O que a advocacia pode aprender com os Beatles sobre governança - Parte 2
quarta-feira, 27 de agosto de 2025
Atualizado em 26 de agosto de 2025 13:41
What would you think if I sang out of tune?
Would you stand up and walk out on me?
Lend me your ears and I'll sing you a song
And I'll try not to sing out of key1
Na parte 1, vimos como os Beatles desafiaram o modelo tradicional de liderança e mostraram que múltiplas vozes, quando alinhadas, podem criar algo verdadeiramente transformador. Mas o que acontece quando esse alinhamento se perde? Como escritórios de advocacia podem se proteger dos mesmos riscos que colocaram um ponto final numa das bandas mais icônicas da história?
Liderança compartilhada não é improviso coletivo. Ela depende de estrutura, alinhamento e, repito, maturidade institucional. Funciona quando há acordos claros e falha quando tudo se apoia na boa vontade.
Na advocacia, ela brilha quando:
- Há visão comum sobre o futuro do escritório, ainda que existam estilos diferentes entre os sócios. Divergência de caminhos paralisa. Divergência de estilos enriquece.
- Os papéis entre os sócios são definidos, respeitados e revisados periodicamente conforme o escritório evolui. Acúmulo de funções e sobreposição de poder só geram ruído.
- Existem mecanismos de governança que estruturam o diálogo: conselhos, comitês, reuniões com pauta, atas e encaminhamentos. Onde não há estrutura, sobra interpretação.
- Há confiança suficiente para conversar sobre o que incomoda antes que vire ressentimento. O que não é dito, cresce nas sombras.
- A cultura interna valoriza autonomia com responsabilidade, e não permissividade disfarçada de liberdade. Ser horizontal não é ser frouxo.
Porém, ela implode quando:
- Há uma competição silenciosa por protagonismo, em que cada sócio defende o próprio feudo, mesmo que isso sabote o todo.
- O sócio mais jovem tem voz, mas não tem voto. Ele é ouvido, mas não tem espaço real para liderar. O "jovem talento" vira o sócio decorativo, ou o famoso "sócio cotinha".
- A escuta não é institucionalizada. Os temas difíceis só vêm à tona quando o problema já fugiu do controle, e a reunião vira tribunal sem imparcialidades.
- A amizade é confundida com sociedade, e o medo do confronto mina a tomada de decisões importantes.
- As decisões nascem no café, morrem na reunião e ressuscitam no WhatsApp, sem rastro, sem responsabilização, sem lógica.
Os Beatles souberam criar juntos enquanto conseguiram decidir juntos. Talento nunca faltou. O que faltou foi estrutura para lidar com o crescimento da complexidade e o amadurecimento dos papeis. Quando isso se perdeu, a banda colapsou, mesmo no auge da capacidade criativa dos quatro.
Nos escritórios, acontece o mesmo.
Sem governança, a liderança compartilhada vira convivência frágil.
E a convivência frágil, com o tempo, vira ruptura, cisão, frustração e drama.
Um escritório de advocacia, como uma banda de rock, não sobrevive apenas de talento individual. Você pode ter os melhores advogados, o melhor marketing e os contratos mais robustos, mas, sem direção coletiva, harmonia interna e acordos firmes de convivência e entrega, o som desafina.
Excelência jurídica sem estrutura de liderança é só barulho bem-intencionado. E de boas intenções, você sabe, o mercado está cheio.
Uma banda de sucesso demanda mais do que bons músicos. Precisa de:
- Um repertório claro (o que vamos tocar juntos?)
- Um posicionamento comum (para quem estamos tocando?)
- Um ritmo bem distribuído (quem entra onde e quando?)
- E, sobretudo, um acordo sobre quem conduz o show e em que momentos cada um brilha.
No escritório, quando não há estrutura de liderança, a queda pode estar próxima:
- Um escritório sem clareza de papéis vira ensaio interminável: todos tocam, mas ninguém sabe quem está conduzindo.
- Um escritório onde só um sócio aparece tende ao colapso relacional: protagonismo solitário é combustível para ressentimentos.
- Um escritório onde ninguém lidera mergulha num silêncio desconfortável e decisões importantes ficam suspensas no ar.
Liderar sem hierarquia é, no fundo, compor juntos uma música que todos queiram tocar. É reconhecer que há mais de uma voz e que nenhuma deve se sobrepor ao ponto de silenciar as outras.
Quando há respeito, escuta e alinhamento, a banda funciona. E o escritório, mais do que entregar bem, soa como um time coeso, pronto para grandes palcos.
No auge, os Beatles compuseram juntos, revezaram o protagonismo, criaram formas inovadoras de gravar e desafiaram o padrão da indústria musical.
Foram revolucionários não apenas pelo som, mas pela maneira como construíram juntos, equilibrando talento com escuta, criatividade com convivência.
Mas quando a escuta se perdeu, quando os papéis se confundiram e os egos deixaram de se conter em nome do coletivo, até eles desmoronaram.
Com os escritórios de advocacia, o enredo é parecido.
Sociedades não rompem por falta de técnica. Elas racham por falta de alinhamento, ausência de governança e liderança mal exercida.
Liderar bem não é sobre quem manda mais. É sobre saber tocar em conjunto por mais tempo.
A liderança contemporânea compreende isso: que é possível construir excelência com múltiplas vozes, desde que haja partitura, cadência e respeito.
No fim, o que mantém a banda viva não é o brilho de um único integrante. É a música que só o grupo consegue tocar junto, afinada, coerente e construída a cada ensaio.
Não se trata de igualdade de funções.
Trata-se de unidade de intenção.
Porque escritórios que conseguem tocar em conjunto não apenas duram mais, eles deixam um legado. Já os que não conseguem... entonarão "Help"2 enquanto existirem.
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1 Tradução livre: O que você pensaria se eu cantasse desafinado? Você se levantaria e me deixaria sozinho? Preste atenção e eu lhe cantarei uma canção, e eu tentarei não cantar fora do tom. [With a Little Help from my Friends - The Beatles].
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