Autoritarismo e legalidade democrática: Trump à luz de Carl Schmitt e Otto Kirchheimer
terça-feira, 4 de fevereiro de 2025
Atualizado em 3 de fevereiro de 2025 09:23
A ascensão e o governo de Donald Trump nos Estados Unidos reacenderam debates profundos acerca da vulnerabilidade da democracia liberal, do papel do Estado de Direito e da manipulação das instituições jurídicas para fins políticos. Dois eminentes pensadores alemães, Carl Schmitt (1888-1985) e Otto Kirchheimer (1905-1965), forneceram arcabouços teóricos distintos, mas complementares, que permitem lançar luz sobre o fenômeno Trump. Vale a pena prestar atenção a esses pensadores.
Schmitt, um dos mais influentes juristas do século XX, destacou-se por sua defesa do estado de exceção e do decisionismo político, que justificaria a concentração do poder executivo em detrimento das normas jurídicas convencionais (e ao status quo vigente na política). Kirchheimer, associado à Escola de Frankfurt e crítico do Direito e dos partidos políticos, analisou como regimes autoritários aqueles que instrumentalizam o aparato jurídico para consolidar seu poder sob um verniz de legalidade. A análise de ambos os pensadores se revela interessante para compreender o impacto do governo Trump na democracia americana.
Como já me referi anteriormente1, Schmitt argumentava que "soberano é aquele que decide sobre o estado de exceção", estabelecendo que a política não poderia ser subordinada à legalidade em momentos de crise. O governante, segundo sua tese, deveria ter a prerrogativa de suspender normas a fim de garantir a estabilidade do Estado. Trump frequentemente evocou essa lógica para justificar medidas unilaterais que expandiam sua autoridade. Exemplo claro foi sua resposta à crise migratória, declarando medidas de "emergência nacional" para redirecionar verbas militares à construção do muro na fronteira com o México, contornando o Congresso. Essa decisão reflete a lógica schmittiana na qual a prerrogativa soberana se impõe à normatividade legal e constitucional.
Outro elemento crucial da teoria schmittiana presente na retórica de Trump foi a distinção entre "amigo" e "inimigo" como fundamento da política. Trump estruturou sua narrativa política com base na criação de inimigos externos (China, México, Irã) e internos (imprensa, oposição política, minorias e, claro, os imigrantes). A demonização da mídia como "inimiga do povo" é emblemática face à visão schmittiana de que a política não se sustenta sobre o "consenso", mas sim sobre um "antagonismo inexorável" ("America First"). Essa lógica permitiu a Trump galvanizar sua base eleitoral em torno de um discurso de conflito permanente, justificando ações extraordinárias (fora do padrão da Rule of Law) contra as instituições tradicionais.
O ataque ao Capitólio em 6/1/21 constitui um exemplo extremo e inédito nos EUA do estado de exceção em ação. Ao incitar seus apoiadores a rejeitarem o resultado das eleições de 2020, Trump desafiou a legitimidade do processo democrático e testou os limites da ordem constitucional, demonstrando como o conceito de soberania schmittiana pode ser instrumentalizado para justificar medidas que corroem a própria legalidade.
Otto Kirchheimer, por outro lado, analisaria o governo Trump sob outra ótica. Em sua teoria sobre o "Estado de Direito Autoritário", Kirchheimer demonstrou como regimes autocráticos utilizam instituições jurídicas para conferir legitimidade a práticas ilegais ou antidemocráticas. O governo Trump seguiu essa lógica ao interferir no Departamento de Justiça para beneficiar aliados políticos e perseguir adversários. Um exemplo ilustrativo foi sua tentativa de pressionar autoridades jurídicas para reverter investigações contra aliados como Michael Flynn e Roger Stone, enquanto simultaneamente politizava investigações contra opositores como Hunter Biden.
Kirchheimer também teorizou sobre o esvaziamento ideológico dos partidos políticos e sua transformação em meros veículos de poder. Durante a presidência de Trump, o Partido Republicano abandonou sua plataforma ideológica tradicional em prol de uma lealdade incondicional ao líder - como na Alemanha do fuhrer. A ausência de dissidência interna, mesmo diante de atos que violavam princípios republicanos fundamentais, como a contestação do resultado eleitoral, exemplifica o fenômeno identificado por Kirchheimer de "partidos pega-tudo" (catch-all parties), nos quais a identidade partidária é dissolvida em torno da figura do líder. Não foi o que ocorreu?
Outro aspecto relevante da teoria kirchheimeriana é o uso do Direito como ferramenta para restringir direitos civis e consolidar o poder executivo. A política de separação de crianças imigrantes de seus pais na fronteira, defendida sob argumentos jurídicos, ainda que flagrantemente violadora dos direitos humanos, ilustra como o Direito pode ser distorcido para servir a objetivos autoritários sob o pretexto de legalidade. Há quem veja isso como "normal", aqui e no exterior.
Se, por um lado, Schmitt explica o governo Trump em termos de decisão soberana e estado de exceção, Kirchheimer expõe a forma pela qual a legalidade pode ser manipulada para reforçar tendências autoritárias. A diferença crucial entre os dois diagnósticos reside no fato de que Schmitt poderia justificar algumas das ações de Trump com base na "soberania decisória", enquanto Kirchheimer alertaria sobre a insidiosa corrosão das instituições democráticas por meio da instrumentalização do aparato jurídico.
A administração Trump demonstrou que democracias liberais não são imunes à lógica do estado de exceção e da manipulação do Direito para fins políticos. O ataque ao Capitólio e a contestação do pleito de 2020 já evidenciaram o perigo da retórica populista fundamentada na dicotomia "amigo-inimigo", essencial ao pensamento schmittiano. Agora vê-se Trump eleito novamente. Simultaneamente, a captura de instituições como o Departamento de Justiça e a transformação do Partido Republicano em um instrumento de fidelidade pessoal refletem a dinâmica descrita por Kirchheimer sobre a erosão das democracias pelo uso seletivo do Direito.
O governo Trump servirá como um experimento contemporâneo para a aplicação das ideias de Carl Schmitt e Otto Kirchheimer? A justificativa teórica para a centralização do poder e a adoção de um estado de exceção e a revelação de como as democracias podem ser corroídas por dentro por meio da manipulação estratégica do Direito parecem ser os dois lados que serão testados nos EUA (e fora dele).
O caso americano reitera que a tensão entre legalidade e decisão política permanece central para a sobrevivência do Estado de Direito. A leitura desses pensadores alemães nos proporciona uma compreensão mais acurada dos desafios que a democracia enfrenta em tempos de polarização extrema e ascensão do populismo autoritário.