, coerente e construída a cada ensaio. Não se trata de igualdade de funções. Trata-se de unidade de intenção. Porque escritórios que conseguem tocar em conjunto não apenas duram mais, eles deixam um legado. Já os que não conseguem... entonarão "Help"2 enquanto existirem. ________ 1 Tradução livre: O que você pensaria se eu cantasse desafinado? Você se levantaria e me deixaria sozinho? Preste atenção e eu lhe cantarei uma canção, e eu tentarei não cantar fora do tom. [With a Little Help from my Friends - The Beatles]. 2 Curte aqui! Disponível aqui.
And in the end, the love you take is equal to the love you make.1 Os Beatles, a maior banda de todos os tempos, não tinham um líder único. Tinham múltiplas vozes, talentos e ideias que se alternavam, se chocavam e, por muitos anos, se completavam. John Lennon e Paul McCartney travaram uma disputa competitiva e altamente profícua trazendo uma liderança mais explícita, George Harrison e Ringo Starr lideravam à sua maneira, de forma mais silenciosa ou mais brincalhona. Juntos, os quatro formavam um ecossistema criativo onde ninguém era maior que a banda e, justamente por isso, foram capazes de transformar a música para sempre. O auge veio quando souberam liderar juntos, cada um com sua identidade, respeitando a função do outro. E o fim veio quando essa liderança compartilhada se rompeu: excesso de ego, desalinhamento de visão, falhas de comunicação. O talento permaneceu. A banda, não. Nos escritórios de advocacia, o enredo se repete. Sociedades repletas de talento técnico, mas pobres em coesão estratégica. Sócios que se sobrepõem, outros que se omitem, lideranças que confundem senioridade com autoridade. Liderar sem hierarquia não é ausência de liderança. É maturidade para entender que o coletivo, quando bem alinhado, é mais poderoso do que qualquer brilho individual. Até a chegada dos Beatles, as bandas seguiam um modelo claro e vertical: um líder à frente, o frontman, e os músicos no fundo, dando suporte. A estrela decidia o repertório, conduzia a apresentação e concentrava a atenção. A banda, embora tecnicamente relevante, era invisível como estrutura decisória. Essa lógica de liderança se espelhava em outros contextos: uma figura carismática, centralizadora, responsável por guiar o grupo e receber os aplausos, enquanto os demais sustentavam a performance em silêncio. Mas os Beatles romperam esse padrão. John, Paul, George e Ringo alternavam os vocais, disputavam espaço criativo, assinavam composições em duplas, trios ou sozinhos. Não havia um "dono" do palco, havia um sistema complexo de lideranças compartilhadas que coexistiam em equilíbrio, inclusive na partilha dos lucros. A banda virou coletivo. E o coletivo virou potência. Nos escritórios de advocacia, o paralelo é evidente. Durante anos, o sócio fundador pode ter sido o "vocalista principal". O que decidia tudo, liderava sozinho, centralizava contatos, contratos e controles. Os demais sócios orbitavam, muitas vezes sem voz estratégica. Esse modelo, embora possa parecer eficiente no início, com o tempo engessa o crescimento e bloqueia a inovação. Hoje, o que se espera é outra coisa: um time onde diferentes líderes compartilham decisões, dividem protagonismo, sustentam juntos a cultura e criam um ambiente onde o talento pode circular sem depender da presença constante de uma única figura de autoridade. Liderar sem hierarquia não é abdicar da liderança. Também não é transformar a sociedade em uma democracia ingovernável, onde todos opinam sobre tudo e nada avança. O que esse modelo propõe é maturidade organizacional: uma estrutura que valoriza a escuta sem perder a direção. Que distribui poder sem dissolver responsabilidade. Que reconhece talentos sem se apegar à antiguidade. Em escritórios que adotam esse tipo de liderança, temos: Distribuição clara de papéis e responsabilidades: cada sócio conhece seu campo de atuação, suas entregas, e os indicadores pelos quais será avaliado. Ambiguidade vira exceção, não regra. Decisões construídas com escuta qualificada, mas com critério e autoridade final definida: ouvir não é submeter-se a consenso. É ampliar o repertório antes de decidir com lucidez. Autoridade legitimada por competência, consistência e visão, não por tempo de casa ou capital social: respeito é conquistado no cotidiano, não imposto pelo organograma. Colaboração institucionalizada: reuniões com pauta, comitês temáticos, espaços formais para debate estratégico. Porque confiar no "espírito de equipe" sem estrutura é romantismo operacional. Esse modelo exige mais dos sócios. Mais preparo emocional. Mais clareza de papel. Mais maturidade empresarial. Mais disposição para renunciar ao controle em nome da construção coletiva. Por isso tantos resistem, mas também por isso tão poucos sustentam crescimento com cultura forte. Liderança sem hierarquia não é mais fácil. É apenas mais inteligente. É como se o hino dos sócios fosse "With a Little Help from my Friends"2. Mas essa é apenas parte do que é possível aprender com eles. Na parte 2 deste artigo, vamos entender quando a liderança compartilhada brilha e quando ela implode. E, mais do que isso, o que a sua advocacia pode fazer para não repetir o fim da maior banda da história. _______ 1 Tradução livre: E no final, o amor que você recebe é igual ao amor que você dá. [The End - The Beatles]. 2 Disponível aqui.
Em Whiplash - Em Busca da Perfeição1, Andrew Neiman sonha em ser o melhor baterista de sua geração. Ele chama a atenção do impiedoso mestre do jazz Terence Fletcher, que ultrapassa todos os limites e transforma seu sonho em uma obsessão, colocando em risco a saúde física e mental do jovem músico. A trilha sonora é intensa. O ritmo, sufocante. O talento, inegável. Mas, ao final, a pergunta que fica não é sobre música. É sobre sanidade. Será que vale a pena viver sob pressão constante, confundindo exaustão com excelência? A analogia não é distante da advocacia. Muitos escritórios vivem em modo Whiplash: urgências constantes, agendas abarrotadas, decisões tomadas sob pressão, sócios sobrecarregados e equipes que operam no limite, como se o caos fosse uma virtude. Não é. Rotina não é o inimigo da liberdade. Rotina é o que liberta. E um escritório desorganizado não alcança performance: apenas sobrevive à custa de seus talentos. A ilusão do "bom trabalho" No filme, o mestre nunca elogia. Ele diz que não existem duas palavras na língua inglesa mais prejudiciais do que 'bom trabalho'2. Ele acredita que essa é a frase mais destrutiva que alguém pode ouvir. Segundo ele, esse tipo de reconhecimento prematuro gera acomodação, impede o aprimoramento e cria uma falsa sensação de excelência. Na advocacia, curiosamente, o elogio também é raro, mas por uma razão diferente. Não se trata de evitar a estagnação. É que, nos escritórios, há pouco espaço para pausa, escuta e reconhecimento verdadeiro. O dia a dia é tão tomado por urgências que celebrar conquistas parece perda de tempo. Resultado: prevalece uma cultura silenciosa de auto sacrifício. E o que substitui o elogio? A exaustão como medalha. Frases como: "Estamos trabalhando muito." "Esse mês foi puxado." "Trabalhamos sempre no limite." são repetidas com orgulho. Como se o simples fato de estar sobrecarregado fosse prova de competência. Mas será que é mesmo? Esse discurso, na verdade, revela um ambiente onde a intensidade virou sinônimo de excelência, mesmo que os resultados reais não acompanhem. E é aí que mora a armadilha: o "bom trabalho" não é dito, mas é assumido. Vive-se no modo automático do esforço contínuo, sem reflexão sobre a efetividade desse esforço. Trabalhar 12-14 horas por dia, sem controle de prioridades, sem pausas para análise e sem tempo para alinhar o time, não é alta performance, é sobrevivência. Alta performance de verdade não é barulhenta. Ela é estratégica, focada, previsível e sustentável. Ela exige energia, sim, mas também exige estrutura. E essa estrutura começa na rotina. Rotina bem desenhada não sufoca o talento. Pelo contrário, libera espaço para que ele possa brilhar com consistência. Ela permite que as pessoas saibam o que fazer, quando fazer, como medir o que entregam e como melhorar ao longo do tempo. Um time que opera com clareza e cadência não precisa de gritos, ameaças ou noites viradas para performar precisa de direção, autonomia e um ambiente que respeite a inteligência coletiva. No fundo, a lição de Whiplash não é sobre evitar elogios. É sobre substituir a obsessão pelo limite pela busca da excelência com equilíbrio. A rotina como ferramenta de gestão Em muitos escritórios, a rotina ainda é tratada como algo espontâneo, que "vai se ajeitando" conforme o volume de trabalho aparece. A frase comum é: "Aqui, cada dia é diferente." E é mesmo. A advocacia é, por natureza, dinâmica. Mas isso não significa que a rotina deva ser aleatória ou construída no improviso. A imprevisibilidade do ambiente não justifica a desorganização interna. Ao contrário, quanto mais incerta a demanda, mais a rotina precisa ser sólida. Rotina, em escritórios bem geridos, não é sinônimo de engessamento. É sinônimo de segurança operacional, clareza coletiva e poder de decisão com mais lucidez. Uma rotina de alta performance é aquela que transforma o tempo em ativo estratégico. Ela não apenas "acomoda" as tarefas: ela dá ritmo e intencionalidade ao que é feito. E para isso, alguns elementos são essenciais: Rituais de gestão: reuniões breves, regulares e objetivas. Elas são pontos de controle que evitam o desvio de energia com temas desnecessários e alinham o time em torno do que importa. Agenda com foco estratégico: sócios precisam reservar tempo para pensar o escritório, analisar indicadores, revisar metas e explorar oportunidades. Não pode haver apenas agenda para peticionar e atender cliente. Se o sócio não estiver cuidando do crescimento da firma, ninguém estará. Momentos de respiro e planejamento: uma semana sem pausa é uma semana em que decisões viram reações. Um escritório que não para pra olhar o próprio caminho corre o risco de caminhar em círculos. Controle sobre o tempo, não escravidão ao prazo: cumprir prazo não é diferencial, é obrigação. O que diferencia um time maduro é o domínio sobre o próprio calendário. É usar o tempo com inteligência, e não apenas obedecer ao relógio dos outros. Escritório que vive no 'modo urgência' está, na verdade, sempre atrasado. A cada nova demanda que surge, há uma corrida para reorganizar o que não deveria ter saído do lugar. E as consequências são previsíveis: Decisões apressadas, sem análise de impacto. Oportunidades deixadas na mesa por falta de tempo. Equipes ansiosas, que vivem no fio da navalha, sem senso de controle. Sócios sobrecarregados, que sentem culpa até por parar 15 minutos para pensar. Uma rotina bem estruturada protege o time da pressão desnecessária e cria um campo fértil para decisões melhores. Mais do que isso: ela é o sistema nervoso da gestão do escritório. Com ela, a estratégia desce para o chão. Sem ela, até a melhor ideia morre sufocada no corre-corre. O caos e a sua aparência traiçoeira Por fora, o caos parece movimento; por dentro, é apenas desorganização disfarçada de esforço. Escritórios que vivem sempre no limite acreditam que estão produzindo em alta rotação, mas, na verdade, estão apenas girando no próprio eixo. Quando tudo é feito no atropelo, o que realmente importa desaparece sob a poeira da urgência. Veja o que fica embaixo do tapete: Erros recorrentes: tarefas executadas às pressas não geram apenas retrabalho. Elas geram desgaste emocional, perda de confiança interna e, muitas vezes, clientes insatisfeitos. Um erro que se repete em silêncio custa caro: em imagem, em tempo e em energia. Falta de priorização: quando tudo é urgente, nada é importante. O time perde a capacidade de discernir o que é estratégico, o que é operacional, e o que simplesmente não deveria estar sendo feito. Sem prioridades claras, o escritório vira um lugar de tarefas acumuladas e não de entregas relevantes. Desenvolvimento estacionado: ninguém cresce sob pressão constante. Escritórios que operam no 'modo urgência' não têm espaço para aprendizado, inovação ou feedbacks estruturados. A equipe até entrega, mas não evolui. E isso, a médio prazo, é insustentável. Sócios à beira de um ataque de nervos: o caos rouba o tempo de quem deveria estar pensando o negócio. Sócios deixam de liderar para virar bombeiros: resolvem crises, cobrem ausências, supervisionam o trivial. O que é mais grave, começam a perder o prazer de empreender na advocacia. Perda de propósito: quando a rotina vira apenas sobrevivência, ninguém mais lembra o porquê de estar ali. A motivação se dissolve, a cultura enfraquece, e a visão de longo prazo vira uma abstração. E tudo isso acontece sem que ninguém perceba de imediato. Porque o caos é barulhento e, paradoxalmente, o barulho encobre os sinais de que algo está fora do lugar. É como tentar ouvir uma melodia no meio de uma turbina ligada. A rotina desorganizada é um tipo de ruído. Ela impede o time de ouvir as perguntas mais importantes: Estamos no caminho certo? Essa entrega tem qualidade? Esse cliente vale o esforço? Estamos crescendo ou apenas nos mantendo? No fundo, o caos afasta a estratégia e aproxima o colapso. E o mais perigoso é que ele se disfarça de produtividade. Não é sobre controle, é sobre liberdade Existe um equívoco recorrente entre advogados de que rotina engessa, burocratiza, tira a criatividade do jogo. Mas a verdade é justamente o oposto. Rotina bem desenhada não aprisiona, ela liberta. Liberta o tempo, a mente e a energia. Liberta da urgência que paralisa, da sobreposição de tarefas, da dependência constante do improviso. Quando a rotina é estruturada com inteligência, ela se torna um sistema que apoia, organiza e amplia a capacidade de entrega com qualidade. Uma rotina de alta performance permite: Organizar prioridades com clareza logo no início da semana, evitando a sensação de estar sempre correndo atrás do que já venceu o prazo. Reservar blocos de tempo para temas estratégicos, como marketing jurídico, inovação, análise de indicadores ou desenvolvimento de equipe, aquilo que constrói o futuro, mas vive sendo adiado no presente. Reduzir urgências com fluxos previsíveis, distribuindo tarefas de forma coerente e evitando que tudo se acumule no colo do sócio no último minuto. Medir e revisar entregas com consistência, fortalecendo a cultura de melhoria contínua e permitindo que a equipe saiba o que funciona e o que precisa evoluir. Delegar com responsabilidade e confiança, pois a rotina estruturada traz visibilidade, coordenação e accountability, o que transforma a delegação de algo temido em algo seguro. Com esse novo desenho, o sócio sai do redemoinho operacional e se reposiciona onde realmente deve estar: na condução estratégica do escritório. É nesse espaço que surgem as ideias, os movimentos ousados, os ajustes finos de posicionamento e as decisões que garantem o crescimento sustentável da banca. A rotina é, portanto, a infraestrutura invisível da liberdade. Quem domina a própria agenda não se prende: se expande. Como melhorar uma rotina? Desenhar uma rotina eficaz não exige fórmulas complexas, exige perguntas inteligentes, respostas honestas e decisões consistentes. Comece pela investigação: Quais são os horários em que o time está mais produtivo? Há escritórios que funcionam melhor nas manhãs concentradas, outros nas tardes silenciosas. Identificar o pico de energia ajuda a distribuir melhor as tarefas. Quais atividades realmente exigem a presença do sócio? Nem tudo precisa passar pelo topo. Sócios que não aprendem a delegar tornam-se gargalos e não lideranças. Quantas reuniões fazemos por semana e quantas poderiam ser resolvidas por e-mail ou uma boa pauta compartilhada? O tempo da equipe precisa ser protegido como ativo estratégico. O que está nos consumindo sem gerar resultado? Toda rotina arrasta ineficiências. Torná-las visíveis é o primeiro passo para eliminá-las. Com essas respostas em mãos, você pode estruturar uma rotina que respeite o tempo, estimule a autonomia e mantenha o escritório em movimento sem esgotamento. Minha sugestão é que você implemente, então, quatro blocos estratégicos: Ritual de início da semana Segunda-feira de manhã, com foco em priorização, distribuição de tarefas e alinhamento de entregas. Reunião rápida, objetiva, com pauta clara e tempo limitado. Blocos de foco individual De um a dois por semana, para que cada advogado possa se concentrar em tarefas críticas sem interrupções. Nada de reuniões, notificações ou desvios nesse período. Revisão de andamento dos casos estratégicos Uma reunião semanal de curta duração entre os sócios ou gestores para verificar gargalos, tomar decisões e garantir fluidez nas frentes prioritárias. Momento de avaliação e melhoria contínua Uma vez por mês, com o time, para revisar o que funcionou, o que pode ser ajustado e o que precisa ser abandonado. Sem esse olhar periódico, a rotina vira protocolo vazio. E aqui vale o alerta: rotina criada e não respeitada é ainda mais danosa do que a ausência de rotina. Ela gera frustração, cinismo e desmobiliza o time. A consistência, sim, é o que transforma boas intenções em cultura firme. Rotina jurídica de alta performance não é sobre controle rígido. É sobre criar o terreno fértil onde estratégia, talento e entrega podem florescer dia após dia. É sobre cadência, não sobre pressa. No filme, a busca obsessiva pelo ritmo perfeito empurra o protagonista para o limite físico e mental. Ele sangra, desaba, colapsa. Tudo em nome de uma performance idealizada que cobra o preço da saúde, da sanidade e do propósito. Na advocacia, o colapso não vem com baquetas quebradas ou dedos sangrando. Ele chega de forma silenciosa e persistente: burnout, desmotivação, rotatividade, queda na qualidade de entrega. Sintomas diferentes, mesma origem: um ambiente onde a velocidade atropela a inteligência. Alta performance verdadeira não é feita de correria. Ela é feita de cadência. De ritmo. De constância com propósito. O escritório que opera em velocidade desenfreada, sem tempo para respirar, analisar e ajustar, perde precisão e, com o tempo, perde o sentido. Pense numa orquestra de jazz. Mesmo que haja improviso, cada instrumento tem seu tempo de entrada. Cada músico conhece a sua função e respeita o tempo do outro. É um jogo de escuta ativa, ritmo interno e confiança mútua. Cada entrada tem intenção. Cada pausa tem sentido. Cada solo é liberdade com responsabilidade. O maestro, se existir, não dita o tempo com rigidez. Ele observa, sente e conduz com leveza. A performance nasce do equilíbrio entre autonomia e harmonia. Assim também deve ser a rotina em um escritório: não uma partitura rígida que engessa o time, mas uma base sólida que permita fluidez, inteligência e protagonismo. Rotina de excelência não é sobre apertar a equipe. É sobre afinar os instrumentos para que o coletivo soe bem, com ritmo, leveza e entrega. Conclusão - O tempo não é o problema. A maioria dos advogados não sofre por falta de tempo. Sofre por falta de método para lidar com o tempo. Sofre por excesso de improviso, ausência de cadência, falta de estrutura. E isso não se resolve com mais esforço - se resolve com mais direção. Na advocacia, o colapso raramente chega com estardalhaço. Ele se infiltra nos detalhes: na agenda sempre cheia e eternamente com pendências, nas decisões apressadas, na equipe esgotada, no propósito que se dilui sem alarde. Quer produzir mais, com mais qualidade e ainda ter tempo para viver? Organize sua rotina. E trate-a como o que ela é: um ativo estratégico do escritório, tão valioso quanto os contratos, os clientes e os honorários. Porque rotina não é prisão. Rotina é compasso. É ela que permite que o talento apareça com consistência. Que o escritório funcione com clareza. Que o sócio pense o futuro sem ser engolido pelo presente. No final de Whiplash, o protagonista vive o seu momento perfeito: o solo certo, no tempo certo, com o olhar certo. Não porque foi forçado, mas porque, finalmente, encontrou sintonia entre intenção, ritmo e entrega. Na advocacia, a alta performance não nasce do caos. Ela nasce do domínio sobre o tempo. E o tempo só obedece a quem aprende a conduzi-lo. _______ 1 Disponível aqui. There are no two words in the English language more harmful than "good job".
quarta-feira, 16 de julho de 2025

Tício, Mévio, Caio e a nova advocacia

Há quem não queira aceitar, mas a advocacia vai encolher. Não no sentido de perder relevância - pelo contrário, nunca foi tão necessária a presença estratégica do advogado na vida das pessoas, das empresas e dos sindicatos. O encolhimento a que me refiro é outro: menos advogados farão mais trabalho. Menos estruturas físicas abrigarão mais tecnologia. Menos tarefas manuais sobreviverão diante da automação crescente. Estamos vivendo o que poderíamos chamar de "desinflação profissional": o mercado jurídico se expande em complexidade, mas não em volume de pessoas contratadas. Isso significa que a profissão se tornará mais enxuta e especializada, exigindo de cada profissional três características fundamentais: Eficiência Operacional. Não haverá mais espaço para advogados que operam apenas como repassadores de informação ou replicadores de modelos prontos. Escritórios e departamentos jurídicos buscarão, cada vez mais, profissionais capazes de produzir mais resultados com menos recursos. Isso inclui dominar fluxos de trabalho, ferramentas de automação, gestão de projetos e comunicação clara com clientes e equipe. Visão Estratégica. Advogados que enxergam apenas o contencioso perderão lugar para aqueles que compreendem o impacto de suas teses na saúde financeira do cliente, na reputação, no mercado e no planejamento de longo prazo. Saber interpretar cenários, mapear riscos e apresentar soluções preventivas será diferencial para permanecer na profissão. Especialização Inteligente. O tempo do generalista puro está no fim. A inteligência artificial ocupará rapidamente as tarefas jurídicas repetitivas e de baixa complexidade. O advogado do futuro (que já é o do presente) precisará se posicionar como especialista em resolver problemas relevantes, seja dominando um nicho técnico, seja integrando conhecimento jurídico a outras áreas estratégicas dos clientes. Imaginemos que a advocacia reduza cerca de 20% ao ano nos próximos 5 anos no que diz respeito ao volume de profissionais necessários para executar tarefas jurídicas operacionais. Isso significa que, até 2030, escritórios poderão ter estruturas reduzidas pela metade (ou mais) em áreas que lidam com demandas repetitivas, sem comprometer (e, em muitos casos, aumentando) a produtividade. Por que essa redução aconteceria? Automação massiva. Petições iniciais, contestações, contratos simples, publicações e leituras de andamentos estão sendo automatizados por softwares jurídicos integrados a IA generativa e bancos de dados jurisprudenciais.         Aumento de eficiência. Ferramentas de workflow, gestão de prazos, extração de dados de processos e análise preditiva reduzirão drasticamente a necessidade de intervenção manual. Mudança no modelo de contratação na advocacia empresarial. Muitos departamentos jurídicos terceirizarão apenas o estratégico, mantendo o operacional automatizado internamente ou com parceiros de tecnologia. Vamos fazer uma conta simples para dimensionar o impacto desse exercício de futurologia: Hoje, o Brasil conta com aproximadamente 1 milhão e meio de advogados ativos. Se o mercado reduzir a necessidade de profissionais em cerca de 20% ao ano, isso significa que em 5 anos, o mercado demandará menos de 500 mil advogados para realizar o mesmo trabalho que hoje ocupa 1,5 milhão de profissionais. Disclaimer importante: não confunda advogado com portador de OAB. Esse cenário se torna ainda mais dramático quando olhamos para os números dos resultados do Exame da Ordem: adiciona-se dezenas de milhares de novos profissionais ao ano em um mercado que, ao mesmo tempo, elimina centenas de milhares de posições em função da automação e do encolhimento estrutural. É como encher um balde furado: a formação continua em ritmo acelerado, mas a absorção real de novos advogados encolhe drasticamente. O futuro de Tício, Mévio e Caio Para ilustrar o problema, usarei as figuras (nossas velhas conhecidas) de Tício, Mévio e Caio, intercalando estórias que poderiam representar os caminhos possíveis na advocacia que vem aí. Tício: O advogado operacional Tício sempre foi rápido. Aprendeu primeiro a usar inteligência artificial para redigir petições, contratos e consultas. Sua produtividade disparou. Mas, aos poucos, Tício parou de ler livros, jurisprudência e artigos. Confiava cegamente no ChatGPT e outras ferramentas de IA. Quando o escritório implementou IA integrada aos bancos de dados internos, perceberam que o sistema produzia tudo que Tício produzia - mas sem salário ou encargos, 24 horas, 7 dias por semana. Tornou-se dispensável. Hoje, Tício vende seguros. Diz que cansou da advocacia, mas a verdade é que a advocacia não era para ele. O encolhimento não é apenas efeito colateral da tecnologia. A inteligência artificial está funcionando como um grande mecanismo de controle da população de advogados. Ela elimina a necessidade de trabalho humano nas tarefas de baixa complexidade, forçando um filtro natural: permanecem apenas aqueles que agregam inteligência crítica, estratégia e especialização real ao mercado. Em termos darwinianos, é a lei do mais adaptável. Mas, em termos sociais, é um novo controle: forma-se muito mais do que o mercado precisa, mas apenas quem se diferencia sobrevive. Mévio: O advogado estrategista em IA jurídica Mévio também usava IA, mas diferente de Tício. Lia cada petição gerada, revisava fundamentos, atualizava jurisprudência, complementava com doutrina e usava o tempo que economizava para estudar novos temas, como tecnologia jurídica, gestão de dados e inteligência artificial aplicada ao Direito. Percebendo que a automação era inevitável, decidiu não apenas ser usuário de IA, mas dominar sua lógica e potencial. Fez cursos de IA para advogados, estudou data analytics jurídico e passou a trabalhar diretamente com a gestão para mapear processos, parametrizar softwares jurídicos e treinar ferramentas de automação para aumentar a eficiência do escritório. Quando o escritório precisou reduzir advogados operacionais, Mévio não só permaneceu como se tornou essencial. Hoje, atua como legal operations strategist, sendo o responsável por identificar quais tarefas podem ser automatizadas, parametrizar sistemas para ganho de eficiência, garantir a qualidade jurídica do que é produzido pela IA, treinar a equipe para usar tecnologia com pensamento crítico, e criar novos modelos de serviços jurídicos baseados em dados. Mévio deixou de ser apenas advogado redator de peças para se tornar o estrategista de tecnologia jurídica, integrando Direito, gestão e IA. Seu papel hoje é garantir que o escritório não apenas produza mais rápido, mas também pense melhor e entregue maior valor aos clientes. Um estudo recente do MIT Media Lab comprova o risco que Tício viveu. A pesquisa Your Brain on ChatGPT1 mostrou que pessoas que usam IA para escrever apresentam menor engajamento cerebral, especialmente em áreas responsáveis pelo pensamento crítico, criatividade, memória e tomada de decisão. Os pesquisadores chamaram isso de "dívida cognitiva": cada vez que você terceiriza o raciocínio sem esforço prévio, acumula déficit de aprendizado, perdendo, a longo prazo, a capacidade de fundamentar, argumentar e criar com autonomia. Se, por um lado, a IA traz velocidade e produtividade, por outro, cria um risco real: o emburrecimento profissional. Advogados que terceirizam todo o raciocínio jurídico para ferramentas automáticas, deixam de exercitar sua capacidade de análise crítica, interpretação sistêmica e argumentação lógica. A isso soma-se um fenômeno silencioso, mas perigoso: a redução drástica do hábito da leitura. Muitos advogados estão deixando de ler doutrina, jurisprudência e obras formadoras de pensamento jurídico, confiando apenas em resumos de IA, vídeos curtos ou petições pré-prontas. Isso faz com que uma geração de profissionais não domine fundamentos, mas saiba onde clicar. Em pouco tempo, tornam-se apenas operadores de sistemas, sem entender o que estão entregando. Um exemplo prático: jovens advogados que constroem todas as suas petições com IA, sem revisar fundamentos doutrinários ou jurisprudenciais, passam a escrever sem pensar. O resultado? Textos que "parecem certos", mas sem consistência técnica, aumentando riscos para o cliente e para sua própria credibilidade no mercado. Em resumo: quanto mais você usa IA para tudo, menos inteligente se torna. Caio: O advogado especialista Caio nunca quis grandes bancas. Desde cedo, montou sua boutique especializada em direito digital e proteção de dados. Mergulhou em estudos, construiu reputação e formou equipe enxuta, mas altamente técnica. Usa IA para agilizar tarefas operacionais, mas seus clientes o contratam por sua capacidade de enxergar riscos antes que aconteçam e estruturar soluções estratégicas. Ele não teme o encolhimento do mercado. Sabe que a advocacia vai reduzir nos próximos anos, mas também sabe que quem resolve problemas complexos nunca ficará sem trabalho. Voltando a Darwin, não é o mais forte que sobrevive, nem o mais inteligente, mas o que melhor se adapta às mudanças. Essa é a essência do que acontecerá com a advocacia nos próximos anos. Não serão os maiores escritórios, nem os advogados com mais diplomas que prosperarão, mas sim aqueles que souberem: usar tecnologia com inteligência, fortalecer o pensamento crítico, manter hábitos profundos de estudo e leitura, e especializar-se estrategicamente. Nesse cenário, as boutiques ganham força. São mais enxutas, técnicas e reconhecidas pela profundidade intelectual. Não competem por volume, competem por qualidade, resultado e confiança. Enquanto os Tícios serão substituídos, Mévio e Caio seguirão no jogo. Advogados e escritórios que desejam sobreviver e prosperar precisarão tomar decisões corajosas o mais rápido possível: Investir em tecnologia de forma planejada, sabendo o que automatizar e o que manter como serviço humano premium; Revisar o modelo de negócios, entendendo que vender somente hora ou petição não sustenta crescimento exponencial; Desenvolver habilidades de liderança, gestão e negociação, que não podem ser substituídas por máquinas; Fortalecer sua marca pessoal ou institucional, deixando claro ao mercado qual problema você resolve e por que é melhor nisso; Fomentar cultura de aprendizado contínuo, para lidar com a obsolescência acelerada dos conhecimentos jurídicos isolados; Ser como Mévio ou Caio, não como Tício. Nesse novo mundo jurídico, a IA atuará como grande filtro, reduzindo vagas, controlando o mercado e emburrecendo quem a usa sem reflexão. No final, será o advogado que pensar melhor, fundamentar melhor e liderar melhor, não o que automatizar tudo, que permanecerá indispensável. Diga para nós: você está mais para Tício, Mévio ou Caio? ________ 1 Disponível aqui.
"As pessoas estão erradas sobre como o jogo deve ser jogado." - Billy Beane, em Moneyball Imagine que seu escritório é um time de beisebol. Você tem orçamento limitado, jogadores talentosos mas irregulares, uma torcida exigente e um campeonato inteiro pela frente. Como competir com os grandes? A resposta tradicional seria contratar os melhores nomes, investir pesado em estrutura e torcer para que tudo funcione. Mas essa foi exatamente a lógica que Moneyball - o filme - desafiou. E venceu. Billy Beane (Brad Pitt), gerente do Oakland Athletics, não tinha dinheiro para competir com os gigantes da liga. Em vez de seguir o senso comum, ele apostou em dados. Olhou para estatísticas reais e descobriu o que realmente fazia um time vencer jogos. O resultado? Mudou a história do esporte.  Mas o que isso tem a ver com advocacia? Tudo. Porque a maioria dos escritórios ainda planeja como se estivesse jogando "do jeito que sempre foi jogado". Sem dados, sem jurimetria, sem estratégia, sem clareza de propósito. Planejamento, quando existe, é feito numa tarde de janeiro, com metas vagas, planilhas esquecidas e uma lista de promessas que ninguém revisita. Está na hora de mudar o jogo. Planejamento não é previsão. É direção. Vamos começar corrigindo um equívoco comum: planejamento não é exercício de adivinhação. Não se trata de prever o futuro, mas de preparar-se para ele com base no que você sabe agora. É dar direção, foco e intenção para as escolhas que você precisa fazer ao longo do ano. O escritório que planeja com seriedade responde perguntas essenciais: Qual é o nosso posicionamento? Quais áreas são estratégicas para nós? Que tipo de cliente queremos (ou não queremos)? Quanto precisamos faturar - e quanto podemos crescer com eficiência? O que precisa melhorar internamente para esse crescimento ser possível? O que precisamos deixar de fazer para acompanhar os novos tempos? Essas perguntas estruturam o plano. Mas não basta fazer perguntas: é preciso ter dados para responde-las. E aqui entra o espírito Moneyball. O que você mede, você melhora Billy Beane começou a vencer quando parou de contratar jogadores pela fama e passou a olhar estatísticas reais: número de chegadas na base, percentual de aproveitamento, custo por vitória. Ele não contratava estrelas - contratava resultados. Muitos escritórios ainda decidem com base em sensações. "Estamos indo bem." "O mês foi fraco." "Temos muita demanda."  Mas quando se pergunta: Qual é o ticket médio dos seus contratos? Qual área é mais lucrativa? Quanto custa captar um cliente novo?  Qual sócio está com a operação mais ineficiente? .o silêncio toma conta da sala. Planejar sem medir é como navegar com os olhos fechados. Você pode até chegar em algum lugar, mas não sabe como, nem por quê - e o risco de afundar o navio é alto. A diferença entre metas e desejos Outro erro clássico: confundir metas com desejos. "Queremos dobrar de tamanho", "queremos faturar mais", "queremos ser referência". Isso não é meta - é aspiração, e em alguns casos, ilusão. Meta precisa ser específica, mensurável, alcançável, relevante e temporal (sim, o velho acrônimo SMART, mas com alma). Exemplo: "Queremos aumentar em 30% o faturamento da área consultiva até dezembro, com base na oferta de contratos recorrentes para clientes empresariais." Isso é meta. Dá para acompanhar, ajustar, cobrar. E principalmente: conecta-se com ações concretas de planejamento. O que um bom planejamento contempla Um bom planejamento para escritórios de advocacia precisa integrar três dimensões: 1. Dimensão estratégica Define o rumo do escritório: posicionamento, foco de atuação, nicho, diferenciais, metas de crescimento, novos mercados. Aqui se responde: Onde queremos chegar? 2. Dimensão organizacional Trata da estrutura interna: equipe, processos, fluxos, tecnologia, comunicação interna, cultura. Aqui se responde: Como vamos operar melhor? 3. Dimensão comercial Inclui marketing, prospecção, precificação, experiência do cliente, fidelização. Aqui se responde: Como vamos nos sustentar e crescer? Muitos escritórios planejam apenas o estratégico. Outros, apenas o financeiro. Raros são os que olham os três pilares de forma integrada. Mas é nessa integração que o plano ganha força - e sai do papel. Cases que revelam o poder de planejar certo Um escritório especializado em Direito Médico vivia estagnado há mais de três anos. Os sócios trabalhavam muito, mas os resultados pareciam sempre mornos, "na média".  Em uma mentoria estratégica, descobriram que: 70% do faturamento vinha de apenas 20% dos clientes; A equipe gastava 30% do tempo com demandas sem rentabilidade; A área de marketing jurídico gerava grande volume de leads, mas não havia canal de conversão estruturado. Com isso, criaram um plano com três frentes: Descontinuaram parte dos serviços menos rentáveis; Estruturaram um funil de vendas com jornada clara para o cliente; Treinaram a equipe para foco e especialização. Em menos de um ano, aumentaram o faturamento em 60% sem ampliar o time. O que mudou? A clareza. O direcionamento. O plano. Planejamento precisa caber na rotina Outro erro comum: fazer o plano e esquecê-lo. Planejamento não é um documento para ocupar aquela tarde de janeiro. É um mecanismo vivo, que exige acompanhamento mensal, ajustes trimestrais e revisão semestral. Exige disciplina. Tenha rituais de gestão: Revisão mensal de metas e indicadores; Reuniões de alinhamento com os sócios e gestores; Avaliações de produtividade e desempenho da equipe; Análise de novos cenários e ajustes de rota. E sim, planejar também é saber dizer não. Às vezes, para aquele cliente fora do escopo. Às vezes, para um projeto que parece promissor, mas não está no plano. Foco é força. Evite as armadilhas do planejamento decorativo Cuidado com os powerpoints bonitos, mas inúteis. Se o seu planejamento não muda sua rotina, não influencia suas decisões e não gera ação - ele é apenas decoração. Planejamento bom: Traz clareza no presente; Gera movimento no curto prazo; Constrói consistência no médio; E dá sentido ao longo prazo. Ele não é feito para impressionar - é feito para funcionar. Aprendendo com Moneyball Billy Beane mudou o beisebol porque teve coragem de olhar para os dados e quebrar as regras do jogo tradicional. Você não precisa ser um rebelde, mas precisa fazer o mesmo: olhar de frente para os números, rever crenças, e montar um plano baseado no que realmente gera resultado. A advocacia está mudando rapidamente. Quem planeja com visão e coragem larga na frente. Porque o futuro não é de quem adivinha. É de quem se prepara e executa melhor.
quarta-feira, 18 de junho de 2025

Sua advocacia precisa de gestão

"Meu pai me disse uma vez: Michael, nunca diga a ninguém fora da família o que você está pensando."Don Vito Corleone, em O Poderoso Chefão  Michael Corleone não era apenas o filho de um poderoso mafioso. Ele era o herdeiro de um império - um sistema operado com base em lealdade, segredo e comando centralizado. A família Corleone tinha sua própria lógica de funcionamento, seus códigos internos, seus ritos. E, acima de tudo, uma gestão concentrada em um núcleo duro, onde a palavra do chefe era lei. Isso te soa familiar?  Pois é. O retrato de muitos escritórios de advocacia no Brasil ainda se parece muito mais com a Família Corleone do que com uma advocacia profissional. Decisões tomadas em cafés informais, papéis sobrepostos, informações guardadas a sete chaves, e um organograma que só existe na cabeça do sócio fundador. O que falta é o que sobra nas grandes empresas: gestão.  A toga é o símbolo da nossa dignidade profissional. Mas ela não pode vestir também a maneira como gerimos negócios. Está na hora de tirar a toga da gestão.  A lógica do clã  Durante anos, escritórios de advocacia cresceram na base do esforço pessoal e da reputação individual de seus fundadores. Numa época em que a concorrência era menor, o volume de demandas mais previsível e o marketing jurídico ainda inexistente, bastava ser bom tecnicamente para manter uma estrutura em pé.  Nesse modelo, os sócios fundadores acumulavam funções: advogavam, decidiam, contratavam, treinavam, cuidavam das finanças, escolhiam a cor da cadeira da recepção e ainda escreviam o cartão de Natal do escritório. Tudo girava em torno deles - e apenas deles.  Quem estava ao redor aprendia por osmose. E, claro, por lealdade. O modelo funcionava - até certo ponto. Mas era frágil, concentrado, insustentável. Com a modernização do mercado jurídico, esse tipo de estrutura mostra suas rachaduras.  E é aqui que mora o primeiro problema: muitos líderes ainda confundem estrutura com tradição. Preservar o que funciona não significa manter o que atrasa. O afeto pela história do escritório não pode ser um álibi para manter uma gestão artesanal e imprecisa.  O que é, afinal, gestão?  Gestão é a capacidade de organizar recursos (pessoas, tempo, dinheiro, conhecimento) para gerar resultados consistentes. Isso exige clareza de metas, papéis bem definidos, processos estruturados e indicadores objetivos.  Nos escritórios que operam como "família", decisões são tomadas com base em sentimentos: "acho que fulano merece", "vamos manter isso porque sempre fizemos assim", "não vamos falar disso agora porque pode gerar conflito".  Já nas empresas, decisões são tomadas com base em dados e estratégia: "o custo-benefício desse serviço está desajustado", "o processo de onboarding precisa melhorar", "nosso funil de captação está falhando na conversão".  A diferença entre os dois mundos não está no afeto - está na maturidade. Em empresas, inclusive as bem-sucedidas, há espaço para afeto. Mas ele não é o critério principal.  A mágica da profissionalização: casos que inspiram  Recentemente, acompanhei a trajetória de um escritório médio que decidiu profissionalizar a gestão. O primeiro passo foi simples: mapear os serviços oferecidos e entender quais eram realmente lucrativos.  Para isso, precisaram implantar um sistema básico de indicadores. Descobriram, por exemplo, que uma área adorada pelos sócios - e de altíssimo prestígio no meio jurídico - era a que mais consumia horas e gerava o menor retorno financeiro. Em outras palavras: prestavam um serviço nobre, mas que comprometia a saúde do negócio.  A decisão foi difícil. Reduziram a atuação naquela área e redirecionaram os melhores talentos para setores mais estratégicos. Com isso, conseguiram aumentar o lucro sem contratar ninguém - apenas reorganizando o time e os fluxos.  Essa é a mágica da gestão: ela não precisa ser imediatista nem radical. Mas precisa ser racional.  O medo de "virar empresa"  Muitos advogados têm receio de que, ao adotar ferramentas de gestão, estejam "vendendo a alma do negócio". "Nosso trabalho é humano", dizem. "Não dá pra medir tudo", defendem. E têm razão: nem tudo é mensurável. Mas muita coisa é.  Não se trata de transformar o escritório numa startup de tecnologia com pufes coloridos e dashboards a cada canto. Trata-se de criar uma estrutura previsível, eficiente e escalável - onde as pessoas saibam o que precisam entregar, a quem recorrer, como medir progresso, como se desenvolver.  E, sim, onde os sócios possam parar de apagar incêndios para pensar o negócio com mais profundidade.  Comece com o essencial Você não precisa implantar um ERP robusto ou contratar um CEO externo amanhã. Gestão começa com perguntas incômodas:  Por que fazemos o que fazemos do jeito que fazemos? Quem decide o quê no nosso escritório? Como sabemos se estamos indo bem? O que acontece quando alguém erra? Nossos lucros vêm de onde? Quem é responsável por desenvolver as pessoas da equipe?  As respostas dessas perguntas criam o embrião de um plano de ação. Depois, sim, vêm os indicadores, os fluxos, a revisão de papéis, o desenho de metas, o uso de tecnologia.  Mas tudo começa com uma decisão: deixar de gerenciar pelo instinto e começar a liderar pelo propósito.  O preço de não mudar  Os escritórios que resistem à profissionalização geralmente enfrentam sintomas silenciosos: sócios sobrecarregados, advogados talentosos que vão embora, crescimento estagnado, conflitos mal resolvidos e decisões arrastadas.  É como um carro potente com o freio de mão puxado. Ele anda, mas gasta mais, força o motor e desgasta os pneus antes do tempo.  Pior: corre o risco de perder o timing do mercado. Outros escritórios mais leves, mais ágeis, mais estruturados começam a capturar os clientes e os talentos que antes estavam ali.  E tudo isso sem necessariamente serem melhores tecnicamente. São apenas melhores como empresas.  A diferença entre dono e gestor  Todo sócio é dono - mas nem todo dono é gestor.  O gestor é aquele que entende o todo, distribui responsabilidades, acompanha resultados, corrige desvios e fomenta desenvolvimento. Ele não tem todas as respostas, mas sabe fazer as perguntas certas. E, principalmente, sabe delegar.  Na lógica do clã, o dono centraliza. Na lógica empresarial, o gestor potencializa.  Na lógica do clã, confiança é pessoal. Na lógica empresarial, confiança é construída com base em processos, métricas e clareza de papéis.  Florença ou Palermo?  Voltando à metáfora que abre este artigo: a gestão à la Corleone pode ser sedutora. Existe glamour na figura do líder central (com um gatinho no colo), que resolve tudo, conhece todos e mantém as rédeas firmes. Mas essa centralidade cobra um preço: o da limitação.  Se você quiser fazer do seu escritório uma obra de longo prazo - algo como as catedrais de Florença - precisa pensar como arquiteto, não como capataz.  A pergunta que fica é: você quer construir uma dinastia ou manter a dependência?  Conclusão - A provocação final  Tirar a toga da gestão não é perder a alma da advocacia. É salvá-la.  É garantir que ela continue existindo amanhã - com mais impacto, mais eficiência e mais equilíbrio. Porque escritório bom não é o que depende do brilho de um sócio. É o que continua brilhando mesmo quando ele sai de cena.  Fecho esse artigo cantarolando as primeiras notas da música-tema do filme: sol-dó-mi-ré-dó-mi-dó-ré-dó-lá-si-sol. Tenho certeza que você sabe do que eu estou falando.