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Política, Direito & Economia NA REAL

Enfoque político, jurídico e econômico.

Francisco Petros
terça-feira, 22 de abril de 2025

Francisco: Angústia e esperança

Francisco não desejava veneração, tampouco multidões dóceis: ansiava por consciências despertas, por discípulos que ardessem na inquietação da responsabilidade. A morte do Papa Francisco (1936-2025), neste 21 de abril, não se inscreve apenas no obituário dos grandes líderes religiosos; ela revela o encerramento simbólico de uma tentativa radical - e ao mesmo tempo terna - de reconciliar a Igreja com os fragmentos humanos que o século XXI insiste em desprezar: os pobres, os invisíveis, os tristes, os que desistiram de esperar. Jorge Mario Bergoglio, o primeiro Papa vindo da América Latina, selou no nome de Francisco uma escolha ética, estética (no sentido cultural) e espiritual - o ascetismo poético de Assis - e assumiu, até o último instante, a missão de reconfigurar a Igreja como espaço de acolhimento, combate e compaixão. Mas não se compreende essa travessia sem confrontar a rudeza de nosso tempo: convulsões que colapsam os alicerces sociais, políticos e econômicos do mundo dito civilizado. Num planeta embriagado por uma angústia que Kierkegaard1, em tempos remotos, descreveu como o vértice entre a liberdade e o nada - e que hoje se manifesta em epidemias de solidão, desespero e anestesia moral -, Francisco ousou reabilitar a linguagem do amor como ética (no sentido humano) e como salvação (no sentido religioso). Seu magistério não repousa na retórica: há nas suas encíclicas, em seus gestos de proximidade e em sua denúncia da cultura da indiferença uma tentativa de restaurar o sagrado na existência cotidiana - aqui o seu comportamento foi essencialmente jesuítico. Para muitos, ele ofereceu não uma resposta, mas um eco - algo entre um sussurro e um grito - diante do brutalismo do presente. Com lucidez rara, compreendia que os instrumentos do passado - dogmas, protocolos, hierarquias - eram insuficientes frente aos dilemas do agora. Assim, ergueu uma voz que não temia a modernidade, mas que buscava redimi-la. Em "Laudato Si'", encíclica que se ergue como novo manifesto ético-ambiental, inaugurou a ideia de uma ecologia integral, síntese entre o cuidado com a Terra, a justiça social e o sentido espiritual da existência. "Tudo está interligado": essa frase, que poderia ser banal, torna-se, em sua boca, uma chave metafísica contra a tirania da desigualdade econômica e social e da decomposição relacional. No espírito do filósofo Jonathan Wolff2 - cuja concepção de justiça não se esgota em igualdade aritmética, mas exige o reconhecimento da dignidade como substância política -, Francisco identifica na exclusão o ponto de fratura da moralidade coletiva. Para ambos, justiça é reconstrução: senão apenas no sentido material, mas também de almas. Eis então um Papa que, mais do que redistribuir, queria restituir; mais que ensinar, desejava escutar. Seu pensamento não é técnico nem diplomático: é um compromisso com a atenção radical. A dor do outro, para ele, não é estatística - é teológica. Foi também no escuro dos conflitos que sua voz ecoou com mais nitidez. Ucrânia, África, fronteiras militarizadas - a geopolítica não lhe era indiferente. Rejeitou o conforto das neutralidades, nomeou os interesses que movem as guerras e chorou pelos que fogem. Condenou muros, exaltou pontes. A diplomacia, para ele, não era jogo de xadrez, mas gesto de misericórdia. Internamente, enfrentou os fantasmas da Igreja: o clericalismo, os abusos sexuais e materiais, o autoritarismo e o silêncio cúmplice diante dos fatos que conspiram contra a humanidade. Criou estruturas inéditas de escuta, acolheu vítimas e desafiou a inércia institucional da Cúria Romana. Se não foi além do possível, foi até onde a coragem permitiu. A reforma da Cúria, com sua insistência em descentralizar o poder e incluir os esquecidos no seio do governo eclesial, não foi apenas gesto administrativo: foi uma recusa simbólica do poder como privilégio. Com relação às mulheres, não se refugiou em negações dogmáticas, nem cedeu às pressões ideológicas. Seu movimento foi o da abertura progressiva, tateante, porém real. Ao nomeá-las para postos-chave, ao abrir-lhes espaço no Sínodo, ao permitir o debate sobre o sacerdócio, iniciou uma transição que talvez outros completem. No campo das novas tecnologias, mostrou-se profético. Advertiu contra os perigos da inteligência artificial, não em nome do progresso, mas da alma. Denunciou algoritmos que devoram subjetividades e sistemas que transformam o humano em dado. Acompanhava, nesse sentido, pensadores como Shoshana Zuboff3 e Byung-Chul Han4, que acusam o desaparecimento do eu no espetáculo digital. Seu antídoto era o encontro - a presença, o silêncio, o olhar. Sua opção pelos pobres nunca foi caridade ocasional, mas insurgência ética. Convocou os movimentos sociais, sonhou com uma economia que tivesse rosto, e declarou sem meias-palavras: "esta economia mata". O escândalo de suas palavras foi também sua força. A denúncia do capitalismo desalmado lhe rendeu inimizades entre os poderosos - e veneração entre os deserdados. Talvez nada resuma melhor sua tentativa de transformação institucional do que o sínodo sobre a Sinodalidade. Um evento que subverteu a lógica vertical, que desafiou o modelo monárquico do poder eclesial. Um processo em que a escuta se converteu em método e a pluralidade, em revelação. A Igreja, neste gesto, ensaiou ser comunidade, e não corte; povo, e não elite. No teatro do mundo, Francisco recuperou o papel diplomático da Santa Sé com uma tonalidade distinta: não como intermediário, mas como consciência. Participou de diálogos que reaproximaram nações, foi presença em zonas de horror, elevou os sem-nome aos palcos do poder. Sua diplomacia não operava pelo cálculo, mas pela compaixão. Num tempo em que a democracia oscila, o clima agoniza, os extremos se radicalizam e a esperança parece vulgarizada, sua morte inaugura uma ausência que é também chamada. Francisco foi síntese viva entre tradição e ousadia, entre autoridade e escuta, entre liturgia e mundo. Sua partida é um corte. Seu legado, uma seta. Francisco não desejava veneração, tampouco multidões dóceis: ansiava por consciências despertas. Sua espiritualidade do encontro é convite constante à insurgência da ternura. Em meio à agonia do presente, sua existência aponta, com sobriedade e vigor, para o que ainda pode ser salvo. Ele nos lembrou - não com palavras de fogo, mas com gestos de luz - que a esperança, para ser verdadeira, deve ser crítica. E que a fé, para ser viva, precisa andar com os pés sujos do mundo. __________ 1 Recordo esse pensador dinamarquês porque ele considerava a fé como o remédio para o desespero - entendida a fé não como "crença abstrata", mas como entrega existencial ao fundamento divino do ser. Esse conceito se conecta profundamente com o legado espiritual do Papa Francisco, que, diante de um mundo em angústia, propôs uma fé encarnada no amor, na escuta e na dignidade. 2 WOLFF, Jonathan. Ethics and Public Policy: A Philosophical Inquiry. London: Routledge, 2011 3 Em sua obra The Age of Surveillance Capitalism argumenta que as grandes plataformas digitais criaram um regime econômico baseado na extração de dados comportamentais para prever e manipular condutas humanas. Ela denuncia a perda de autonomia e privacidade do sujeito diante de algoritmos opacos e práticas corporativas invasivas. Para Zuboff, esse sistema representa uma ameaça inédita à liberdade individual e à democracia. 4 Han, especialmente em obras como "A Sociedade do Cansaço", argumenta que vivemos sob um regime de auto exploração, onde o indivíduo é pressionado a produzir continuamente, perdendo o silêncio, a contemplação e a verdadeira liberdade interior. Essa crítica ressoa profundamente com a proposta espiritual de Francisco de recuperar a presença, o cuidado e o sentido comunitário. Sua proposta era a de uma ética da presença, do cuidado, da contemplação.
Pensadores que convergem na denúncia do niilismo e na afirmação da transcendência.  Estamos na conjunção da Páscoa cristã e do Pessach judaico, datas que se relacionam não apenas à tradição, mas sobretudo nos seus significados históricos e espirituais mais profundos. Permiti-me publicar um texto sobre o tema da esperança considerados os tempos difíceis sob os quais vivemos, para além da "Política, do Direito e da Economia", temas de minha coluna. Sigamos, então. A multiplicidade de crises - ambientais, sociais, políticas, morais e espirituais - compõe um cenário que muitos têm denominado como um "fim de época", ou, como diria o Papa Francisco, uma "mudança de era". Não se trata apenas de problemas isolados, mas de uma transformação profunda das estruturas e, sobretudo, da percepção que o ser humano tem de si mesmo e do mundo. Entre o que está morrendo e o que ainda não nasceu, emerge a questão central que inspira esse texto: ainda é possível falar em esperança? Explorei alguns autores, de forma esparsa, e não necessariamente organizada, para refletir sobre esse tema. O questionamento exige mais do que uma análise da realidade aparente, mas a escuta atenta aos fundamentos da cultura ocidental que moldaram a ideia de pessoa, de dignidade, de comunidade e de destino histórico. Tanto o cristianismo - em sua expressão teológica, moral e social - quanto o pensamento judaico - em sua tradição ética, sapiencial e profética - oferecem não apenas consolo, mas um sentido. Com suas diferenças e convergências, há respostas robustas à crise da esperança que caracteriza a modernidade tardia (e "líquida", como diz Bauman). Ou, ainda, como afirma Viktor Frankel (1905-1997), médico e filósofo judeu: "A busca do homem não é pelo prazer (como dizia Freud) nem pelo poder (como dizia Adler), mas por um sentido." Esse vínculo profundo entre as duas tradições manifesta-se de forma emblemática nas celebrações da Páscoa cristã e do Pessach judaico. Ambas são festas da memória e de libertação, nascidas do encontro entre sofrimento vivido e promessa - no contexto atual, muito significativo esse vínculo. No Pessach, o povo judeu celebra a saída do Egito, a travessia do deserto e a fidelidade de Deus que escuta o clamor dos oprimidos. É uma festa de resistência, mas também de confiança: o Deus que libertou é o mesmo que caminha com seu povo na história. Já a Páscoa cristã, celebrando a ressurreição de Cristo, atualiza o triunfo da vida sobre a morte, do amor sobre o pecado e da esperança sobre o desespero. É a festa da nova criação, onde a cruz, instrumento de suplício, converte-se em sinal de vida renascida. Ambas as festas, embora distintas em conteúdo teológico, compartilham a convicção de que a história não está fechada sobre si mesma. O pão sem fermento e o vinho pascal, o cordeiro e a travessia, o túmulo vazio e o anúncio da ressurreição - todos esses elementos compõem uma linguagem ritual que comunica algo essencial: há um sentido que sobrevive ao sofrimento, e há uma promessa que renasce no meio das ruínas. Arnold Toynbee (1889-1975), célebre por sua seminal obra A Study of History, legou-nos uma leitura ampla das civilizações que se ergueram e tombaram ao longo dos milênios. Sua tese fundamental é provocativa: as civilizações não sucumbem por causas materiais, mas por esgotamento espiritual. É quando perdem a capacidade de responder criativamente aos desafios históricos - e, sobretudo, quando abandonam seu núcleo espiritual - que entram em colapso. Toynbee intuiu, sob muitas críticas de intelectuais, que as "minorias criativas", muitas vezes de natureza religiosa, são as únicas capazes de renovar uma cultura em decadência. Em seu diagnóstico do Ocidente moderno, ele não hesita em apontar para a falência espiritual como sinal da exaustão de um modelo civilizacional. Há coragem nas suas conclusões, como se pode verificar. Goste-se ou não. Essa percepção encontra eco profundo no pensamento de Jean Guitton (1901-1999), filósofo francês que buscou articular razão e fé, ciência e espiritualidade, num tempo em que tais domínios pareciam cada vez mais cindidos, sobretudo na Europa. Guitton via no "silêncio de Deus" - e na angústia que esse silêncio provoca - um dos dramas centrais da modernidade. Não se trata, em sua visão, de "ausência ontológica de Deus", mas de uma "surdez cultural" que incapacita o homem moderno de escutar o divino. Para ele, "crer é continuar esperando quando tudo em volta parece desmentir a esperança", escreveu. Uma postura não de ingenuidade, mas de fidelidade mesmo diante do caos. Mais do que qualquer outro pensador católico do século XX, Jacques Maritain (1882-1973) percebeu que a crise espiritual da modernidade precisava ser respondida com um novo modelo de civilização: nem a utopia totalitária (naqueles tempos, o comunismo), nem os excessos do individualismo liberal, mas uma civilização do amor, fundada na dignidade da pessoa e na responsabilidade social. Seu projeto (utópico, em sentido profundo, e não ideológico) de "democracia centrada na pessoa e na comunidade" não era sistema político propriamente, mas um ethos. A pessoa humana, para Maritain, é mais do que sujeito de direitos: é chamada à transcendência, à comunhão, à justiça. Sem esse fundamento espiritual, todo projeto político resvala na opressão ou no vazio. Daí sua célebre advertência: "Uma sociedade sem metafísica é uma sociedade sem alma". Gilbert Keith Chesterton (1874-1936) e C.S. Lewis (1898-1963), abordaram, cada um a seu modo, a crise do sentido com a literatura à mão, o humor e a inteligência crítica. Chesterton, um escritor popular e de proverbial sagacidade, identificou na perda do senso comum cristão a raiz de alguns dos males modernos. Para ele, o cristianismo é a resposta humana e razoável ao mistério da existência. Em Ortodoxia, ele argumenta que a fé cristã é o sistema que valoriza o indivíduo e, diante do mistério do mal, possibilita o milagre. C.S. Lewis, em A Abolição do Homem, a esperança cristã é inseparável da luta pela verdade - e a verdade é inseparável da presença de Deus. Esses pensadores convergem na denúncia do niilismo e na afirmação da transcendência. Mas é no diálogo com o pensamento judaico que essa denúncia ganha contornos ainda mais especiais. Pois o século XX, o nazismo e seus campos de extermínio, obrigou o povo judeu a pensar o impensável: o mal absoluto, a ausência de Deus em meio à barbárie, a fé ferida pela história. E, no entanto, foi dessa ferida que emergiram alguns dos mais poderosos testemunhos de esperança, como os que se seguem. Abraham Joshua Heschel (1907-1972), rabino polonês exilado nos Estados Unidos, é uma dessas vozes. Sua espiritualidade está nas entranhas, é profética e concreta. Heschel afirmava que "Deus não está ausente, mas insultado". Para ele, a fé não é um "sistema de crenças", mas uma atenção radical ao sagrado que se esconde no cotidiano. A oração, o shabat, a justiça - tudo isso são formas de tornar Deus presente no mundo. Sua crítica ao secularismo não é uma imposição, mas um chamado existencial: um mundo sem Deus é um mundo sem espanto, sem compaixão, sem memória, pronto a repetir crimes. Nada mais verdadeiro. Essa dimensão ética também se encontra em Emmanuel Lévinas (1905-1995). Sobrevivente dos horrores do século XX, Lévinas construiu uma filosofia centrada no "rosto humano do outro". O rosto, diz ele, é epifania (manifestação): revela o infinito, convoca à responsabilidade, proíbe matar. Não há justiça sem o outro; não há liberdade sem vínculo - um aviso primevo aos "libertários" das fake news e do anarquismo social. Essa ética da alteridade aproxima-se da teologia cristã da caridade, na qual cada rosto é potencialmente o rosto de Cristo. O encontro com o outro torna-se, assim, espaço de revelação e de juízo. Martin Buber (1878-1965), em sua obra Eu e Tu, completa essa tríade com uma "antropologia do encontro". O ser humano só se realiza na relação (seria o rosto de Lévinas?), e essa relação só é autêntica quando é livre de dominação. Quando digo "Tu", não estou nomeando um objeto, mas abrindo-me ao mistério (seria o "chamado existencial" de Hecshel?). Deus, para Buber, é o "Eterno Tu". E cada encontro verdadeiro com o próximo é uma antecipação do encontro com o Absoluto. Essa visão humana e transcendental ressoa na tradição cristã do amor como dom e comunhão. Por fim, o Nobel de Literatura Elie Wiesel (1928-2016), com a rara sobriedade dos que conheceram o abismo, sugere que a esperança, para ser digna, tem de nascer da dor. Sobre o Holocausto, Wiesel recusa "tanto o cinismo quanto o consolo fácil". Ele insiste na fidelidade da memória, na vida e na responsabilidade que nasce do sofrimento. "O oposto do amor não é o ódio, é a indiferença." Em meio ao abandono de tantos, uma mensagem forte. Essa última citação de Wiesel resume o espírito deste pequeno ensaio: a esperança não é um "estado de espírito" centrado no ego, mas uma decisão moral, um compromisso espiritual, uma recusa ativa da indiferença em relação aos homens e a Deus.  Feliz Páscoa, Chag Pessach Semeach!
Donald Trump é, inegavelmente, o fenômeno mais marcante da política contemporânea, goste-se ou não. Sua ascensão meteórica à presidência dos Estados Unidos em 2016, sua derrota eleitoral e posterior retorno ao poder, revelam não apenas uma personalidade política resiliente, mas a manifestação mais profunda de transformações culturais, econômicas e institucionais que atingem não apenas os Estados Unidos, mas o globo. Ao assumir novamente a presidência em um segundo mandato não consecutivo (o que é historicamente incomum), Trump não retoma apenas antigas diretrizes: quer inaugurar um "novo paradigma", mais claro, mais radical e profundamente marcado por uma rejeição do globalismo, do liberalismo clássico e das instituições democráticas tradicionais. Aqui o mercado, de forma equivocada, não entendeu essa transformação e o viu como um liberal pró-business. Ele não é. Se o século XX foi marcado por uma divisão ideológica entre capitalismo e comunismo, o século XXI parece caminhar para uma nova "guerra fria": a que contrapõe democracias liberais em crise profunda e "autoritarismos digitais de viés empresarial-tecnológico" em ascensão. A China, a Rússia e outros países mais periféricos como Hungria e Argentina vêm se fortalecendo como modelos de governança baseados em estruturas de gestão verticais, controle informacional e centralização de decisões econômicas e políticas. Trump, com sua retórica e prática, aproxima-se mais desses modelos em oposição à democracia construída na codificada Constituição de 1787 dos EUA, a mais antiga do mundo. Os recentes aumentos de tarifas contra parceiros comerciais históricos, a retórica nacionalista e populista intensificada e o desdém por instâncias multilaterais revelam um projeto de poder que não visa simplesmente governar o Estado, mas redefinir os fundamentos da ordem global o que, paradoxalmente, pode estimular o declínio da América. Trump tentará inclusive alterar os processos de sucessão no poder central e nas instituições do Estado, coisa inimaginável há poucos meses. Como dissemos acima, essa reconfiguração tem sido erroneamente interpretada, inclusive do Brasil, por setores do empresariado e da direita liberal como um projeto de caráter pró-business. Nada poderia estar mais distante da realidade. Trump não é um liberal econômico. Seu projeto, no cerne, é profundamente político, e coloca a economia a serviço de um projeto político autoritário, nacionalista e antiglobalista. Desde os anos Reagan, o mundo vivia sob a hegemonia do neoliberalismo. O mercado foi erigido como "regulador natural" das relações humanas. A política, enfraquecida enquanto construção cívica e social, cedeu espaço aos interesses econômicos. O homo economicus tornou-se o sujeito central da história contemporânea. No entanto, com Trump, essa lógica parece inverter-se rapidamente. O que se observa é um retorno da política como força organizadora da vida social. Mas, esse retorno não se dá por vias democráticas ou deliberativas: ele é marcado por uma reconfiguração autoritária do poder, que coloca a economia sob a égide de um projeto conservador e populista. A ausência de um sistema de mercado que incorporasse os valores sociais e democráticos e mantivesse a legitimidade permitiu que figuras como Trump canalizassem as frustrações populares contra as elites econômicas e institucionais. Por sua vez, o empresariado acreditou que poderia domar Trump. Agora, o presidente norte-americano conduz o mundo rumo à distopia. Francis Fukuyama1, que pregou o "fim da história" e vislumbrou a consolidação da democracia liberal após a queda do Muro de Berlim, hoje reconhece que subestimou as forças do ressentimento, do nacionalismo e da identidade cultural. Digo: subestimou também a desigualdade que se formava. O trumpismo é a prova concreta de que a história não acabou. Ela voltou com fúria, armada com algoritmos, fake news e redes sociais. A nova guerra é ideológica e intensamente simbólica, mas seus efeitos são profundamente materiais: o abalo sísmico das instituições democráticas, a erosão da cooperação internacional e a ascensão de regimes autoritários ao redor do globo. Zygmunt Bauman, com sua noção de "modernidade líquida"2, ajuda-nos a entender por que projetos como o de Trump ganham adesão. Em tempos de incerteza, de dissolução de laços comunitários e de angústia frente ao futuro, figuras autoritárias oferecem a promessa de estabilidade. Essa promessa é ilusória, mas eficaz. A "identidade americana" oferecida por Trump não é apenas uma retórica: é uma estratégia de reconstrução simbólica de "pertencimento" e, inevitavelmente, de exclusão econômica, social, das identidades nacionais, racial e política. A terceira via imaginada pelos teóricos do neoliberalismo, notadamente Anthony Giddens3, e os dilemas da globalização, já apontavam para os riscos de uma política que não dialogasse com as ansiedades reais da população. No Brasil, FHC foi o grande representante dessa ideologia que comprometeu os fundamentos de seu partido, o PSDB. O problema é que, diante do vácuo de liderança moral e intelectual, surgiram soluções simplistas, autoritárias e perigosas. O trumpismo é uma delas; sua exportação já é perceptível na Europa, na América Latina e em partes da Ásia. De outro lado, a esquerda se perdeu na visão de um Estado empresarial e disfuncional. A corrupção ingressou nos governos de esquerda com profusão. Estamos diante de um processo de transformação, cuja liderança americana, baseada em instituições, valores liberais e cooperação global, pode ser substituída por um império "tribalizado", centrado em vontades individuais e em microconflitos internos. A guerra civil simbólica dentro dos EUA pode ser também um sinal do colapso de seu papel como guia do Ocidente. Enquanto os valores ocidentais enfrentam erosão, muitos países orientais demonstram maior preservação institucional. A Europa esterilizou boa parte de sua cultura, visão política e econômica, e envelhece sob taxas de natalidade sofríveis. Neste contexto, as decisões tarifárias de Trump não respondem a critérios econômicos da globalização, mas a impulsos políticos, a objetivos de curto prazo de agradar suas bases e punir adversários e, no longo prazo, para forjar o novo paradigma. O mercado global, que acreditava poder contornar Trump, vê-se hoje acuado. A nova ordem é, por ora, imprevisível, volátil e autorreferente. A distopia ocidental não é um futuro distante: ela está em curso. E seu principal motor é a confusão entre liderança e autoritarismo, entre soberania e isolacionismo, entre identidades particulares e a exclusão das maiorias. O grande erro dos analistas econômicos foi subestimar o poder da política quando moldada pelo medo e pela desinformação. Cabe às democracias do mundo repensarem seus pactos sociais, sua pedagogia cívica e seus mecanismos de proteção institucional. O futuro não está mais nas "mãos invisíveis do mercado", mas nas escolhas muito tangíveis da política. E, como nos lembra Hannah Arendt4, "a política baseia-se no fato da pluralidade humana". Negar essa pluralidade, é abrir caminho para a barbárie - um percurso que o trumpismo parece perseguir. A ética do mercado foi derrotada pela estética do confronto. _______ 1 FUKUYAMA, Francis. O fim da história e o último homem. Rio de Janeiro: Rocco, 1992. 2 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. 3 GIDDENS, Anthony. A terceira via: reflexões sobre o impasse político atual e o futuro da socialdemocracia. São Paulo: Record, 1999. 4 ARENDT, Hannah. A condição humana. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009.
terça-feira, 25 de março de 2025

Educação e o dilema individual e da cidadania

"A crise nas escolas exige medida radical para impedir que meninos machuquem meninas e a si mesmos".Jack Thorne, coautor de "Adolescência" Foi inquietante, provocante e, por vezes, provocador, assistir a série "Adolescência" de Jack Thorne e Stephen Graham, uma reflexão rigorosa e dramaticamente estruturada que escancara o dilema existencial no qual a educação está enredada no mundo contemporâneo. Uma análise precisa e, ao mesmo tempo, implacável sobre o estado atual de nossa formação cidadã. Infelizmente, tornou-se banal a noção de que a educação desempenha um papel central na construção da cidadania e, por consequência, da própria política. A ideia é rotineira, mas a implementação dessa premissa tem sido negligenciada no Ocidente - muito se discute e pouco se realiza diante de um mundo que mescla o real e o virtual. Nas sociedades que aspiram a democracia enquanto um valor e não apenas "um modelo", o sistema educacional deveria ser organizado de forma a propagar a compreensão de que vivemos sob leis que protegem os bens comuns e promovem a cidadania em seu sentido mais comunitário. É cada vez mais evidente que essa missão não pode ser delegada exclusivamente à família ou, ainda mais, ao setor privado, pois não é possível educar para a cidadania por meio de "modelos educacionais desconectados". Somente um sistema cívico público pode garantir a formação equitativa e republicana dos indivíduos, especialmente em meio à fragmentação proporcionada pelas mídias sociais. Em verdade, a educação cívica pública é indispensável para a manutenção da democracia e para a consolidação de uma sociedade justa e coesa: essa me parece a conclusão mais sensata quando se assiste a uma série como "Adolescência". É necessário, mais do que nunca, um "planejamento cívico" que origine e desenvolva a "consciência e a uniformidade" necessárias para a regulação da vida da cidadania, por meio do ensino dos valores humanistas e da estimulação e fixação da ideia de "excelência social", compreendida como a convicção de que cada indivíduo pertence à sociedade (local e global) e tem responsabilidade com o bem comum. Claro que não é uma tarefa que se possa ser modulada para uma administração de governo. Tem de ser propagada e sedimentada ao longo do tempo, de forma prioritária e não oportunística. Não há educação cívica num ambiente de oportunismo e populismo governamental. Simples assim. A cidadania não pode ser compreendida apenas como um conjunto de direitos individuais, mas como um compromisso coletivo baseado na justiça e na equidade. Michel Sandel enfatiza que a democracia exige cidadãos engajados, capazes de compreender o bem comum e de participar ativamente da vida política1. Tal concepção exige um planejamento educacional que vá além da simples transmissão de conhecimentos técnicos e inclua a formação ética e cívica dos indivíduos. Desde muito, Aristóteles já argumentava no seu seminal "Ética à Nicômaco"2 que a educação moral é um elemento essencial para o desenvolvimento da virtude e da vida em comunidade. Sem um sistema educacional que priorize essa formação, corre-se o risco de criar uma sociedade cujos cidadãos não interagem entre si, onde a cidadania se torna meramente formal e instrumental, desprovida de significado social (de valor e de prática). Dessa maneira, um planejamento educacional cívico é indispensável para garantir que todos os cidadãos compartilhem uma base comum de valores e responsabilidades. Martha C. Nussbaum propõe, com rara clareza intelectual, que a educação deve fomentar a empatia, a reflexão ética e a capacidade de julgamento crítico3. Valores que sejam universalmente difundidos evitam a exclusão social e de distorção dos valores fundamentais da humanidade - talvez seja esse o ponto central da série da Netflix. Aqui vale citar Umberto Galimberti4 que adverte sobre os perigos da 'racionalidade técnica', que reduz a educação a uma mera instrumentalização do conhecimento, negligenciando sua dimensão ética e cívica. Essa percepção filosófica de Galimberti expõe a essência do mundo virtual, que se entrelaça ao cotidiano das sociedades contemporâneas, produzindo o distanciamento social perigoso dos indivíduos. Afinal, quando a lógica da eficiência e do pragmatismo domina o sistema educacional, a cidadania perde espaço para uma formação tecnicista que não prepara os indivíduos para a participação democrática e para a promoção do bem comum. O avanço tecnológico tem modificado a maneira como o conhecimento é disseminado e assimilado, trazendo consigo tanto oportunidades quanto desafios para a educação cívica. Se por um lado a tecnologia permite maior acesso à informação, por outro promove a desinformação e dificulta o desenvolvimento de uma consciência cidadã coesa. Umberto Galimberti enfatiza que a "palavra técnica" tornou-se um tipo de racionalidade que visa atingir os máximos objetivos com o mínimo de meios, o que, quando aplicado à educação, pode resultar na desvalorização do pensamento crítico em favor de habilidades meramente instrumentais5. Para mitigar esse risco, é necessário que o ensino público incorpore a tecnologia de maneira responsável: o autor de Adolescência Jack Thorne disse à BBC que a "crise nas escolas exige medida radical para impedir que meninos machuquem meninas e a si mesmos". John Dewey, em sua obra 'Democracy and Education', argumenta que a escola deve ser uma extensão da sociedade democrática, onde os indivíduos aprendem, desde cedo, a importância do pensamento crítico e da participação ativa na vida pública"6. Sem uma educação que promova esses valores, os cidadãos podem se tornar passivos diante das injustiças sociais e vulneráveis à manipulação política e, nos tempos atuais, à fragilidade midiática. Paulo Freire pregava essa ideia, há muito, ao defender que a educação deve ser libertadora, promovendo a conscientização dos indivíduos sobre suas condições sociais e estimulando-os a agir para transformar a realidade. Com efeito, a educação pública, quando estruturada de forma cívica, permite que todos tenham acesso às ferramentas necessárias para exercer plenamente sua cidadania, vertendo o indivíduo para à paz e não para a violência. Em "A Theory of Justice", John Rawls sustenta que "a equidade social é uma condição fundamental para que a educação seja acessível a todos". Segundo o autor, "somente uma sociedade minimamente equitativa pode garantir que os indivíduos se sintam incluídos na cultura e nos negócios da comunidade"7. Esse princípio é crucial uma vez que traz à tona a ideia de um ciclo virtuoso pelo qual a equidade se faz por meio de um acesso universal à educação, que não pode ser um privilégio "real" de poucos, mas um direito universal de participação ativa na vida democrática. A escola pública deve, portanto, atuar como um espaço de inclusão (equidade), onde as barreiras sociais são minimizadas e a cidadania pode ser plenamente exercida. Por fim, e imprescindível que o sistema educacional adote uma abordagem interseccional, considerando as desigualdades estruturais e históricas que afetam a cidadania. A filósofa Martha C. Nussbaum argumenta que a educação deve fomentar o pensamento crítico e a capacidade de se colocar no lugar do outro, elementos essenciais para a construção de uma sociedade mais justa e democrática8. Sem essa preocupação, a educação corre o risco de reproduzir desigualdades e aprofundar a exclusão social, minando os próprios fundamentos da cidadania. A educação, portanto, não é apenas um meio de transmissão de conhecimento, mas um instrumento essencial para a construção de uma sociedade mais justa e democrática, em meio à espetacularização da vida pessoal e social das mídias modernas, como mostra "Adolescência", de forma exemplar. __________ 1 SANDEL, Michael. A democracia sob risco. São Paulo: Editora Civilização Brasileira, 2020. 2 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. António de Castro Caeiro. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2018. 3 NUSSBAUM, Martha C. A fragilidade da bondade. São Paulo: Martins Fontes, 2009. 4 GALIMBERTI, Umberto. Psiche e techne: L'uomo nell'età della tecnica. Milão: Feltrinelli, 1999. 5 GALIMBERTI, Umberto. Il nichilismo e i giovani. Milão: Feltrinelli, 2007. 6 DEWEY, John. Democracy and Education. New York: The Macmillan Company, 1916. 7 RAWLS, John. A Theory of Justice. Cambridge: Harvard University Press, 1971, p. 101. 8 NUSSBAUM, Martha C. Not for Profit: Why Democracy Needs the Humanities. Princeton: Princeton University Press, 2010.
quinta-feira, 20 de março de 2025

Felicidade foi embora

Do ponto de vista político (e jurídico) a felicidade vai para além de uma ideia iluminista: tornou-se, especialmente no constitucionalismo estadunidense, uma promessa. Atualmente, essa promessa está profundamente ameaçada porquanto tornou-se parte integrante do extremado jogo ideológico, da esquerda à direita. É fato que o bem-estar e a satisfação interior da cidadania enveredaram pelo caminho da reivindicação raivosa, marcada pelo ressentimento da desigualdade social e econômica e pela precariedade do atendimento das instituições do Estado, esses os verdadeiros problemas carentes de soluções.  Da felicidade imaginada por Locke, na qual a acumulação de posses era a essência da felicidade, até o contrato social de Rousseau a dicotomia entre a felicidade individual e a socialmente compartilhada proporcionou condições para o progresso capitalista, de um lado, e o idealismo democrático, de outro. Agora, no Ocidente, temos a utopia revolucionária ainda presente na esquerda e a nostalgia reacionária na direita. Há muito mais nos extremos e vale citar dois exemplos: na direita, o empreendimento hiperindividualista criou os excessos do "autocuidado, do coaching e da farmacologia", no dizer de Barbara Ehrenreich1. Por sua vez o identitarismo na esquerda, uma ideologia deveria buscar a justa pretensão à igualdade, tornou-se "um campo de validação social e de direitos meramente discursivos"2 que servem de parâmetros para a "patrulha" de quem não está no mesmo campo de pensamento. Esquerda e direita só ficam no mesmo campo quando se trata de radicalismo.  Nos EUA de Trump, o chefe da polarização global, o caminho se tornou ainda mais tortuoso: a felicidade constitucional, que não foi propositadamente definida pelos "pais fundadores", perdeu a sua principal característica, a de ser um projeto coletivo. Agora, a exclusão do Estado, no seu justo papel coercitivo, evita as complicações morais de quem pensa sobre o que está acontecendo: a anarquia sem utopia3. A luta pela "felicidade" se transformou numa guerra para fixar um conceito ideológico próprio do que é bem-estar e felicidade - nesse sentido a Constituição da América foi atraiçoada e muito.  Na Europa, a junção da migração, o enfraquecimento do Estado do bem-estar social e a desilusão em relação ao neoliberalismo impulsionaram a nostalgia do isolacionismo bretão (Brexit), a desumanização das relações de trabalho e a transformação do sistema econômico em um arcabouço impessoal e antissocial. Na "sede do iluminismo e do racionalismo" os processos eleitorais são comandados por uma irracionalidade emocional e completamente ideológica. Agora vê-se, nesse contexto, a fragilidade da Europa, isolada no apoio à Ucrânia. Os ingleses perderam a ilusão de seu próprio e solitário poderio. Bye, bye, Brexit? Na América Latina, nunca tivemos uma ideia completa sobre felicidade em seu sentido político: o que nos consolou e amoldou sempre foi a euforia festeira, a visão exótica e a brilhante capacidade do continente para forjar uma cultura popular rica. Já a felicidade geral sempre foi interrompida por golpes de estado, pelo populismo de direita e esquerda e pela falta de denominador mínimo entre os interesses das elites e as aspirações do povo. Dentre teses e antíteses, acabamos sem síntese alguma. Infelizmente, nem tivemos um aggiornamento que nos fizesse amoldar razoavelmente ao que denominamos de "modernidade".  O direito à felicidade, por todo o Ocidente, está preso a um dilema gravíssimo: ou ele é garantido através da disciplina, de uma "ordem" imposta por meio da restrição da liberdade individual em nome do coletivo, ou ele é restrito ao individualismo anárquico e exacerbado, ao direito de se "desconectar do mundo" - como se tudo pudesse ir para o inferno, desde que prevalecesse a sensação de liberdade e do consumismo. A política contemporânea parece incapaz de articular uma felicidade que transcenda essas oposições. O que fazer, então? Como reconstruir um ideal de felicidade política que não se dissolva em extremismos?  O domínio do campo da tecnologia sobre as relações humanas - agora estamos em tempos de inteligência artificial - e as mudanças climáticas requererão que no campo de trabalho, do uso das energias e da necessária privacidade individual transforme "a noção de 'gestão algorítmica" da felicidade em um projeto mais justo, mais "negociável" e, por conseguinte, mais realista e menos "prometedor do paraíso". A mercantilização da felicidade humana (logo, da própria Política) tem de superar o binômio identidade-coletividade por meio da isonomia entre a liberdade (no seu sentido mais latu) e a responsabilidade (para além do próprio nariz do indivíduo). Não há respostas que sejam definitivas quando tema é felicidade. Em torno dela é melhor que tenhamos a polêmica (e não a guerra) entre dois lados extremados e que isso não seja anti-intelectualista (desprezo em relação a um "pensamento" sobre a felicidade. Tampouco deve servir para desmobilizar forças que desejam um bem comum para além da primazia das visões políticas que acabam por mutilar as esperanças.  Quando um político, dotado de real poder de acabar com o mundo, propõe que a "América seja a primeira" (America First) isso significa que a "América pode tudo". Por essa visão, todas as concepções de felicidade que não se alinham com à do "imperador" são contrárias aos "interesses dos Estados Unidos". Impressiona que haja adesões de radicais ao redor da Terra a essa ideologia. É preciso avisar aos extremados que é a limitação aceitável da felicidade de uns que possibilita a outros uma parcela razoável de felicidade. Há um limite para a felicidade, tanto no sentido individual quanto no coletivo. E esse limite chegou sob pena da finitude de todos, mesmo em meio a toda a fragmentação em tribos na qual estamos metidos nesse tempo obscuro. ___________ 1 EHRENREICH, Barbara. Smile or Die: How Positive Thinking Fooled America and the World. Londres: Granta, 2010. 2 FRASER, Nancy. Redistribuição ou Reconhecimento? Uma Controvérsia Político-Filosófica. São Paulo: Editora Boitempo, 2003. 3 NOZICK, Robert. Anarquia, Estado e Utopia. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.
terça-feira, 11 de março de 2025

O patrimonialismo como estratégia

A ideia de patrimonialismo foi cunhada por Max Weber (1864-1920) para descrever a realidade que combina Poder Público e privilégio privado. Os efeitos sobre a governança de um país são indeléveis e com uma trajetória que a experiência histórica demonstra que tropeça nas instituições e na representatividade. Vejamos o caso dos EUA e do Brasil sob essa óptica. Surpreendentemente, em pleno século XXI, se impôs sobre os Estados Unidos com a liderança de Donald Trump. No Brasil, cujas raízes patrimonialistas são profundas, desde o desembarque de Cabral, a manifestação dos seus efeitos na sociedade já é completa e disseminada. A análise comparativa entre o Brasil e os EUA evidencia a perigosa corrosão do patrimonialismo sobre a governança democrática e a solidez institucional, não propriamente como uma repetição da história, mas como uma inovação do controle e captura do Estado pelos particulares. Nos EUA, Trump não é apenas uma novidade, mas a manifestação de muitas patologias sociais e econômicas que despencaram sobre a política desde os anos 1980s. Jonathan Rauch1, em artigo recentíssimo, expõe o deslocamento da lógica burocrática-racional para um patrimonialismo latente, no qual a lealdade pessoal transcende a competência técnica e a representatividade política. Trump, em menos de dois meses e com sua estratégia de fidelização da elite e das hordas que o cercam, nomeou secretários assustadoramente incompetentes e desmantelou as agências regulatórias. Pública e midiaticamente, o "homem de cabelos alaranjados" revela os laços que unem o Estado e os apaniguados que o cercam. Assim, a Administração Pública transmutou-se de um aparato impessoal em um feudo de conveniências políticas. Os modos patrimonialistas de Trump destruíram as especificidades da democracia americana e o tornou o antigo "otimismo" e a crença das excepcionalidades da América no mais explícito autoritarismo. Os impulsos e ressentimentos do apresentador de TV e empresário e as mazelas que o caracterizam criaram uma teia de proteção para os aliados e o arbítrio para os dissidentes. O caso mais notável foi o estímulo e, agora, o perdão para os insurretos de 6 de janeiro de 2021. Sob o patrimonialismo, a legalidade e a "reserva institucional" (não agir na fronteira da lei) se converte ao atendimento do interesse do soberano. O Brasil, por sua vez, sempre viveu o patrimonialismo. Quiçá, seja essa característica, o mito fundador e a desgraça política nacional. Desde os tempos em que os índios ainda chamavam a nossa Terra de Pindorama, o Estado jamais se revestiu da institucionalidade pública: de fato, sempre vivemos sob os braços longos das elites: do funcionalismo público aos empresários, da intelectualidade aos domínios dos meios de produção. A hipertrofia burocrática, o fisiologismo político e a fragilidade dos mecanismos de accountability são os sinais de fraqueza da relação entre público e privado. Magistralmente, Raymundo Faoro2, na sua obra "Os Donos do Poder", no uso da teoria e da experiência de Max Weber, demonstra que o patrimonialismo brasileiro não é fruto do acaso, mas é resultado da gênese de nossa espinha dorsal. A burocracia estatal não age em nome da coletividade, mas como uma longa manus de categorias sociais que se perpetuam no poder e usam o erário como fiança da permanência de seu status quo. Quisesse, Trump teria no Brasil um exemplo das feições e desdobramentos do patrimonialismo. Nos EUA, o patrimonialismo emergiu como um sinal recente na "pele" de uma institucionalidade que se acreditava consolidada. No Brasil, ele é a própria "carne'. Em ambos os casos, o resultado é manifestado, mesmo que de forma assimétrica: a corrosão dos checks and balances., o enfraquecimento dos princípios democráticos e a corrupção por dentro e por fora do ordenamento político e, com efeito, jurídico e jurisdicional. Outro aspecto notável é a relação entre patrimonialismo e as estruturas econômicas. Nos EUA, desde a implantação das ideias do neoliberalismo nos anos 1980 e, agora, sob Donald Trump, a fiscalização e regulação do Estado beneficia corporações poderosas, como a indústria do petróleo e do carvão, que encontraram menos resistência na exploração predatória do meio ambiente. Nesse momento histórico, temos a dominação tecnológica e midiática. Aqui, o patrimonialismo não é apenas um modelo de governança; é um modelo de negócios calcado e encostado no Estado. Há também o tema eleitoral. Tanto Trump (e.g. na retórica contra o funcionalismo de Elon Musk) quanto Bolsonaro (e.g. no uso das emendas congressuais) e, também, Lula (e.g. no engajamento em políticas de renda sem "portas de saída"), transformaram a máquina pública direta e indireta (e.g. agências reguladoras e estatais) em instrumentos de proselitismo e dominação eleitoral. No Brasil, o "orçamento secreto" consolidou-se como um expediente original (e especial) de captura parlamentar, enquanto nos EUA, a interferência de Trump no Departamento de Justiça, na Securities and Exchange Commission, no Federal Reserve e, quem diria!, o controle da Suprema Corte revelou-se um esforço calculado para instrumentalizar a administração e o Judiciário em seu favor. A militarização da política é outro ponto de convergência entre o Brasil e os EUA. Por lá, o crescimento e o aumento de poder de grupos paramilitares como os Proud Boys e a retórica de "guerra cultural" de Trump manifestaram-se como sinais de uma política de poder baseada na força. No Brasil, a tentativa de golpe para imposição da tutela militar sobre a política, a pisotear a autonomia das instituições civis e a reforçar o viés autoritário do governo são pontos de observação do efeito do patrimonialismo. Essa marca, diga-se, está muito presente no Brasil. Stephen E. Hanson e Jeffrey S. Kopstein, em "The Assault on the State"3, argumentam que o patrimonialismo contemporâneo não é um mero vestígio do passado, mas uma estratégia elaborada e calculada de desmonte institucional. O enfraquecimento das burocracias estatais não é um efeito colateral, mas um objetivo deliberado, um meio de eliminar resistências ao poder do "líder". Há mais: Anne Applebaum, em "Autocracy Inc4.", amplia essa discussão ao demonstrar como os regimes patrimonialistas estão articulados em redes transnacionais. Trump e Bolsonaro não operam isoladamente; fazem parte de uma constelação de líderes que, como Orbán, Putin e Erdogan, dividem estratégias de manipulação eleitoral, enfraquecimento da imprensa e captura do Judiciário. A lógica patrimonialista global e está em expansão. O patrimonialismo, portanto, não deve ser entendido como um fenômeno isolado, mas como uma gravíssima patologia que se desfraldou sobre as democracias, sejam liberais ou sociais-democratas.  O futuro da democracia está intrinsecamente ligado à capacidade das sociedades resistirem à erosão dos princípios republicanos na Administração Pública. Tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil, a resistência ao patrimonialismo não é uma abstração teórica, mas uma luta concreta contra a captura do Estado por interesses privados. A defesa das instituições, da transparência e da autonomia da burocracia pública não é apenas um imperativo democrático; é a sobrevivência existencial diante do avanço do autoritarismo contemporâneo. O patrimonialismo não é um conceito arcaico: é o espelho onde as democracias em crise se veem refletidas e, no Brasil, sinal de nosso próprio envelhecimento. 1 RAUCH, Jonathan. One Word Describes Trump. The Atlantic, 2025. Disponível aqui. Acesso em: 07 mar. 2025. 2 FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder: Formação do Patronato Político Brasileiro. São Paulo: Globo, 2001. 3 HANSON, Stephen E.; KOPSTEIN, Jeffrey S. The Assault on the State: How the Global Attack on Modern Government Endangers Our Future. Londres: Polity Press, 2024. 4 APPLEBAUM, Anne. Autocracy Inc. Nova York: Doubleday, 2023.
quinta-feira, 6 de março de 2025

Trump: O fim da era dos acionistas nos EUA?

A redução da transparência e da responsabilidade corporativa pode diminuir a confiança dos investidores As recentes mudanças na governança corporativa nos EUA, sob o presidente Donald Trump têm originado debates significativos sobre o equilíbrio de poder entre investidores e conselhos de administração, bem como sobre as práticas ambientais, sociais e de governança (ESG) das empresas. Essas alterações contrastam, inclusive, com o modelo brasileiro de governança corporativa, particularmente no que tange aos segmentos de listagem da B3, como o Novo Mercado. Com Trump, observou-se uma série de iniciativas que impactaram diretamente a governança corporativa das empresas americanas e repercutiu globalmente. Dentre as principais mudanças destaca-se a revisão das políticas de diversidade e inclusão. Empresas influentes eliminaram políticas que exigiam diversidade nas suas governanças. Essa mudança reflete uma tendência mais ampla de redução das iniciativas de diversidade, equidade e inclusão (DEI) nos EUA, especialmente após ordens executivas visando desmantelar programas DEI tanto no setor público quanto no privado. Fato grave. A rejeição das políticas de inclusão pela administração Trump tem sido amplamente debatida na academia americana, com diversas universidades analisando os impactos dessa mudança na governança corporativa e no desempenho financeiro das empresas. Pesquisadores demonstram que empresas que adotam políticas de diversidade tendem a apresentar maior inovação e desempenho financeiro mais robusto, pois equipes diversas trazem perspectivas variadas para a resolução de problemas complexos. Algumas instituições reforçam essa perspectiva, argumentando que ambientes corporativos inclusivos contribuem para a retenção de talentos e a redução do turnover, fatores essenciais para a estabilidade e crescimento sustentável das empresas. Estudos norte-americanos indicam que a governança corporativa moderna deve considerar a diversidade como um fator de mitigação de riscos. Empresas mais diversas são menos propensas a escândalos financeiros e problemas de conformidade regulatória, pois a pluralidade de perspectivas reduz a complacência e fortalece os mecanismos de controle interno. Além disso, há indicações de que a rejeição das políticas de inclusão pode resultar em litígios e desafios jurídicos para as empresas, pois acionistas e grupos de defesa dos direitos civis têm utilizado a via judicial para contestar decisões empresariais que excluem a diversidade. Outra mudança relevante refere-se às alterações nas regras da Securities and Exchange Commission (SEC). Sob a nova liderança, a SEC implementou políticas que transferiram poder dos investidores para os conselhos corporativos. Vale notar que os diretores executivos normalmente controlam os conselhos de administração nos EUA Assim, essas mudanças facilitaram que os conselhos bloqueassem resoluções de acionistas e impuseram requisitos mais rigorosos para fundos passivos, limitando a capacidade de comunicação dos investidores. Tais alterações dificultam iniciativas relacionadas a políticas climáticas e diversidade na força de trabalho, reduzindo a influência das considerações ESG nas decisões corporativas. Além disso, as políticas comerciais da administração Trump, incluindo a imposição de tarifas significativas, contribuíram para a volatilidade do mercado e incerteza entre investidores e executivos. Essa instabilidade resultou em uma desaceleração nas atividades de fusões e aquisições (M&A) nos EUA, afetando a confiança dos investidores e o valor das ações de instituições financeiras que atuam com M&A. As mudanças mencionadas têm implicações profundas para as empresas e seus diversos stakeholders. Isso pode levar a um desalinhamento entre as expectativas dos investidores e as ações das empresas, potencialmente afetando retornos e aumentando riscos reputacionais. No que tange ao mercado de capitais, a redução da transparência e da responsabilidade corporativa pode diminuir a confiança dos investidores no mercado de capitais americano, resultando em menor liquidez e aumento do custo de capital para as empresas. Embora a flexibilização regulatória possa reduzir custos operacionais das empresas a curto prazo, a falta de foco em práticas sustentáveis e inclusivas pode prejudicar a competitividade a longo prazo, especialmente em um mercado global que valoriza cada vez mais as iniciativas ESG. Afora, os efeitos climáticos e sociais ao redor da Terra. Os princípios da moderna governança corporativa, conforme desenvolvidos em algumas das principais universidades norte-americanas, fornecem uma lente acadêmica para a compreensão dessas mudanças. Pesquisas destacam a importância da centralidade dos acionistas e a necessidade de maior accountability dos conselhos de administração. Há argumentos de que a transferência excessiva de poder para os conselhos pode levar a práticas empresariais desalinhadas com os interesses dos investidores de longo prazo (e.g. fundos de pensão). Da mesma forma, estudos têm abordado a relação entre governança e desempenho corporativo, destacando que práticas mais transparentes e voltadas para ESG resultam em melhor retorno ajustado ao risco. Pesquisadores também exploram a relação entre a eficiência do mercado e a governança corporativa, sugerindo que uma governança fraca pode gerar ineficiências e distorções na alocação de capital. Algumas análises enfatizam a inovação e a adaptação como fatores-chave na governança moderna, destacando que empresas que incorporam governança dinâmica tendem a se adaptar melhor às mudanças regulatórias e às pressões de mercado. No Brasil, a governança corporativa evoluiu significativamente nas últimas três décadas, culminando na criação de segmentos de listagem diferenciados na B3, sendo o Novo Mercado o mais destacado. Este segmento estabelece padrões de governança, exigindo que as empresas emitam apenas ações ordinárias com direito a voto, ampliem os direitos dos acionistas e adotem práticas de transparência e prestação de contas. As principais diferenças entre o modelo brasileiro e as recentes mudanças nos EUA incluem a proteção dos direitos dos acionistas, transparência e governança robusta. Enquanto nos EUA há uma tendência de centralizar o poder nos conselhos, no Brasil, especialmente no Novo Mercado, busca-se ampliar os direitos dos acionistas, garantindo maior influência nas decisões corporativas, pelo menos do ponto de vista da regulação. Ademais, as empresas listadas no Novo Mercado são obrigadas a adotar práticas robustas de divulgação de informações, alinhadas às melhores práticas internacionais, reforçando a confiança dos investidores. Temos de agir para que esses padrões não sejam influenciados por Trump. Por fim, as mudanças na governança corporativa nos EUA sob a administração Trump representam uma inflexão nas práticas estabelecidas, com potenciais impactos negativos para acionistas e o mercado de capitais. Em contraste, o modelo brasileiro, exemplificado pelo Novo Mercado da B3, enfatiza a proteção dos direitos dos acionistas, transparência e práticas de governança robustas, servindo como referência para mercados que buscam equilibrar eficiência corporativa com responsabilidade social e ambiental. Falta apenas tornar a cada dia essa regulamentação uma prática efetiva e democrática.
A ascensão da DeepSeek, uma startup chinesa de IA - Inteligência Artificial, inscreve-se na dinâmica contemporânea como um vetor de inquietação e fascínio, expondo as fraturas e os movimentos tectônicos que redefinem o mundo digital e o mercado global de IA. Fundada em 2023, a DeepSeek irrompeu na paisagem tecnológica com um feito notável: a concepção do modelo de linguagem R1, que rivaliza com soluções ocidentais como o ChatGPT, mas com uma frugalidade de recursos que desafia a ortodoxia vigente. Tal feito não é meramente uma proeza técnica, mas uma fissura na hegemonia tecnológica ocidental, reconfigurando os parâmetros da concorrência e deslocando o eixo da inovação para novos epicentros. A entrada da DeepSeek no mercado de IA opera como um catalisador de transformações substanciais. A adoção de uma arquitetura de código aberto não apenas pode democratizar o acesso ao conhecimento tecnológico, mas reverbera na estrutura da indústria, subvertendo a lógica da dependência de soluções proprietárias e consolidando uma nova gramática para o desenvolvimento digital. A concepção do modelo R1, ao que se saiba realizado com um orçamento de meros US$ 6 milhões - um valor insignificante frente aos investimentos estratosféricos de concorrentes ocidentais -, ilustra a emergência de um paradigma alternativo: o da eficiência e da inovação desassociadas da opulência financeira. Veremos se isso se confirma ao longo do tempo. O impacto imediato no mercado de IA é inegável. Colossos como OpenAI, Google e Meta, acostumados a uma competição entre si nos confins das regras estabelecidas, encontram-se agora diante de um oponente que questiona não apenas a superioridade tecnológica americana, mas a própria necessidade de seus modelos de negócios inflacionados. Investidores, por sua vez, são compelidos a reavaliar suas estratégias, alocando capital em startups cuja racionalidade econômica se alinha mais às novas contingências. O sucesso da DeepSeek pode muito bem assinalar o alvorecer de uma era na qual a hegemonia ocidental da IA não seja mais um dogma, mas uma premissa a ser contestada. A rivalidade entre Estados Unidos e China no domínio da IA extrapola a esfera mercadológica e assume contornos estratégicos e políticos inescapáveis. Trata-se, em última instância, de uma disputa pelo "controle do futuro" - um tempo em que a primazia tecnológica confere vantagens geopolíticas de imensurável repercussão. A hostilidade norte-americana manifesta-se não apenas na retórica, mas em sanções e restrições que visam cercear o avanço chinês. Contudo, paradoxalmente, essas barreiras funcionam como um estímulo à inovação autônoma, impulsionando a China na sua busca por autossuficiência tecnológica e aprofundando sua sinergia com nações igualmente empenhadas em desvincular-se da influência ocidental. O vetor econômico da IA expande ainda mais as margens dessa disputa. A demanda por profissionais especializados cresce exponencialmente, catalisando uma verdadeira diáspora de talentos e remodelando políticas migratórias e educacionais - o Brasil é ator desse processo. Ao mesmo tempo, o aporte de investimentos em IA, tanto por parte do setor privado quanto dos governos, reflete uma compreensão inequívoca de que o domínio dessa tecnologia não é um luxo, mas uma necessidade estratégica incontornável. Nesse tabuleiro global, o Brasil ocupa uma posição ambivalente. Se, por um lado, ostenta algum capital humano de excelência e um ecossistema de startups em ascensão, por outro, vê-se tolhido por uma crônica escassez de investimentos robustos e uma burocracia asfixiante. A legislação brasileira sobre proteção de dados e IA insinua um desejo de alinhamento aos padrões regulatórios internacionais, mas carece de musculatura para conferir ao país uma posição de protagonismo. O futuro do Brasil nesse panorama dependerá da sua capacidade de fomentar políticas públicas e incentivos à inovação que não apenas mitiguem suas limitações estruturais, mas o insiram de maneira assertiva no grande concerto digital contemporâneo. Ainda há tempo para isso, mas não é infinito. Outro aspecto de capital importância na configuração atual da IA é seu impacto sobre as desigualdades e a sustentabilidade. Em uma recente cúpula global de IA realizada em Paris, especialistas alertaram para os riscos inerentes à consolidação de uma tecnologia que, em sua forma mais bruta, pode ampliar as disparidades econômicas e sociais, reforçando dinâmicas de poder já arraigadas. Anne Bouverot, enviada de IA do presidente francês Emmanuel Macron, destacou que "o desenvolvimento de IA em larga escala impõe uma pegada ecológica alarmante, consumindo vastas quantidades de energia e recursos naturais". Nesse sentido, a regulamentação da IA não deve ser encarada como um freio à inovação, mas como um mecanismo essencial para evitar um colapso sistêmico de proporções imprevisíveis. Aqui as políticas ESG, rejeitadas por Trump, seriam um paraquedas. A secretária-Geral da UNI Global Union, Christy Hoffman, trouxe à tona outro aspecto crucial: a ausência de participação ativa de trabalhadores e governos na definição dos marcos éticos da IA pode resultar em uma espiral de exploração laboral e precarização dos direitos. O avanço tecnológico, quando guiado exclusivamente por imperativos mercadológicos, corre o risco de desumanizar ainda mais o trabalho, transformando a IA em um instrumento de opressão ao invés de um catalisador de emancipação. A emergência da DeepSeek, portanto, é um prenúncio das profundas reconfigurações que se desenrolam diante de nossos olhos. Mais do que um fenômeno mercadológico, simboliza um ponto de inflexão no equilíbrio global do poder digital. A disputa entre Estados Unidos e China não se dá apenas no campo da tecnologia, mas na própria concepção de mundo que cada nação deseja edificar. Para além da corrida pela inovação, há um embate entre modelos distintos de governança digital, entre visões concorrentes sobre o papel da tecnologia na sociedade. Nesse contexto, a busca por um equilíbrio entre inovação, ética e regulação assume um caráter inescapável. O século XXI será marcado pela necessidade de harmonizar progresso tecnológico e responsabilidade social, sob pena de transformarmos a IA em um artefato de desigualdade e destruição. O Brasil, assim como outras economias emergentes, terá que definir sua estratégia para não apenas sobreviver nesse ambiente de intensas mutações, mas para afirmar-se como um ator relevante na construção de um futuro digital mais equitativo e sustentável.
terça-feira, 11 de fevereiro de 2025

A inevitabilidade do capitalismo e da democracia

A reflexão sobre a inevitabilidade do capitalismo e da democracia, quando analisada sob a ótica das ideias construídas na segunda metade do século XX no Ocidente, leva-nos a questionar a forma como concebemos o progresso histórico e as estruturas político-econômicas contemporâneas - não se trata de um tema acadêmico, mas da ordem política vigente, de nossa vida cotidiana. Os conceitos da política da inevitabilidade e da política da eternidade, propostos por Snyder1, fornecem um arcabouço para compreendermos se as instituições são, de fato, o desfecho inescapável da história ou apenas construções cíclicas e sujeitas à sua própria implosão. A política da inevitabilidade sustenta que o futuro é uma projeção linear do passado, que as leis do progresso são conhecidas e que não há alternativas viáveis ao curso presente. Que conforto deve ser saber que tudo está predestinado a seguir o caminho correto, sem desvios, tropeços ou quedas do cavalo, tal como um protagonista trágico de um romance do século XIX! Sob essa perspectiva, a expansão do capitalismo e da democracia liberal é tida como um fenômeno natural e inevitável. No entanto, essa concepção ignora a dinâmica das instituições e sua dependência de fatores históricos, culturais e políticos. Por outro lado, a política da eternidade sugere que a história não se move em linha reta, mas em "ciclos repetitivos de vitimização", onde as ameaças passadas são incessantemente revisitadas para justificar um status quo imutável. Ora, que bela construção para garantir que nada nunca mude! Basta recordar velhos inimigos, evocar terrores ancestrais e pronto: a realidade presente não precisa ser contestada. O capitalismo, dentro dessa lógica, não seria um destino inevitável, mas uma forma contingente de organização econômica que se perpetua pela crença na sua própria perenidade. É parte integrante, inclusive, do denominado "excepcionalismo da América", por dentro de onde se esconde a arrogância de ser a maior nação. Tony Judt2, em sua crítica às desigualdades geradas pelo neoliberalismo, alertava para os riscos de se assumir o capitalismo como um fim inquestionável da evolução social, tentação a qual Francis Fukuyama3 sucumbiu, pelo menos de alguma forma. Sejamos justos: afinal, o mercado resolve tudo, desde que não nos importemos com as mazelas sociais, a exploração e, claro, os pequenos ou grandes inconvenientes de crises financeiras cíclicas. Para Judt, a reconstrução do Estado de bem-estar social e a revalidação de políticas redistributivas eram essenciais para mitigar os excessos do mercado. Ao estudar as formações nacionais e a influência das instituições sobre a identidade política, Linda Colley4, professora de história de Princeton, evidencia como a democracia é um fenômeno historicamente contingente e não uma força inevitável da civilização. Uma decepção para aqueles que acreditavam que a democracia era como o sol, que nasce todos os dias independentemente do que fizermos! Sua pesquisa mostra que a consolidação democrática depende de fatores específicos, como guerras, crises e lideranças transformadoras, e não de uma progressão natural das sociedades. A inevitabilidade e a eternidade, do ponto de vista da política, são meros abismos dos quais não se saiu quando nos rendemos às suas premissas. Zygmunt Bauman5, por sua vez, introduz uma perspectiva intrigante ao discutir a fluidez das relações sociais, políticas e econômicas. Para Bauman, a "modernidade líquida" transformou as instituições outrora sólidas em estruturas instáveis, sujeitas a mudanças bruscas e imprevisíveis. Uma descoberta de que nossas certezas políticas e econômicas são como gelo fino: transparentes, escorregadias e, acima de tudo, temporárias! O capitalismo, que já foi visto como um sistema robusto e estrutural, agora parece moldável aos interesses de uma elite globalizada, enquanto a democracia se vê à mercê das marés da opinião pública digital, cuja perda de representatividade é cristalina, evidente e disforme. A ascensão da China como potência econômica e política representa um desafio para essa discussão. O modelo chinês, que combina autoritarismo político e capitalismo de Estado, desafia a narrativa de que a democracia e o livre mercado são indissociáveis - um mito que foi tratado como verdade por muito tempo. Enquanto o Ocidente enfrenta crises institucionais e políticas, a China expande sua influência por meio de estratégias como a "Iniciativa do Cinturão e Rota" (a nova "Rota da Seda") e o desenvolvimento tecnológico acelerado - veja-se a discussão sobre IA - Inteligência Artificial face ao programa chinês Deep Seek - o que demonstra que o sucesso econômico não é exclusivo dos sistemas democráticos. O Ocidente, por sua vez, parece empenhado em discutir se um tweet pode ser considerado um crime de lesa-pátria. É preciso elevar o nível da discussão sobre a democracia ocidental, não é? Em um artigo de 19306, G.K.Chesterton escreveu que "as falácias não se tornam menos falácias porque se tornaram modas" A crescente erosão das democracias liberais ocidentais, impulsionada por polarização política, desinformação e desconfiança nas instituições, exige uma reavaliação profunda do modelo democrático e constitucional. Em um mundo onde a democracia não é garantida, mas sim um projeto em constante disputa, a questão que se impõe não é se ela é inevitável, mas se estamos dispostos a lutar por sua permanência e aprimoramento. Mas sejamos francos: quem quer lutar por algo tão trabalhoso quando há uma série nova para "maratonar" ao longo da semana? 1 SNYDER, Timothy. The Road to Unfreedom: Russia, Europe, America. New York: Tim Duggan Books, 2018. 2 JUDT, Tony. Ill Fares the Land. New York: The Penguin Press, 2010 3 FUKUYAMA, Francis. O fim da história e o último homem. Rio de Janeiro: Rocco, 1992. 4 COLLEY, Linda. Britons: Forging the Nation 1707-1837. New Haven: Yale University Press, 1992. 5 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. 6 Illustrated London, 19 de abril de 1930.
A ascensão e o governo de Donald Trump nos Estados Unidos reacenderam debates profundos acerca da vulnerabilidade da democracia liberal, do papel do Estado de Direito e da manipulação das instituições jurídicas para fins políticos. Dois eminentes pensadores alemães, Carl Schmitt (1888-1985) e Otto Kirchheimer (1905-1965), forneceram arcabouços teóricos distintos, mas complementares, que permitem lançar luz sobre o fenômeno Trump. Vale a pena prestar atenção a esses pensadores. Schmitt, um dos mais influentes juristas do século XX, destacou-se por sua defesa do estado de exceção e do decisionismo político, que justificaria a concentração do poder executivo em detrimento das normas jurídicas convencionais (e ao status quo vigente na política). Kirchheimer, associado à Escola de Frankfurt e crítico do Direito e dos partidos políticos, analisou como regimes autoritários aqueles que instrumentalizam o aparato jurídico para consolidar seu poder sob um verniz de legalidade. A análise de ambos os pensadores se revela interessante para compreender o impacto do governo Trump na democracia americana. Como já me referi anteriormente1, Schmitt argumentava que "soberano é aquele que decide sobre o estado de exceção", estabelecendo que a política não poderia ser subordinada à legalidade em momentos de crise. O governante, segundo sua tese, deveria ter a prerrogativa de suspender normas a fim de garantir a estabilidade do Estado. Trump frequentemente evocou essa lógica para justificar medidas unilaterais que expandiam sua autoridade. Exemplo claro foi sua resposta à crise migratória, declarando medidas de "emergência nacional" para redirecionar verbas militares à construção do muro na fronteira com o México, contornando o Congresso. Essa decisão reflete a lógica schmittiana na qual a prerrogativa soberana se impõe à normatividade legal e constitucional. Outro elemento crucial da teoria schmittiana presente na retórica de Trump foi a distinção entre "amigo" e "inimigo" como fundamento da política. Trump estruturou sua narrativa política com base na criação de inimigos externos (China, México, Irã) e internos (imprensa, oposição política, minorias e, claro, os imigrantes). A demonização da mídia como "inimiga do povo" é emblemática face à visão schmittiana de que a política não se sustenta sobre o "consenso", mas sim sobre um "antagonismo inexorável" ("America First"). Essa lógica permitiu a Trump galvanizar sua base eleitoral em torno de um discurso de conflito permanente, justificando ações extraordinárias (fora do padrão da Rule of Law) contra as instituições tradicionais. O ataque ao Capitólio em 6/1/21 constitui um exemplo extremo e inédito nos EUA do estado de exceção em ação. Ao incitar seus apoiadores a rejeitarem o resultado das eleições de 2020, Trump desafiou a legitimidade do processo democrático e testou os limites da ordem constitucional, demonstrando como o conceito de soberania schmittiana pode ser instrumentalizado para justificar medidas que corroem a própria legalidade. Otto Kirchheimer, por outro lado, analisaria o governo Trump sob outra ótica. Em sua teoria sobre o "Estado de Direito Autoritário", Kirchheimer demonstrou como regimes autocráticos utilizam instituições jurídicas para conferir legitimidade a práticas ilegais ou antidemocráticas. O governo Trump seguiu essa lógica ao interferir no Departamento de Justiça para beneficiar aliados políticos e perseguir adversários. Um exemplo ilustrativo foi sua tentativa de pressionar autoridades jurídicas para reverter investigações contra aliados como Michael Flynn e Roger Stone, enquanto simultaneamente politizava investigações contra opositores como Hunter Biden. Kirchheimer também teorizou sobre o esvaziamento ideológico dos partidos políticos e sua transformação em meros veículos de poder. Durante a presidência de Trump, o Partido Republicano abandonou sua plataforma ideológica tradicional em prol de uma lealdade incondicional ao líder - como na Alemanha do fuhrer. A ausência de dissidência interna, mesmo diante de atos que violavam princípios republicanos fundamentais, como a contestação do resultado eleitoral, exemplifica o fenômeno identificado por Kirchheimer de "partidos pega-tudo" (catch-all parties), nos quais a identidade partidária é dissolvida em torno da figura do líder. Não foi o que ocorreu? Outro aspecto relevante da teoria kirchheimeriana é o uso do Direito como ferramenta para restringir direitos civis e consolidar o poder executivo. A política de separação de crianças imigrantes de seus pais na fronteira, defendida sob argumentos jurídicos, ainda que flagrantemente violadora dos direitos humanos, ilustra como o Direito pode ser distorcido para servir a objetivos autoritários sob o pretexto de legalidade. Há quem veja isso como "normal", aqui e no exterior. Se, por um lado, Schmitt explica o governo Trump em termos de decisão soberana e estado de exceção, Kirchheimer expõe a forma pela qual a legalidade pode ser manipulada para reforçar tendências autoritárias. A diferença crucial entre os dois diagnósticos reside no fato de que Schmitt poderia justificar algumas das ações de Trump com base na "soberania decisória", enquanto Kirchheimer alertaria sobre a insidiosa corrosão das instituições democráticas por meio da instrumentalização do aparato jurídico. A administração Trump demonstrou que democracias liberais não são imunes à lógica do estado de exceção e da manipulação do Direito para fins políticos. O ataque ao Capitólio e a contestação do pleito de 2020 já evidenciaram o perigo da retórica populista fundamentada na dicotomia "amigo-inimigo", essencial ao pensamento schmittiano. Agora vê-se Trump eleito novamente. Simultaneamente, a captura de instituições como o Departamento de Justiça e a transformação do Partido Republicano em um instrumento de fidelidade pessoal refletem a dinâmica descrita por Kirchheimer sobre a erosão das democracias pelo uso seletivo do Direito. O governo Trump servirá como um experimento contemporâneo para a aplicação das ideias de Carl Schmitt e Otto Kirchheimer? A justificativa teórica para a centralização do poder e a adoção de um estado de exceção e a revelação de como as democracias podem ser corroídas por dentro por meio da manipulação estratégica do Direito parecem ser os dois lados que serão testados nos EUA (e fora dele). O caso americano reitera que a tensão entre legalidade e decisão política permanece central para a sobrevivência do Estado de Direito. A leitura desses pensadores alemães nos proporciona uma compreensão mais acurada dos desafios que a democracia enfrenta em tempos de polarização extrema e ascensão do populismo autoritário. 1 Disponível aqui.
"Eles precisam de nós, mais do que precisamos deles" Donald J. Trump A declaração de ontem, 21/1/25, de Donald Trump - "Eles precisam de nós, mais do que precisamos deles. Nós não precisamos deles, eles precisam da gente. Todo mundo precisa da gente" - é provocativa, não é? Quase uma aula de como inflar o próprio ego nacional em tempo real a partir de uma pergunta quase que ingênua da jornalista brasileira. Por trás dessa bravata, existem questões sérias sobre poder, dependência e a dinâmica entre nações. Vejamos duas lições de dois arquitetos das relações internacionais nos EUA durante o século XX. Hans Morgenthau, mestre do realismo clássico, enxergava o mundo como um tabuleiro de xadrez movido pela busca incessante de poder. Em Politics Among Nations: The Struggle for Power and Peace (1948), ele não tinha ilusões sobre altruísmo: Os Estados não são bons samaritanos; eles perseguem o que é melhor para si mesmos. E aqui Trump não deixa de estar alinhado: "Eles precisam de nós" soa como a quintessência do realismo morgenthauiano. Para Morgenthau, a hegemonia dos EUA sobre o Brasil é um exemplo de como o poder é distribuído no sistema internacional. Os americanos têm o capital, a tecnologia, o mercado - o poder duro e o poder brando (soft power), tudo isso embalado no pacote "Made in America". Em In Defense of the National Interest (1951), ele reforça que a política externa deve ser pragmática, não um desfile de virtudes morais, como é comum verificarmos na elaboração de certos diplomatas latino-americanos. Então, quando Trump diz que "nós não precisamos deles", Morgenthau provavelmente sorriria com um toque de ceticismo e concordaria. Mas nem tudo é tapa nas costas de Trump! Em The Purpose of American Politics (1960), Morgenthau alerta contra o excesso de confiança. Sim, ser poderoso é bom, mas achar que você pode fazer tudo sozinho? Perigoso. Porque, surpresa, alianças importam, mesmo para o maior jogador do tabuleiro. Essa visão a América já teve e pouco a pouco foi perdendo ao longo da segunda metade do século XX. George Kennan, o arquiteto da política de contenção, traz uma abordagem mais cautelosa e pragmática. Em seu famoso artigo "The Sources of Soviet Conduct" (1947), ele sugere que os EUA deveriam ser seletivos em suas batalhas. E sabe do que mais? Ele provavelmente diria que o Brasil não está no topo da lista. Desculpa, mas Kennan era prático assim. Quando Trump diz que "todo mundo precisa da gente", Kennan poderia balançar a cabeça e murmurar: "Cuidado com o hubris." Em American Diplomacy, 1900-1950 (1951), ele critica os EUA por se meterem onde não são chamados - este é o caso de Trump, não é mesmo? Claro, o Brasil é relevante - mas apenas quando isso afeta os verdadeiros interesses americanos: Segurança, economia e talvez, ocasionalmente, política regional. Kennan também era avesso à retórica inflamada. Em The Cloud of Danger (1978), ele aponta como exagerar ameaças externas ou subestimar parceiros pode sair pela culatra. Portanto, aquela ideia de que "não precisamos de ninguém" é um belo convite para problemas futuros, se você perguntasse ao velho George. Agora, e o Brasil? Vamos encarar: Para Morgenthau, o Brasil é uma peça menor no tabuleiro. Dependente, sim. Afinal, acesso a mercados, tecnologia e capital dos EUA são indispensáveis para o crescimento do país. Morgenthau provavelmente diria: "Isso é como o mundo funciona. Aproveite enquanto você pode." Kennan, por outro lado, talvez não se desse ao trabalho. Não porque o Brasil não importe, mas porque ele preferia pensar em grandes estratégias globais - e o Brasil, com todo respeito, não é exatamente a URSS. Mas ele reconheceria que a estabilidade regional é importante, especialmente para manter os chineses longe do quintal americano. Há mais: A questão climática na qual o Brasil é parte essencial de qualquer solução e pode se comportar como uma "potência ambiental". (A contradição, a título de ilustração, é furar a Margem Equatorial obrigatoriamente, como quer boa parte do governo atual, ou as queimadas na linda Amazônia). Então, o que aprendemos com Trump, Morgenthau e Kennan? Que as palavras de Trump refletem uma mistura de realismo puro e, vamos ser honestos, um toque de exagero retórico que reflete a gênese do que será o atual governo norte-americano nos próximos anos, quiçá além de Trump. Morgenthau ficaria satisfeito com a reafirmação do poder americano, mas alertaria contra o isolamento. Kennan provavelmente reviraria os olhos, lembrando que arrogância nunca é um bom conselheiro. No fim das contas, a relação Brasil-EUA é uma dança complicada. Para Morgenthau, trata-se de poder. Para Kennan, é pragmatismo. Para Trump, é, bem... show de um eterno aprendiz. Se quisermos entender o que realmente importa, talvez devamos ouvir os dois teóricos: Balancear força com sabedoria e não esquecer que, no grande esquema das coisas, nenhum país é uma ilha - nem mesmo os Estados Unidos. Resta saber o que o Brasil e os brasileiros realmente desejam nesse contexto no qual estamos a ingressar.
quinta-feira, 16 de janeiro de 2025

Trump e a democracia em suspensão

A ameaça que um governo Trump representa não está apenas em suas políticas específicas, mas em sua capacidade de redefinir os limites da soberania. A ameaça representada por um novo governo Trump não reside apenas em suas políticas específicas, mas principalmente em sua capacidade de redefinir os limites da soberania e transformar crises em instrumentos de poder. Donald Trump é um fenômeno político singular do século XXI. Embora retorne ao poder em um segundo mandato não consecutivo, não se espera uma simples repetição de suas políticas anteriores. Sua administração passada foi apenas um "ensaio" das estratégias que agora parecem mais claras e direcionadas. As últimas eleições demonstraram que a sociedade americana está aberta a uma nova fase de populismo trumpista, marcada pela desigualdade econômica e pela insatisfação com a globalização. Trump obteve vitórias significativas em 68% dos condados mais pobres dos Estados Unidos, indicando que o descontentamento socioeconômico continua sendo um motor para sua ascensão. Tal cenário remete a processos históricos em que líderes populistas, como os regimes fascista e nazista, utilizaram o descontentamento popular, a promessa de estabilidade e o combate ao "inimigo comum" para consolidar poder. Carl Schmitt, em sua obra "Teologia Política" (1922), afirmou que "soberano é aquele que decide sobre o estado de exceção". Essa ideia encontra ressonância na abordagem de Trump, que frequentemente flerta com a suspensão de normas democráticas e a centralização do poder. Para Schmitt, a soberania se manifesta na capacidade de tomar decisões excepcionais em momentos de crise, uma dinâmica que pode justificar ações autoritárias sob o pretexto de proteger a ordem. No entanto, essa perspectiva também alerta para os perigos de governos que operam à margem da normalidade constitucional, utilizando crises reais ou fabricadas para consolidar poder. Durante sua primeira administração, Trump testou os limites das instituições democráticas, desafiando normas estabelecidas e enfraquecendo a confiança pública em pilares essenciais, como a imprensa livre e o sistema eleitoral. Agora, em um segundo mandato, espera-se que essas táticas sejam intensificadas, especialmente diante da polarização crescente e do apoio fiel de sua base. Os democratas, por sua vez, contribuíram para o fortalecimento de Trump ao perderem o apoio de eleitores brancos da classe trabalhadora e ao enfatizarem pautas identitárias que alienaram setores conservadores e moderados. Essa desconexão foi particularmente evidente em estados do Meio-Oeste, onde a retórica populista de Trump encontrou terreno fértil. A ênfase democrata em questões culturais e sociais, embora importante, negligenciou preocupações econômicas e culturais de muitas comunidades, permitindo que Trump se apresentasse como o defensor dos "esquecidos". Outro fator crucial foi a erosão do suporte democrata entre minorias. Trump conseguiu aumentar seu apelo entre eleitores latinos e negros em regiões estratégicas, enfraquecendo ainda mais a base progressista. Esse fenômeno reflete não apenas as falhas democratas em comunicar suas propostas, mas também o impacto das redes sociais e da desinformação, que amplificaram mensagens simplistas e emocionalmente carregadas. Os riscos associados a um novo governo Trump incluem desmonte institucional, radicalização política, erosão de direitos humanos e aumento do isolacionismo internacional. Suas políticas, embora possam prometer ganhos econômicos de curto prazo, como investimentos em infraestrutura e subsídios, têm o potencial de intensificar desigualdades, fomentar divisões sociais e prejudicar alianças diplomáticas cruciais. Ademais, a emergência climática pode ser agravada por desregulamentações ambientais e pela exploração desenfreada de recursos naturais. Historicamente, governos populistas reacionários oferecem uma sensação inicial de estabilidade e resgate de valores nacionais, mas frequentemente resultam em crises institucionais, econômicas e sociais. O "novo" em Trump não é sua retórica ou estilo de liderança, mas sua habilidade em amplificar as tensões existentes e explorar vulnerabilidades democráticas de maneira eficaz. Sua relação com as elites econômicas também destaca um paralelismo preocupante com regimes passados. Durante a ascensão do fascismo e do nazismo, as elites viam esses regimes como instrumentos úteis para proteger seus interesses. Agora, a elite tecnológica e o mercado financeiro demonstram um comportamento semelhante, mesmo que paradoxalmente aliados a segmentos vulneráveis. A percepção de que "uma coisa são as eleições, outra é o governo" reflete um entendimento superficial do impacto da soberania em regimes populistas. Como Schmitt indicou, a soberania não está apenas na capacidade de governar dentro da lei, mas em suspender as leis em nome de um suposto bem maior. Sob esse prisma, Trump simboliza a tensão constante entre a normalidade institucional e a exceção. Essa dinâmica também é evidenciada em suas propostas econômicas e sociais. Políticas protecionistas, aumento de tarifas e incentivos para indústrias nacionais podem gerar benefícios temporários, mas com o risco de isolar os Estados Unidos no cenário global. Além disso, a retórica de "América Primeiro" reforça uma visão unilateral que dificulta colaborações internacionais em áreas como mudanças climáticas, direitos humanos e segurança global. No campo social, um segundo mandato Trump pode significar um retrocesso em direitos conquistados, como a liberdade de imprensa e os direitos das minorias. Seu discurso polarizador, aliado à capacidade de mobilização em massa, representa um desafio significativo para a coesão social. A intensificação das tensões entre "nós" e "eles" é um elemento comum em regimes populistas e contribui para a fragmentação interna. Por fim, o legado de Trump dependerá não apenas de suas ações, mas da resiliência das instituições democráticas, da sociedade civil e da oposição política. Sua capacidade de redefinir os limites da democracia americana coloca em questão não apenas a ordem interna, mas também o papel dos Estados Unidos como um modelo de governança para o mundo. Assim, o principal risco de um novo governo Trump está em sua habilidade de tensionar a democracia até o limite, utilizando as ideias de soberania e exceção descritas por Carl Schmitt como ferramentas de um projeto político que pode comprometer o futuro das instituições democráticas e dos valores universais de liberdade e igualdade.
I - Introdução Recentemente, no âmbito do Processo Sancionador nº 19957.0079916/2019-38 da Comissão de Valores Mobiliários - CVM, foi emitido um voto de autoria do relator do caso. o eminente Diretor da CVM Daniel Maeda em face de executivos da Vale acusados de descumprimento do dever de diligência do artigo 153 da Lei das Sociedades Anônimas (6.404/76) no contexto do rompimento da Barragem B1, ocorrido em 25.1.2019 em Brumadinho/MG. É notável o fato de que o voto do relator resultou em multa da ordem de R$ 27 milhões em vista de alegada falta de cumprimento do dever de diligência o que ensejou responsabilização pela falta de supervisão da referida barragem, que se rompeu. O caso se constitui, a meu ver, em referência no que tange ao tema dos deveres dos administradores de companhias em casos administrativos, cíveis e criminais.  Ademais, sua aplicabilidade pode ocorrer em relação a empresas de diversos portes e características em vista da eventual jurisprudência que se forma. É preciso, da parte dos administradores engajados na governança de empresas, prestar atenção aos argumentos jurídicos do referido caso, do ponto de vista ontológico, axiológico e prático da gestão dos negócios e atividades empresariais. Este artigo tem o objetivo de explorar os temas carregados pelo caso concreto, sem tratar dele propriamente, somente referencialmente, e trazer à luz uma perspectiva, senão nova, ao menos "renovada", do tema das responsabilidades dos individuais dos administradores das empresas, sejam conselheiros de administração, membros de órgãos de assessoramento (comitês), diretores e de outras funções que se vinculem aos "deveres dos administradores". II - Governança Corporativa no Contexto de Decisões Complexas Inicialmente, é importante reconhecer que no mundo moderno a complexidade das empresas, a sua globalização e o novo contexto tecnológico, tornaram a gestão dos negócios cada vez mais dependente de sistemas corporativos que se integram para a tomada de decisões corporativas. Das mais singelas às mais estratégicas, a gestão ordinária dos negócios e aquelas que são mais esporádicas, requerem múltiplas fontes de informações e de meios sofisticados para atingir soluções. Nesse contexto, o exercício da governança corporativa, seja a superior (e.g. conselhos de administração), seja a executiva e gerencial, é resultado de uma vasta rede de mecanismos que para cada decisão funcionam de forma específica. A doutrina e a jurisprudência sobre os deveres dos administradores no contexto nesse ambiente corporativo complexo confrontam o comando jurídico standard de "que o administrador deve empregar os cuidados e diligências de um homem ativo e probo"1 às situações factuais complexas, com controles externos e internos, níveis de poder com variações significativas de forma e execução, diferentes stakeholders, estruturas de capital variadas, procedimentos e políticas variadas e assim por diante. Num contexto como esse, quando da tomada de decisão individual por parte do administrador são realizadas ponderações entre os múltiplos fatores a influir naquela decisão. Outro administrador, diante da mesma situação, pode tomar um caminho diferente face às suas próprias ponderações. III - Dificuldade de Individualizar a Responsabilidade em Estruturas Sistêmicas Considerada a boa-fé que se presume a todos, não há padrão razoável para o ato de gestão e a correspondente diligência aplicável ao caso concreto. De outro lado, a gestão sistêmica das empresas, se bem-feita, é a base de uma espécie de pesos e contrapesos (checks and balances), usualmente representado pelos controles internos, que evita que o domínio do processo decisório pelos administradores seja pleno. Nesse contexto, estruturas decisórias complexas tornam a responsabilização individual de administradores extremamente difícil, senão impossível de serem feitas. Em casos visivelmente dolosos, os fatos são identificados usualmente pela utilização de overriding de instâncias decisórias e controles que fraudam os sistemas e as estruturas decisórias para que ao fim e ao cabo o ato de gestão doloso possa ser realizado. Ironicamente, as situações dolosas são mais fáceis de serem investigadas, analisadas e sancionadas. O overriding é evidente, o dever de diligência cumprido, nem sempre. O ponto central da análise da responsabilidade dos administradores quanto à sua diligência diz respeito a como atribuir responsabilidade individual em função do não preenchimento de deveres num contexto sistêmico. Fazer a leitura do comportamento dos administradores em circunstâncias do hipercapitalismo líquido é muito difícil. Avaliar o passado talvez seja impossível em certos casos, sobretudo porque há sobreposição de aspectos objetivos, como no caso dos sistemas de controles, procedimentos e políticas, frente a dados subjetivos, usualmente comportamentais da parte dos administradores. O sancionamento de administradores por autoridades é, assim, uma tarefa em que se intenta aproximar ao máximo os fatos às circunstâncias decisórias e, por sua vez, às normas jurídicas aplicáveis. Nesse processo de subsunção é até possível reproduzir razoavelmente as estruturas hierárquicas e decisórias, mas é muito difícil atribuir um "nível de confiança" (de natureza probabilística) que cada administrador teria de atribuir ao sistema de decisão, aos relatórios e opiniões recebidos das instâncias internas e externas da empresa, às auditorias externas e internas, ao sistema de compliance e assim por diante. Somente em casos flagrantes de ausência de diligência, geralmente e francamente dolosos, é possível materializar e caracterizar a responsabilidade de administrador. Do ponto de vista jurídico, mesmo as previsões legais e estatutárias são, de fato, apenas referências gerais, exemplificativas ou cogentes, de um comportamento a ser seguido. Especificamente no caso de "normas abertas" as previsões normativas ganham um contorno muito complexo vez que esta "abertura" 'é caracterizada pelo texto genérico, pela flexibilidade interpretativa, pela atualização constante via doutrina e jurisprudência e, especialmente, pelo peso significativo do intérprete e julgador na sua aplicação. III - Dever de Diligência à Luz do Sistema de Gestão A especificidade do "dever de diligência" é ainda mais complexa: tem uma forte conotação moral. Embora seja um conceito jurídico e corporativo, ele está intrinsecamente ligado a princípios éticos que norteiam o comportamento responsável, cuidadoso e prudente nas decisões e ações dos indivíduos, especialmente aqueles em posições de liderança ou gestão. A literatura moderna informa que o dever de diligência implica que os gestores e administradores de uma empresa não devem apenas seguir a lei, mas também agir de maneira ética. Eles devem tomar decisões que beneficiem a empresa e os seus stakeholders, sempre levando em conta o bem-estar geral e não apenas o interesse próprio ou de curto prazo. Isso exige um senso moral de responsabilidade em relação às consequências de suas ações Tomar decisões de forma informada, criteriosa e ponderada é não só um requisito legal, mas também um dever moral. Os acionistas e administradores devem buscar informações suficientes e considerar os impactos a longo prazo de suas escolhas, o que demonstra uma postura de respeito e comprometimento com a integridade da organização e das partes envolvidas. A prudência é uma virtude clássica associada à moralidade, e o dever de diligência requer exatamente essa qualidade. Ser prudente nas ações e decisões empresariais reflete uma preocupação com a sustentabilidade, evitando riscos desnecessários ou comportamentos irresponsáveis. Esse comportamento reflete valores morais que vão além do mero cumprimento de deveres formais, os quais são aparentes - valores morais não são. Embora o dever de diligência tenha suas raízes na responsabilidade legal e corporativa, a aplicação prática desse dever está fortemente vinculada a uma abordagem moral, pois envolve a tomada de decisões éticas, o cuidado com os outros e a atuação responsável, refletindo uma conduta moral que é esperada de quem ocupa uma posição de poder dentro da organização. Quando se confronta o dever de diligência (norma aberta com forte conotação ética) e outras normas, como o estatuto de uma companhia a complexidade2 de avaliar, analisar e julgar o comportamento dos administradores ainda mais incerto. Não à toa que se somarmos um comportamento doloso aos fatos analisados à luz de normas aplicáveis ao caso concreto e do dever de diligência, especificamente, o julgamento sobre a devida diligência paradoxalmente se torna menos tortuoso, conforme argumentamos anteriormente. Isso ocorre porque ganha saliência o conteúdo moral do dever legal que se torna muito mais relevante que as normas estatutárias para fins de atribuição de responsabilidades. Ocorre que para os casos culposos, mais comuns na vida prática das empresas, as ponderações do julgador sobre os fatos, contextos e informações têm de ser mais técnicas. Isso significa que: "A técnica não se coloca o problema do bem ou do mal, mas apenas o do funcionamento. Ela não requer ética, porque seu único critério é a eficiência."3 No texto seminal de Galimberti quero destacar "funcionamento" e, daí, retorno à sistemática da tomada de decisões para fins dos atos de gestão. O "funcionamento" implica em relações regradas de cada elemento (e.g. área corporativa) com um determinado conjunto (e.g. uma empresa). Se transformarmos essa proposição na forma de um axioma podemos evoluir para um conceito no qual a atuação de um administrador é parte de um sistema de gestão cuja repercussão no qual a ação individual é dependente de uma série de outros elementos sistêmicos, bem como os seus efeitos são igualmente extensivos. Nas palavras de Eizirik: "A função do administrador de uma sociedade empresária deve ser entendida como parte integrante de um sistema maior, no qual suas decisões impactam não só o desempenho econômico, mas também os direitos dos acionistas, credores, empregados e outros stakeholders, sendo fundamental a consideração do todo na condução dos negócios."4 Está claro que, a partir dessa construção lógica, a função dos administradores não deve ser vista isoladamente, mas como parte de um conjunto maior de interações que afetam diversos grupos de interesse dentro da empresa. Aqui Craig N. Smith se ajusta perfeitamente: "A responsabilidade moral das empresas não pode ser reduzida às ações individuais de seus membros, uma vez que elas operam como sistemas complexos de tomada de decisão." (...) "Quando uma falha ocorre dentro de uma empresa, a responsabilidade moral deve ser atribuída à organização como um todo, visto que as decisões são resultado de um processo coletivo e sistêmico."5 Nesse diapasão, a individualização da responsabilidade teria de ser examinada à luz de um sistema e deste "retirar" as atribuições individuais, os atos decorrentes dessas atribuições e ponderar sobre o grau de responsabilidade inerente a certo administrador inserido em um sistema de decisão e de informações. Para fins de responsabilidade culposa, no âmbito cível, trata-se de uma tarefa hercúlea, senão impossível. Usualmente, conforme afirmado logo acima, a individualização de responsabilidades tem por fonte o Estatuto Social, no caso das sociedades por ações. Ocorre que a previsão estatutária trata do "elemento" e não do "sistema". Logo, aquelas atribuições são referências funcionais limitadas ao fim que se deseja atingir: a configuração geral de uma estrutura corporativa e isso não é a sua governança concreta. A título de ilustração um diretor de recursos humanos pode ser responsável pela área de treinamento, mas isso é insuficiente para minimamente garantir que esse treinamento possa ser aplicado na área na qual trabalha o funcionário pois, ele dependerá de outras situações (e funções) completamente diferenciadas das "atribuições" do diretor de recursos humanos. Como determinar a responsabilidade individual sobre um treinamento nesse caso? Muito difícil, senão impossível. Carlos Portugal Gouvêa bem coloca, no uso de famoso texto de Peter French6, o tema das estruturas internas (com grifo meu): "Mesmo no momento da constituição, a composição dos interesses dos acionistas-fundadores dá origem a objetivos da companhia que são distintos das suas intenções individuais. Além disso, o estatuto social e as políticas das companhias tendem a ser estáveis, de modo que as alterações radicais na política de uma companhia implicam a criação de uma nova companhia".7 No mesmo sentido, caminha Posner: "Corporate charters provide a legal framework for governance, but they are inherently unable to reflect the company's market strategies, the behavior of executives, or the economic conditions that determine its performance."8 A conclusão é clara: embora o estatuto social seja um marco fundamental para definir a estrutura e funcionamento de uma companhia, ele não é capaz de refletir plenamente o status quo da empresa, ou seja, sua realidade operacional, financeira e cultural. A dinâmica das empresas é influenciada por uma série de fatores que estão fora do escopo do estatuto social, como o mercado, a cultura organizacional e as decisões estratégicas. O estatuto, por si só, oferece uma visão limitada e estática da companhia, deixando de lado aspectos essenciais que determinam seu verdadeiro funcionamento e situação atual. E são estes os aspectos que determinam o dever de diligência que não necessariamente pode ser cogente a determinado administrador por força da previsão estatutária. IV - Gestão de Riscos e Expectativas Racionais Eventualmente, o dever de diligência pode ser associado com a necessidade de que o administrador se informe, se eduque, se prepare, investigue, etc. para que nessa esteira formativa e informativa possa exercer com maior plenitude o dever de diligência. Embora salutar e necessário esse comportamento, há de se reconhecer que a mera evidência de que o administrador buscou ciência e consciência sobre o cumprimento de suas responsabilidades não é razoável prova de diligência. Teria de se verificar a fundo o quanto esse processo "educativo" contribuiu de fato para a sua formação e para se tornar informado sobre os temas de cada área. Vale dizer, ainda, que a expertise que se requer no contexto sistêmico de uma empresa complexa varia muito frente às diversas disciplinas (e ciências) aplicáveis às decisões de gestão e supervisão. Da mesma forma, a disponibilidade de conhecimentos não precisa ser individual, mas coletiva (em equipes, inclusive aquelas que não estão subornadas a certo administrador. Nesse sentido, é extremamente dificultoso se evidenciar o que significa concretamente, e.g., "se informar" diante das tarefas diárias de uma empresa. Além do conteúdo moral e sistêmico, os atos, e também, as omissões de gestão poderiam ser avaliados do ponto de vista dos riscos os quais originam as red flags. É inegável que um sistema avaliação de riscos é extremamente necessário às empresas. Há, contudo, um paradoxo no acompanhamento dos riscos empresariais. Vejamos. As empresas, desde quando surgiram, sempre foram acompanhadas pelos seus stakeholders (historicamente determinados) com base nos seus resultados. O surgimento da contabilidade, e.g., derivou da necessidade de apurar os resultados e a situação econômica das empresas em vista de suas mutações patrimoniais apuradas por meio das famosas "partidas dobradas" dos lançamentos contábeis, desenvolvidas por Luca Pacioli em 1494. A sofisticação dessa apuração de resultados e situação patrimonial acompanha o desenvolvimento capitalista do tempo das Companhias das Índias até a era da Inteligência Artificial e Big Data. Já os sistemas de avaliação de riscos se multiplicaram, mas não se registra uma padronização de sua apuração por meio de informes equivalentes às demonstrações financeiras. Não há cânones sobre riscos: a relação "risco versus retorno" das empresas não é apurada na forma que possa servir para uma gestão sistêmica que tenha correspondência com a formação das cadeias de valor ou financeiras que são as que formam as demonstrações financeiras. Em verdade, os riscos corporativos são estabelecidos in abstracto frente a uma realidade imaginada o presumida. Todavia, quando esses riscos se materializam (in concreto) são observados gaps muito relevantes em relação que estava analisado in abstrato. Por mais penosa que seja uma experiência de materialização de risco é dela que se podem extrair experiências relevantes para a futura prevenção de (velhos e novos) riscos. Em outras palavras: a prevenção de riscos a partir de um certo tipo de mapeamento contém um grau muito variável de probabilidade. Há mais: os maiores riscos ocorrem em hipóteses (estatísticas) que em princípio são muito difíceis de ocorrer. Mas, ocorrem, vale relembrar. O dever de diligência é obrigação de meio, como é cediço na literatura jurídica e nos precedentes dos tribunais. Atentar para as red flags de riscos é preventivamente necessário, mas a determinação do que é um red ou yellow flag é algo muito difícil de discernir em termos concretos. Desastres ambientais, colapsos financeiros, crises sanitárias e assim por diante podem atingir empresas sem que se tenha a percepção razoavelmente precisa de como essas tragédias podem ocorrer. A gestão de riscos é uma tarefa de aproximação entre uma ação de prevenção frente a uma ocorrência presumida, que pode ser muito maior. A ação diligente (ou não) nesse contexto é muito difícil de ser detectada com razoável precisão. No uso, breve e casuístico, da "Teoria das Expectativas Racionais", a prevenção de riscos baseada em um "risco imaginado" que se revela muito maior ou menor do que o previsto cria uma tensão entre o que foi racionalmente esperado e o que ocorre na realidade. Administradores, ao tomarem decisões, lidam com a incerteza de forma contínua. Julgadores se utilizam de uma visão ceteris paribus (mantendo as demais coisas constantes). A avaliação do dever de diligência poderia, assim, estar sujeita ao questionamento sobre se os administradores tomaram as precauções e medidas necessárias com base nas informações e cenários improváveis e radicais. Neste caso, as precauções a serem tomadas implicariam que se trabalhasse sempre com a premissa de riscos superestimados, o que é uma hipótese muito improvável porquanto gerencialmente irracional.  Avaliar esse tema a posteriori é ainda mais complexo uma vez que não se pode reproduzir razoavelmente o que se "imaginava" e o que de fato ocorreu. Somente um erro grosseiro que possa ser percebido proporciona razoável aferição sobre o dever de diligência. Ademais, tudo isso tem de ser avaliado num contexto dinâmico e não de forma inerte. No mundo corporativo, em empresas razoavelmente bem administradas, achar evidências de erros grosseiros é muito raro, pois as hipóteses e modelos sobre riscos usualmente utiliza "distribuições normais" de ocorrências e não em hipóteses "heroicas" e "colapsos inesperados". Logo, erros grosseiros são raros, observada a "normalidade" dos eventos. É também relevante que um risco normalmente contém outros riscos "embutidos" ou "correlacionados" sobre os quais as prevenções são modeladas de formas variadas o que pode causar grandes inconsistências com uma situação real. Como se poderia estabelecer um critério razoável para avaliar a devida diligência numa situação como essa? Aqui o critério deveria de o de se render a uma realidade difícil de ser reproduzida em nível razoável para, assim, julgar os agentes em relação a sua diligência.   V - A Teoria da Complexidade e a Comunicação em Sistemas Corporativos A complexidade sistêmica das empresas, além de tornar o processo decisório igualmente complexo e recheado de nuances, origina percepções divergentes de diversas partes (e.g. áreas de uma empresa) sobre um mesmo fato. Vejamos em maiores detalhes, no uso particular e específico da "Teoria da Complexidade" de Morin9. Em um sistema complexo, os diferentes agentes (de uma empresa, e.g.) estão interligados e suas ações influenciam uns aos outros e, eventualmente a todos, de maneira imprevisível. Essas interações criam feedbacks contínuos que dificultam a transmissão clara e objetiva de informações. Como resultado, a comunicação pode se tornar fragmentada, já que cada parte percebe o sistema a partir de sua posição específica e de suas interações locais, o que pode gerar distorções e ruídos na troca de informações. Nos sistemas complexos, as informações e os significados são contextuais e podem ser interpretados de maneiras diferentes, dependendo do ponto de vista do receptor (e.g., um administrador). A complexidade envolve a integração de elementos aparentemente contraditórios ou heterogêneos. Assim, a comunicação em um sistema complexo pode ser sujeita a múltiplas interpretações, levando a percepções diferentes entre as partes, especialmente se os agentes envolvidos não compartilham os mesmos referenciais ou experiências. Emergência e imprevisibilidade: em sistemas complexos, novas características emergem da interação entre as partes, o que pode tornar a comunicação ainda mais complicada, pois o comportamento do sistema como um todo pode não ser previsível com base nas interações individuais (e.g. de administradores). Isso gera uma dificuldade adicional de transmitir informações de maneira completa, uma vez que mudanças inesperadas podem ocorrer, levando a uma divergência entre a percepção das partes sobre o estado atual ou futuro do sistema (e da empresa). Redução e simplificação da informação: para lidar com a complexidade, os indivíduos (e.g. diversos administradores) tendem a simplificar a realidade e focar em partes específicas do sistema. Essa simplificação pode criar vieses (bias) ou visões limitadas, onde cada parte comunica apenas os aspectos que considera mais relevantes, muitas vezes ignorando outras dimensões importantes. Tal redução pode gerar assimetrias informacionais (de uma empresa, e.g.), onde certos grupos possuem mais ou menos informação relevante em relação aos outros, ou têm acesso a diferentes interpretações da mesma informação. A assimetria informacional ocorre quando diferentes partes de um sistema (ou empresa) têm acesso desigual à informação, o que pode resultar em desequilíbrios de poder (e.g. de uma estrutura empresarial ou um organograma funcional) e distorções na tomada de decisão. Em sistemas complexos, as assimetrias informacionais são amplificadas pela natureza interconectada e não linear do sistema, que torna difícil para qualquer parte ter uma visão completa e precisa da totalidade do sistema. Diversidade de informações: As partes de um sistema complexo geralmente operam com diferentes fontes de dados e perspectivas (e.g. para se evitar um acidente ambiental). A fragmentação da informação pode ocorrer porque as partes têm acesso a diferentes partes do sistema ou interpretam a mesma informação de maneiras distintas, o que cria uma assimetria informacional natural. Isso é típico, por exemplo, em grandes organizações, onde diferentes departamentos possuem visões e dados diferentes sobre o mesmo problema. Barreiras de comunicação: as barreiras de comunicação podem surgir devido à especialização e divisão de conhecimento entre as partes. O uso de jargões técnicos, diferenças culturais ou organizacionais e até a localização física dos agentes podem dificultar a troca eficiente de informações, gerando um ambiente onde certas informações são retidas ou mal interpretadas. Falta de transparência: a complexidade também pode levar a uma falta de transparência, seja de forma intencional ou não. À medida que as partes tentam gerenciar a complexidade, podem adotar comportamentos de ocultação de informações ou filtro excessivo, exacerbando a assimetria informacional. Isso é comum em ambientes de negócios, onde certas informações críticas podem ser retidas ou manipuladas, levando a decisões erradas por outros agentes. A teoria da complexidade de Morin destaca que, em sistemas complexos, as partes envolvidas podem ter percepções diferentes da realidade, o que pode gerar conflitos e dificuldades na coordenação de ações. Essas percepções divergentes são resultado de experiências e contextos diferentes: cada parte de um sistema complexo opera dentro de seu próprio contexto e com base em suas próprias experiências, o que influencia como interpreta e reage às informações recebidas. Isso pode criar visões de mundo distintas, levando a diferentes interpretações dos mesmos dados ou eventos. Visão fragmentada: nenhuma parte tem uma visão completa do todo. Cada agente tem uma visão parcial baseada em sua posição e nas interações limitadas com o sistema. Isso cria percepções divergentes, pois o que uma parte percebe como um risco ou oportunidade pode não ser visto da mesma maneira por outra. Tendências cognitivas: as partes podem ser influenciadas por viéses cognitivos, o que afeta a forma como percebem e processam informações. Por exemplo, uma parte pode subestimar certos riscos devido à familiaridade com o sistema, enquanto outra pode superestimá-los devido à sua exposição limitada. Isso diverge sobremaneira sobre a "especialidade de um administrador" que se pode presumir na análise posterior de fatos e atos de gestão. Como se pode verificar, em um contexto da comunicação entre partes em sistemas complexos, podemos ver que a interdependência, a imprevisibilidade e a fragmentação das informações levam a assimetrias informacionais e percepções divergentes. A comunicação eficaz, nesse sentido, exige uma abordagem que leve em consideração essas dinâmicas, promovendo maior transparência, troca de informações abrangente e a capacidade de compreender o sistema em sua totalidade, ao invés de focar apenas em partes isoladas. No caso do dever de diligência, que exige que os administradores tomem decisões prudentes e informadas, a imprevisibilidade dos sistemas complexos significa que, mesmo que o administrador tenha agido de forma diligente com base nas informações disponíveis no momento da decisão, a verificação a posteriori do cumprimento do dever podem não refletir essa diligência. Como os efeitos de suas decisões podem ser amplificados ou distorcidos por interações desconhecidas, a verificação do cumprimento do dever geralmente não é precisa, especialmente o processo de tomada de decisão. Ao avaliar o cumprimento do dever de diligência, é difícil isolar as ações de um administrador de outros fatores do sistema (estrutura da tomada de decisão) que possam ter influenciado o resultado da diligência de um certo administrador. Mesmo que uma decisão tenha sido tomada de forma prudente e cautelosa, as interações complexas no sistema podem alterar significativamente o processo, tornando incerta a avaliação da diligência a partir do desfecho observado. Mesmo decisões baseadas em um raciocínio lógico e fundamentado podem falhar devido à falta de visibilidade de todas as interações no sistema. O que pode parecer uma decisão prudente em uma situação pode ser interpretado de forma diferente por outro observador em um momento posterior, especialmente se os resultados não forem os esperados. Finalmente, duas considerações adicionais sobre informações na prática da governança corporativa e na gestão de empresas. O primeiro é que os administradores podem tomar decisões com base nas condições e informações disponíveis, mas essas decisões podem gerar consequências imprevistas e emergentes que não estavam sob o controle ou a previsão do administrador. Isso torna difícil julgar a adequação das ações apenas pelos resultados emergentes, pois esses resultados podem ter sido influenciados por fatores alheios à própria diligência do administrador. O segundo é que um administrador pode parecer ter agido de forma imprudente à luz dos efeitos de longo prazo de uma decisão, mas no momento da tomada de decisão, ele pode ter considerado todas as variáveis relevantes conhecidas. Essa desconexão temporal torna difícil julgar se o dever de diligência foi cumprido, já que os impactos podem ser retardados ou distorcidos ao longo do tempo. VI - Considerações Finais: O Futuro Incerto para os Administradores A complexidade inerente à responsabilidade dos administradores, especialmente quanto ao cumprimento do dever de diligência, está refletida nos desafios do ambiente corporativo contemporâneo, onde sistemas interdependentes, múltiplos stakeholders e a evolução constante dos cenários regulatórios tornam cada decisão um exercício delicado de ponderação contínua. A avaliação a posteriori de eventos é altamente complicada no sentido de avaliar o efetivo exercício do dever de diligência daqueles administradores que eventualmente tenham participado de fatos, sobretudo culposos, nesses eventos que originaram prejuízos de qualquer natureza jurídica para as companhias. Concretamente, do ponto de vista jurídico, a individualização das condutas diligentes (ou não) guarda enorme subjetividade do julgador o qual pode factualmente não estabelecer parâmetros confiáveis de avaliação da devida diligência. A cadeira de quem avalia fatos passados no futuro é sempre muito confortável. Fatos e atos de gestão complexos, especificados em libelos acusatórios, sempre serão selecionados para constituir provas contra os administradores. É verdadeiramente improvável que essa seleção possa ser razoável para atender ao objetivo do julgador, pois a complexidade sistêmica das companhias e as tarefas empreendidas por cada administrador são extremamente difíceis de serem ponderadas em termos de culpabilidade. Afora este aspecto, a demonstração do cumprimento de deveres de administradores, de fato, "provas negativas" em relação a uma acusação podem facilmente serem relegadas pelo julgador em face de seus próprios argumentos subjetivos. Cria-se, assim, um "círculo diabólico" termo designado para situações em que a parte é incumbida de apresentar uma prova que, na prática, é extremamente difícil ou impossível de ser produzida. Isso ocorre sobretudo em casos em que os aspectos técnicos prevalecem, como no processo sancionador retromencionado.  A possibilidade de quebra da legalidade processual é evidente nesses casos10. O abuso de autoridade é uma possibilidade crítica nesse diapasão. Informava Calamandrei: "O processo não deve ser uma armadilha em que se pega o litigante incauto; o juiz deve intervir para equilibrar as forças e não permitir que o formalismo processe a injustiça."11 O caso do rompimento da barragem em Brumadinho serve como um exemplo marcante da dificuldade de se atribuir responsabilidade em um contexto de governança que exige não apenas expertise técnica, mas também sensibilidade ética e visão holística. O voto do diretor da CVM é um alerta para os administradores, mas também para os doutrinadores, julgadores e legisladores. A penalização elevada (R$ 27 milhões) não é apenas uma expressão do julgador, mas um sinal gritante para a necessidade de uma justiça equitativa no processo, mas também para vida empresarial brasileira. Já era preocupação de Von Gierke há mais de cem anos: "A justiça não pode ser simplesmente uma questão de poder ou força. Deve ser acessível e justa para todos, independentemente de sua posição. O Estado, como defensor da justiça, tem o dever de equilibrar as desigualdades e assegurar que o processo jurídico não se torne um instrumento de opressão."12 Do ponto de vista fático, embora a responsabilidade individual de administradores seja um princípio fundamental no direito societário, a aplicação prática desse princípio encontra barreiras significativas, especialmente em situações de decisões empresariais sistêmicas e de risco. A dificuldade em isolar a ação de um administrador dos elementos sistêmicos que influenciam o processo decisório desafia a doutrina e a jurisprudência a encontrarem soluções justas e proporcionais. Como afirmamos logo acima, o fato mais sensível do caso de Brumadinho é que o alegado descumprimento do dever de diligência pode implicar em multa de grande montante. É preciso avaliar o caso em vista de outros que podem vir. A injustiça pode se propagar mais rápido que a justiça, importante ponderar. Os sistemas sociais, incluindo o sistema jurídico, operam com base em uma distinção interna, que no caso do Direito é a distinção entre legal e ilegal. A justiça, segundo Luhmann13, é uma expectativa normativa dentro do sistema jurídico, mas não necessariamente garantida em todos os casos, pois o sistema jurídico pode, por sua complexidade e autonomia, criar barreiras para o acesso à justiça. Especialmente, quando tratamos da individualização de condutas, completo eu. O verdadeiro desafio do julgador reside em harmonizar o rigor técnico com a necessária flexibilidade ética, assegurando que a análise do dever de diligência compreenda as complexidades próprias da realidade corporativa. Não se trata, evidentemente, de eximir aqueles em posições de liderança de suas responsabilidades pelos efeitos de suas decisões. Contudo, é igualmente imperioso que se evite a negação da justiça para com os administradores, quando múltiplas evidências de cumprimento do dever de diligência são descartadas em favor de um subjetivismo absoluto no julgamento. _______   1 Artigo 153 da Lei 6.404/1976. 2 Aqui o termo "complexidade" tem o sentido de Edgar Morin: ""A complexidade é o tecido de eventos, ações, interações, retroações, determinações, acasos, que constituem o nosso mundo fenomênico. Ela apresenta-se, portanto, como a união, ao mesmo tempo, de diversidade e unidade." MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. 4ª. ed. Pp. 13 Lisboa: Instituto Piaget, 2005. 3 GALIMBERTI, Umberto. Psiche e Techne: L'uomo nell'età della tecnica. Milão: Feltrinelli, 1999. p. 46. 4 EIZIRIK, Nelson. O novo direito societário: governança corporativa e mercado de capitais. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018. p. 89. 5 Smith, Craig N. The Moral Responsibility of Firms: Renewed Interest in a Perennial Question of Business Ethics. Journal of Business Ethics, vol. 148, no. 1, 2018, pp. 10 e 18. 6 FRENCH Peter A. The corporation as a Moral Person, American Philosofical Quartely, Campaign, n.3, v.16, pp.207-215, July 1979, pp.214 7 GOUVÊA, Carlos Portugal. A Estrutura da Governança Corporativa, pp. 408-409. São Paulo: Quartier Latin, 2022. 8 POSNER, Richard A. Economic Analysis of Law. 8. ed. Pp. 215 New York: Wolters Kluwer Law & Business, 2011. 9 MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. 4. ed. Lisboa: Instituto Piaget, 2005. MORIN, Edgar. O Método 1: A Natureza da Natureza. Porto Alegre: Sulina, 2005. STIGLITZ, Joseph. Information and the Change in the Paradigm in Economics. The American Economic Review, 2002. (Embora não diretamente relacionado à teoria da complexidade, Stiglitz aborda como a assimetria informacional impacta a tomada de decisões, conceito aplicável a sistemas complexos e comunicação entre partes). 10 "O juiz tem o dever de adaptar as regras do ônus da prova em situações de extrema dificuldade, sob pena de violar o devido processo legal." DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 2018. 11 CALAMANDREI, Piero. Eles, os juízes, vistos por um advogado. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. 12 GIERKE, Otto von. Das deutsche Genossenschaftsrecht. Berlin: Weidmann, 1913. 13 LUHMANN, Niklas. A função do direito na sociedade. Trad. Klaus Vieweg. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1985.
A evolução tecnológica e a crescente complexidade das operações empresariais impuseram novos desafios à integridade das informações financeiras. Nesse cenário, os SIC -Sistemas de Informação Contábil se destacam como ferramentas indispensáveis, não apenas para a gestão eficaz, mas também para a detecção e prevenção de fraudes contábeis. Este artigo visa aprofundar a análise sobre os elementos cruciais dos SIC que devem ser observados para mitigar riscos de fraude, integrando conceitos teóricos, dados empíricos e argumentos apresentados em estudos recentes, relevantes para as disciplinas do Direito, especialmente sob o prisma da imputação de ilícitos penais, civis e administrativos. Os SIC são plataformas baseadas em tecnologia da informação, projetadas para coletar, armazenar, processar e relatar dados financeiros e contábeis, na forma de demonstrações financeiras e outras peças contábeis e extracontábeis que servem, por exemplo, à atribuição e pagamento de tributos. Tradicionalmente, um SIC é composto por três subsistemas principais: O SPT - Sistema de Processamento de Transações, o SRF - Sistema de Livro Razão Geral e Relatórios Financeiros, e o SRG - Sistema de Relatórios Gerenciais. Esses componentes desempenham funções críticas na estrutura contábil de uma organização e, se mal configurados ou monitorados, podem gerar lacunas significativas que facilitam práticas fraudulentas. É crucial destacar que eventuais inconsistências contábeis podem ser relevantes e resultar na imputação de danos e outros ilícitos civis; contudo, sob a ótica penal, faz-se necessária a comprovação de dolo para a caracterização de crimes. Um documento adulterado somente configura fraude contábil se for contabilizado. Há fraude quando há intenção dolosa, como veremos mais à frente em detalhes. O SPT, responsável por apoiar as operações diárias de negócios, automatiza e registra transações de receita, despesa e conversão. Qualquer falha ou manipulação neste sistema pode resultar na adulteração de registros, dificultando a detecção de fraudes. Portanto, é imperativo que o SPT seja robusto e dotado de controles internos eficazes que garantam a integridade dos dados inseridos e processados. É importante ressaltar que documentos contendo erros ou que demonstrem intenção dolosa somente se caracterizam como ilícitos se e quando forem inseridos no SPT. A importância de uma estrutura sólida de controle interno é evidente, uma vez que fraudes frequentemente ocorrem devido a fraquezas neste sistema. A implementação de procedimentos de verificação automáticos e manuais pode atuar como uma barreira eficaz contra a manipulação de dados, aumentando a confiabilidade das transações registradas. Reitera-se que um documento adulterado só se torna uma fraude contábil se for efetivamente contabilizado, isto é, registrado na estrutura contábil. O SRF e SRG, encarregados da sumarização das atividades contábeis e da geração de relatórios financeiros, devem ser continuamente auditados, tanto internamente quanto externamente, para assegurar que as informações refletidas nas demonstrações financeiras sejam precisas e verídicas. A ausência de auditorias internas rigorosas ou de controles de conformidade pode permitir que fraudes sejam mascaradas por meio de ajustes contábeis inadequados ou falsificação de dados financeiros, usualmente por meio de lançamentos manuais. Neste ponto, a governança corporativa desempenha um papel central na eficácia dos sistemas de contabilidade. A governança corporativa fragilizada, por vezes influenciada por acionistas controladores e/ou executivos empoderados, e que não exige a revisão contínua dos sistemas de relatórios financeiros, pode facilitar a perpetração de fraudes, uma vez que falhas sistemáticas podem permanecer despercebidas por longos períodos. Portanto, a imputação de responsabilidades aos administradores das empresas (como conselheiros de administração) em casos de fraudes depende da verificação da diligência e da consistência concreta (e não apenas formal) da governança corporativa. O SRG, por sua vez, fornece à gestão interna relatórios gerenciais detalhados que auxiliam na tomada de decisões. Este sistema deve ser configurado para gerar alertas sobre discrepâncias e variações incomuns nas operações financeiras, funcionando como uma ferramenta de análise preventiva contra fraudes. No estado da arte da tecnologia moderna, relatórios personalizados que permitem o acompanhamento, muitas vezes em tempo real, das atividades contábeis são essenciais para a identificação precoce de irregularidades. O valor dos relatórios gerenciais vai além da simples apresentação de dados; eles devem ser ferramentas dinâmicas que permitam à administração reagir rapidamente a anomalias detectadas, ajustando processos conforme necessário para evitar prejuízos maiores. As estruturas de governança corporativa frequentemente utilizam esses sistemas para fundamentar suas decisões. A importância da transparência e da confiabilidade dos sistemas contábeis na detecção de fraudes está intimamente ligada à estrutura e à governança dos SIC. Um aspecto crucial é a necessidade de que esses sistemas sejam projetados não apenas para cumprir com as obrigações legais e regulamentares, mas também para promover uma cultura de ética e conformidade dentro da organização - a técnica e a eficiência desprovidas de valores éticos não consideram, de fato, as pessoas e as empresas. Essa visão é corroborada por muitos estudos que apontam que a mera presença de sistemas tecnológicos avançados não é suficiente para prevenir fraudes; é necessário que esses sistemas estejam integrados a uma cultura organizacional que valorize a transparência e a responsabilidade. Além dos subsistemas tradicionais, o uso de tecnologias emergentes como BI - Business Intelligence e BSC - Balanced Scorecard, integradas aos SICs modernos, contribui significativamente para a detecção de fraudes. Essas ferramentas fornecem uma visão holística das operações, identificando padrões atípicos e monitorando indicadores de performance que podem sinalizar atividades fraudulentas. A integração dessas tecnologias aos SICs permite que as empresas detectem fraudes de maneira mais proativa, identificando tendências e padrões que poderiam passar despercebidos ao escrutínio humano. A auditoria interna, assistida por técnicas avançadas de auditoria computadorizada, também desempenha um papel essencial na detecção de fraudes. O uso dessas ferramentas tecnológicas permite a análise de grandes volumes de dados e a identificação de anomalias por meio de auditorias mais eficazes, minimizando a possibilidade de que fraudes passem despercebidas. Em um ambiente corporativo onde a auditoria interna é vista como uma área verdadeiramente estratégica, o impacto das fraudes pode ser drasticamente reduzido. Modernamente, as auditorias internas são conduzidas de modo contínuo, dentro de uma abordagem integrada que considera tanto os aspectos financeiros quanto os operacionais da empresa. A ética corporativa, sob o prisma da prevenção de fraudes, desempenha um papel crucial. A implementação de um SIC eficaz e controlado deve necessariamente estar alicerçada em políticas de conduta ética e de compliance, que são marcos centrais para o comportamento dos funcionários em todos os níveis da organização. A adoção de códigos de conduta, treinamentos regulares e canais de denúncia confidenciais são práticas essenciais para criar um ambiente onde a fraude não seja tolerada. Conselhos de administração independentes e a realização de auditorias periódicas por entidades externas são medidas eficazes para garantir a integridade das informações contábeis. Isso está intimamente relacionado à efetiva operacionalização da contabilidade e à elaboração de demonstrações financeiras. Governanças focadas em resultados a qualquer custo são aquelas mais vulneráveis às fraudes. Ao observar cuidadosamente os aspectos críticos dos sistemas de informação contábil e integrar as melhores práticas de governança corporativa, as organizações podem não apenas mitigar os riscos de fraude, mas também fortalecer a confiança de todas as partes interessadas em suas operações financeiras. Do ponto de vista jurídico, é essencial respeitar os limites entre a má administração e as fragilidades de controles internos, evitando a fácil atribuição de crimes àquilo que, na realidade, representa apenas uma cultura corporativa, por vezes equivocada.
"Our ability to manufacture fraud now exceeds our ability to detect it". Al Pacino  Considerado o mercado de capital e financeiro ao redor do mundo e a importância relativa que ganhou frente a denominada "economia real" a prática de fraudes contábeis é nefasta aos negócios. Afinal, são as informações que delimitam as variações de preços e refletem a criação de valor intrínseco das empresas. Afora isso, as fraudes afetam a integridade do mercado em termos macro e microeconômicos. No sentido jurídico do tema, há de se considerar que a complexidade da estrutura organizacional das empresas, especialmente das grandes corporações, dificulta a individualização de condutas criminais, tornando desafiadora a atribuição de responsabilidade a agentes específicos. A natureza difusa de muitos crimes empresariais, com a participação de diversos indivíduos em diferentes níveis hierárquicos, obscurece a identificação de um autor principal - em verdade, as fraudes contábeis requerem muitas operações e a participação de muitos indivíduos a depender do que tenha ocorrido. Sempre importante salientar que "erros ou inconsistências" contábeis não se constituem em crimes: são, no máximo, ilícitos administrativos, tributários ou cíveis, passíveis da jurisdição de instituições como a U.S. Securities and Exchange Commission (SEC) e a Comissão de Valores Mobiliários (CVM).  De outro lado, a teoria do Entity Control Level, que se relaciona com os temas das teorias sobre governança corporativa, enfatiza a responsabilidade dos administradores, especialmente conselheiros de administração, membros do conselho fiscal, do comitê de auditoria, do comité financeiro e, até mesmo, de acionistas controladores, nas práticas criminosas ou nos ilícitos cíveis, dada sua posição de controle e influência sobre as decisões da empresa. Esses agentes, em virtude de suas funções, possuem um dever especial de vigilância e controle sobre as atividades da empresa (e.g. deveres constantes dos Art. 153 e ss. da Lei das Sociedades Anônimas), sendo responsáveis por garantir a integridade e a confiabilidade dos processos, controles e políticas das informações contábeis. Além disso, há de ser considerado que a documentação contábil manipulada pode ser elaborada de forma a ocultar a identidade dos responsáveis, exigindo investigações minuciosas e periciais para desvendar a trama criminosa, tarefa essa que não é nada simples. Não à toa, diante da complexidade e dos impactos negativos dessas condutas, a responsabilização das pessoas jurídicas tem se intensificado, especialmente sob a óptica da teoria do domínio da organização. As investigações da Jurisdição estatal, bem como as investigações internas têm se tornado bastante sofisticadas. Vale dizer que a simplificação dos métodos e dos meios de identificação de condutas, implica em erros grosseiros para fins de acusação criminal e/ou civil em vista da complexidade dos processos e controles internos de uma empresa que pode induzir a conclusões que sejam aparentes, mas completamente falsas e improcedentes. Por exemplo, uma investigação sobre fraude contábil que não alcança a quantificação dessa fraude é inócua porquanto insuficiente para a caracterização material dos ilícitos. Não se pode especular a respeito a partir de inferências realizadas a partir de certos achados, tais quais documentos e mensagens trocadas entre os possíveis fraudadores. A teoria do domínio da organização, consagrada em diversos ordenamentos jurídicos, atribui à pessoa jurídica responsabilidade penal pelos crimes praticados em seu nome ou interesse, mesmo que não seja possível identificar um autor individualizado. A justificativa reside na compreensão de que a organização, como um ente coletivo, possui uma estrutura e uma cultura que podem facilitar a prática de atos ilícitos. Assim, a responsabilidade penal se estende à pessoa jurídica, que se beneficia direta ou indiretamente dos crimes cometidos. Uma cultura empresarial focada em benefícios que sejam fruto de alto desempenho tende a ser a mais propensa aos ilícitos e à ultrapassagem dos controles e processos (override). A responsabilização dos administradores e auditores independentes é indissociável da responsabilização da pessoa jurídica. Esses agentes possuem deveres específicos de diligência e cuidado, sendo responsáveis por garantir a a confiabilidade das informações contábeis e da elaboração das demonstrações financeiras colocadas junto ao público. A legislação de diversos países prevê a responsabilização civil e criminal dos administradores e auditores independentes que, por dolo ou culpa, contribuíram para a ocorrência de fraudes. As implicações das fraudes contábeis para os investidores e demais stakeholders são devastadoras. Os investidores podem sofrer perdas significativas com a queda do valor das ações, a falência da empresa ou a perda de confiança no mercado. Os credores podem ter dificuldades para recuperar seus créditos, e os funcionários podem perder seus empregos. Além disso, as fraudes contábeis podem gerar um efeito em cascata, afetando outros agentes econômicos e a economia como um todo. A comparação entre os sistemas jurídicos de diferentes países revela divergências quanto à responsabilização das pessoas jurídicas por crimes. Apenas a título de ilustração, nos Estados Unidos, o Federal Sentencing Guidelines estabelece diretrizes para a aplicação de penas a empresas condenadas por crimes federais, com foco na responsabilização individual dos administradores. No Brasil, a Lei nº 9.613/1998, que dispõe sobre os crimes de lavagem de dinheiro e ocultação de bens, direitos e valores, também prevê a responsabilização penal das pessoas jurídicas, mas com um enfoque mais genérico. Todas as legislações vislumbram a culpabilidade na órbita do ambiente complexo de uma empresa. Na Europa, a "Diretiva 2001/95/CE", que estabelece um quadro geral para combater a lavagem de dinheiro, incentiva os Estados-membros a adotarem medidas para responsabilizar as pessoas jurídicas por crimes de lavagem de dinheiro. A França, por exemplo, possui uma legislação específica sobre a responsabilização penal das pessoas jurídicas, que se aplica a diversos tipos de crimes, incluindo as fraudes contábeis. Nesse diapasão, a Europa não privilegia a individualização da conduta em casos de crimes empresariais.  Nesse sentido, o Entity Control no que diz respeito a materialização concreta das atividades dos executivos na governança corporativa é muito mais relevante.   O impacto das fraudes contábeis na reputação das empresas é inegável. A perda de confiança dos investidores, dos clientes e dos demais stakeholders pode levar ao declínio das vendas, à dificuldade em obter financiamento e à perda de talentos. Além disso, as empresas que se envolvem em fraudes contábeis podem ser alvo de investigações por parte dos órgãos reguladores e sofrer sanções administrativas e judiciais. Em conclusão, a responsabilização penal das pessoas jurídicas por fraudes contábeis é um tema de grande relevância para o direito empresarial e para a sociedade como um todo. A "teoria do domínio da organização", ao atribuir responsabilidade penal à pessoa jurídica, busca coibir a prática de atos ilícitos, restaurar a confiança no mercado e incentivar a adoção de práticas de governança corporativa mais eficazes. No entanto, a aplicação dessa teoria enfrenta diversos desafios, que exigem um aprimoramento constante do marco legal e das práticas de governança corporativa. A prevenção das fraudes contábeis é um desafio complexo, que exige a adoção de medidas por parte de todos os stakeholders envolvidos, desde os gestores até os colaboradores, passando pelos órgãos reguladores e pelo sistema judiciário. As explicações e narrativas sobre fraudes contábeis de modo simplório têm duas características: são simples de entender e são muito erradas e igualmente fraudulentas.
segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

Entre a lucidez e a cegueira: o horizonte

O singelo e marcante sinal do ano de 2023 é a da democracia oscilante. Os atos atentatórios à estabilidade democrática ocorridos em 8 de janeiro deste ano propiciaram aos poderes do Estado condições para que o ambiente de normalidade constitucional fosse mantido. A reação organizada e liderada pelo STF foi contemporânea e necessária ao tempo da disparada de pedras contra os palácios dos poderes centrais da República. Todavia, temos de reconhecer igualmente que o feito imediato é insuficiente no correr do tempo mais longínquo. A democracia brasileira ganhou contornos incertos nos últimos anos, bem como vacila em face de dois sinais gritantes, dentre outros que poderíamos citar: (i) o declínio do apelo cidadão em relação aos valores políticos e éticos, sobretudo a liberdade e a democracia, em troca do individualismo excessivo e consoante com a satisfação imediata e líquida (no conceito de Bauman) dos anseios de consumo e (ii) a imensa e crescente desigualdade econômica e de oportunidades. Neste contexto, a suspeita sobre a democracia e o establishment tem sido permanente. Um fenômeno ocidental. No contexto acima, é impossível que se possa imaginar que sem mudanças estruturais haja real estabilidade democrática e institucional. Para tanto, a superestrutura política teria de contribuir decisiva e fortemente para forjar um caminho de longo prazo em prol do desenvolvimento econômico com a redução gradual, mas sensível da desigualdade social. Aqui não estamos a tratar de uma aspiração idealista e pouco pragmática. Trata-se em verdade da única alternativa concreta e possível para mudar o curso antidemocrático que se formou na última década no Brasil. Nesse sentido, o 8 de janeiro está vivíssimo. Está claro que a possibilidade de que ocorram as transformações necessárias a refortalecer a democracia e os valores difusos é mínima. A fragmentação política e ausência de direcionadores estruturais e estratégicos do governo inviabilizam estas transformações. É verdade que há reformas importantes e encaminhadas, tal qual a tributária - louvor a Haddad, no caso. Destas reformas devem vir algum crescimento adicional em vista de melhores expectativas de confiança para consumir e investir. O PIB em 2024 pode crescer, quem sabe, até 3%, um número relativamente otimista. A inflação poderá ser domada nos limites da meta do Banco Central. Até mesmo a capengante situação fiscal poderá dar sinais vitais mais positivos. Aqui não faço previsões, apenas registro o que se vê na mídia e na visão dos especialistas. Todavia, este "ponto na curva" não é e não tem condições de ser tendencial. O mercado financeiro e de capital deve até melhorar e rechear os bolsos dos investidores. Infelizmente, a legitimidade da política (e da classe política) permanece dependente da superação do amplo ceticismo social perante a democracia. Mais que desesperança de que o Brasil seja um país mais igualitário, o ambiente em relação à política tornou-se niilista: infelizmente estagnamos no lamaçal do subdesenvolvimento, na ausência de saúde verdadeiramente universal e de serviços públicos capazes de espalhar igualdade. Basta ver o sofrível quadro da educação. A título de ilustração: o resultado do PISA - Programa Internacional de Avaliação de Estudantes mostra que o Brasil supera tão somente 9 (Argentina, Jamaica, Albânia, Indonésia, Palestina, Marrocos, Uzbequistão, Jordânia, Panamá) dentre 81 países da amostra. Sejamos sinceros: não vamos a lugar algum dessa forma. É a sensação de que os membros da elite fazem o que querem a despeito dos limites entre o público e o privado que acentua a descrença na política e no establishment. Considerado o fato de que a mobilidade social é uma quimera para a maioria da população, a política tornou-se no imaginário popular uma atividade de privados a gatunar o interesse público. A complicação é que a saída do eleitor, diante dessa visão, não é nem mudar o voto e nem fiscalizar melhor o eleito: nasce daí a ideia de que virá um libertador a desmanchar todas as estruturas e forjar redentoramente as soluções. O populismo extremado não é mais uma corruptela da democracia. Assume, de fato, a feição da própria democracia para larga porção da sociedade. Observar a evolução da administração de Javier Milei, nesse sentido, será muito interessante. O exame mais detido dos votos do exótico presidente argentino mostra que sua base é mais transversal que a imaginada: desde os mais pobres até os mais ricos votaram em Milei. Se quebrará as pernas do sistema, conforme promete, é algo a ser verificado. Todavia, as condições de apoio popular estão dadas. A sua plataforma política foi clara e libertária e o povo aderiu. Resta agora a confirmação de que a apoiará. Por aqui, a tropicalização do populismo e libertarismo pode ser até mais sutil e menos arroubada. Contudo, o cenário e o solo são férteis para aventuras políticas mais à frente. Há mais: no mundo das fake news e do admirável mundo novo da tecnologia, percebe-se cada vez mais difícil que se possa estruturar planos lógicos para reformar a economia e as políticas sociais. O foco do eleitor é o curto prazo: prometer uma bolsa-família é mais relevante que construir um plano educacional que revolucione o ensino básico. Assim, a sociedade perdeu a proporção dos problemas nos quais estamos metidos o que abre espaço para soluções políticas "fáceis" e quase sempre erradas. Basta ver os confusos e contraditórios resultados das políticas ambientais, fruto da inconsistência das proposições. A latência do populismo e a demanda por soluções rápidas é o caminho para o autoritarismo. Isso porque o controle social num ambiente como esse torna-se desafiador. Talvez vejamos isso rapidamente na Argentina. A lei e a ordem não são mais vislumbradas como barreiras civilizatórias e de valores para que as mudanças ocorram dentro de parâmetros institucionais pré-definidos. Não precisamos ler Husserl, Scheler ou Gadamer para entender o que isso pode significar. Em verdade estamos em tempos de influencers. Inclusive na política. O denominado imperativo em torno da ideia do bem e do mal, inclusive de ordem pública e geral, mostra-se fluida, não para afirmar os valores (inclusive democráticos), mas, contrario sensu, para escolher a ausência de valores. O libertarismo de Milei assim se organizou para desorganizar, não é mesmo? No caso do Brasil, talvez seja a indiferença a marca mais visível da pouca importância dos valores sociais e políticos. A lupa em relação à economia (e talvez ao comportamento dos políticos) mostra que 2024 pode ser um ano realmente melhor, mesmo diante de riscos por todos os lados. Entretanto, se o olhar penetrar o binóculo e observar o longo prazo, a dinâmica das estruturas nos levam ao precipício da política. Do ponto de vista racional, não há, por ora, o que evite o pessimismo em relação ao futuro. Isso deveria nos pôr em ação para construirmos um país melhor. O resto é figura de linguagem. Que venha 2024!
Hanna Arendt informa que "a aparência - aquilo que é visto e ouvido por todos e tem a maior divulgação por todos- constitui a realidade. (...) O domínio público, enquanto mundo comum, reúne-nos na companhia de uns dos outros e, contudo, evita que caiamos uns sobre os outros"1. No âmbito da política internacional, a constituição da realidade nos termos que ilustrou tão bem Arendt, a aparência se torna ainda mais crítica. A política externa é sempre exercida em um cenário caótico uma vez que a evolução, análise e discernimento dos fatos decorrem mais do poder real derivado da força do que daquele que repousa no Direito. A realidade é como ela é, e a retórica pública enquanto uma forma de realidade precisa se conectar com os fatos como eles são. Cabe bom senso, portanto, e não arroubos. A guerra entre Israel e o Hamas tem variadas e complexas angulações que permitem concluir (ou não) de forma diferente sobre o que factualmente ocorre. A "dura verdade" é que se trata de um evento inegavelmente trágico para todos os lados. Está claro, que do ponto de vista do povo palestino, esta tragédia é sobremaneira grave dadas as consequências humanas do conflito. Jamais se deve fugir desta realidade. A despeito desta constatação, digamos, objetiva em relação à força israelense é preciso que se analise o papel e o "que é visto e ouvido por todos" da parte do atual governo brasileiro. Cabe retidão analítica e, permito-me dizer, moral. Mesmo os fatos mais duros e tristes exigem percepções corretas, caso contrário ficamos diante do superficial quando as soluções requerem o que é essencial. O proselitismo sem as percepções realistas e corretas nos leva ao erro de condução política, cujo resultado se espalha no futuro (que amplia a falsa realidade muitas vezes de forma exponencial). É nessa perspectiva específica que me atenho a analisar a condução do Presidente Lula e seu governo em relação à guerra Israel - Hamas. Em primeiro lugar vejo que o governo precisa delimitar claramente o seu discurso em vista do fato de a guerra ter sido originada de forma injusta pelo Hamas (e não pelo povo palestino). A quantidade surpreendente de mísseis lançados sobre Israel evidencia claramente o fato. Aqui não cabe tergiversações. Todavia, também não cabem derivações em termos de retórica e iniciativas de política externa no sentido de que as consequências possam ser avaliadas de forma descolada desta injustiça inicial cometida pelo Hamas. Segundo: se é uma exigência reconhecer o papel terrorista do Hamas, é preciso tornar esse reconhecimento atemporal, mesmo diante da tragédia com a qual nos defrontamos do ponto de vista humanitário do lado palestino no transcurso das operações militares. Quem causou esta tragédia stritu sensu foi o Hamas seja o momento em que estejamos. Terceiro: alguém poderia, até mesmo, alegar, que é e foi a desastrada política de Israel em relação aos assentamentos e às questões palestinas a causa remota do desastre em curso. Para tanto, cabe lembrar ao governo brasileiro e a Lula, que esta alegação é feita também em Israel. Há, naquele país democrático, substancial oposição às políticas do atual primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, inclusive em relação aos tratos com os palestinos. Vale dizer que Israel enfrenta desafios relevantes e materiais no que tange às suas instituições democráticas, como muito outros países, dos EUA ao Brasil. Mesmo neste contexto, a formação de um governo de união nacional em Israel, neste exato momento, indica que a questão da guerra injusta do Hamas permite que polos tão extremos em Israel possam se somar nesta hora. Pragmaticamente, o Brasil deveria observar e atuar neste espectro em busca de soluções junto a ampla gama de posições dentro do próprio governo israelense. Quinto: embora a retórica diplomática seja clivada em sua forma e objetivos, dentre os quais o de ser instrumento para a paz e não para a guerra - o que ocorre desde Hugo Grotius no século XVI em De Jure Belli ac Pacis- é preciso não cair na tolice de achar razoável que a ação militar de Israel não precise desalojar o Hamas de dentro de Gaza. Quem usa o sofrido povo palestino em Gaza é o Hamas. Isto é fato. Vale lembrar, nesse ponto, que não existe "um governo nacional de união" entre os palestinos porque a Autoridade Palestina não concorda com a ação do Hamas. Com efeito, a política externa brasileira precisa criar um cristalino caráter divisivo em relação à necessidade de isolar e, quiçá, neutralizar completamente o Hamas ao tempo que possa rogar pelos palestinos. Sexto: Lula e o governo, ao desprezarem a realidade dos fatos em relação à guerra, criam um consenso na sociedade brasileira que é falso: não há um opressor (Israel) e uma vítima (Povo Palestino). Há, isso sim, um opressor (Hamas) e duas vítimas (Israel e Palestinos). Embora seja verdade que Israel tem o poder se proteger e o povo palestino não tenha condições de fazê-lo, nada retira a condição original de que ambos são vítimas. Nesse sentido, se Israel age desproporcionalmente é preciso agregar ao argumento de que o faz enquanto vítima e não como algoz. Os EUA, mesmo sendo aliados sólidos de Israel, assim atuam. Sétimo: o governo brasileiro associa, de forma subliminar, o seu discurso interno sobre as conhecidas injustiças que vigem no Brasil com a situação catastrófica de Gaza. É preciso ser realista e encarar o fato de que o que lá ocorre têm causas não diretamente relacionadas com a essência e os valores (ou falta deles) do que cá ocorre. Se desejar usar a sua "visão de mundo" como parte da retórica em relação àquela guerra é preciso angariar argumentos de quanto o Hamas oprime o seu próprio povo. Equilíbrio é necessário até para argumentar ideologicamente. Oitavo: Não importa se felizmente ou infelizmente, mas o fato é que esta guerra não serve para a construção da lógica da política internacional brasileira. Trata-se de fato isolado, mesmo que gravíssimo. Com efeito: ao flertar com o Hamas, mesmo com as ressalvas que, aqui acolá, o governo faz sobre o "terror", o governo brasileiro retira a histórica autoridade que o Brasil sempre teve na política exterior, a despeito de seu papel limitado em termos geopolíticos. A grandeza do Brasil na diplomacia sempre veio de seu papel moderador. A firmeza na cena internacional sempre foi calcada na inteligência e no conhecimento profundo dos fatos internacionais. O desastre que foi Bolsonaro na área externa foi causado pela falta dessa inteligência. A adoção de um hard power retórico coloca o Brasil em posição de inferioridade porquanto confunde fatos e cria inação. É lamentável que possa o governo Lula imaginar que seja o contrário. A guerra contra o Hamas da parte de Israel é uma oportunidade histórica da diplomacia brasileira afirmar valores sem fugir dos fatos como estes são. Ademais, a trágica guerra nos deixa ainda mais confusos no meio dos tormentos da política multilateralista: calcar estacas em meio dessa areia movediça não firma a política externa brasileira. De fato, pode desmoralizá-la e fazer com que "caiamos uns sobre os outros ao invés de nos reunir na companhia dos outros", na paráfrase de Arendt. ______________ 1 Arendt, Hanna, A condição humana, 13ª edição, Rio de Janeiro, 2016, Forense Universitária, p.61 e 65.
Caminhamos para o final do ano, o primeiro do mandato do Presidente Lula. Já é tempo de avaliarmos os rumos do país, não propriamente com base nas realizações, as quais foram poucas, mas em função do momento, especialmente na economia e nas políticas sociais. Do ponto de vista político, a configuração e a estratégia do governo parecem ser a de apaziguar as relações políticas e sociais em torno de duas ideias básicas: (i) a valorização da democracia como meio necessário e melhor para o progresso do país e (ii) a valorização da interlocução com o Congresso Nacional e, em menor medida, com os entes federativos. No que se refere à defesa da democracia o governo se coloca na posição de portador das virtudes necessárias à efetividade do jogo democrático. Da história de Lula à postura de diálogo e aceitação das diferenças ideológicas, tudo se tornou meio de viabilização da imagem de um governo democrático. De todo modo, é o papel saneador exercido pelo Judiciário em relação ao governo anterior que é mantida e propagada a visão restauradora do atual governo no que tange à democracia. Está claro que o saneamento promovido pelo TSE e pelo STF está inserido no contexto da crise institucional do país, marcada pelas disfuncionalidades dos poderes da República. Especificamente no que se refere à defesa democrática o papel do Judiciário é fundamental diante do vácuo deixado pelo Legislativo e Executivo durante o governo do ex capitão - não devemos esquecer que, mesmo diante de todas as mazelas produzidas por Bolsonaro e seus apoiadores, ele sempre esteve a salvo do impeachment e construiu uma base política regada a emendas secretas e fundos partidários. Ainda na arena política, Lula quis repetir a fórmula anterior (de 2003 a 2010) de alojar aliados nas franjas do governo e, daí, obter o apoio congressual necessário para que a administração funcionasse e, quiçá, andasse para frente. Esta estratégia foi suficiente para barrar ímpetos contra o governo, mas foi incapaz de dar propulsão aos projetos formulados na Esplanada dos Ministérios e no Palácio do Planalto. A razão central para que esta iniciativa de Lula não funcionasse a contento deriva do fato de que os alojados no Executivo não têm "comandados" no Congresso, mas "aliados oportunísticos". A fragmentação política no Brasil não é apenas de partidos, agora é de subgrupos que se organizam e reorganizam entre si conforme a pauta, das causas identitárias até as econômicas. Da fragmentação reinante desde a redemocratização chegamos à "granularidade política". A alternativa de Lula neste cenário de granularidade é ceder mais poder para mais grupos políticos, não mais nas franjas do governo, mas no seu coração: não é à toa que toda a direção da Caixa Econômica Federal é cedida ao Centrão. Também é notável que posições de Estado, tais quais as do Judiciário e do Ministério Público, tenham se tornado muito vulneráveis aos arranjos político-partidários. A demora do presidente em sancionar as nomeações aos cargos negociados é outro sinal deste processo. O resumo deste quase um ano de governo é que (i) a segurança da democracia está associada ao medo da falta de apoio político ao governo e ao saneamento promovido pelo Judiciário, assim como, (ii) o controle da gestão administrativa é exercido pelas concessões cada vez mais relevantes e fragmentadas das funções do governo e do Estado. Por outro lado. as "garantias" para a efetividade da administração é cada vez mais complexas. Há um fator mais incontrolável deste processo, mesmo que dele derive: o poder militar. Ficou bastante evidente o papel das Forças Armadas na sustentação do governo Bolsonaro, sobretudo depois de conhecidos os eventos de 8 de janeiro. Militares de todas as patentes e de todas as Armas acabaram por assumir, ao longo dos quatro anos da administração Bolsonaro, papéis antes destinados aos civis. Duas justificativas sustentavam essa presença inédita desde a redemocratização: (i) a ausência de quadros técnico-burocráticos do partido (PSL) que elegeu o ex capitão e de outros partidos que compuseram a administração e (ii) o argumento espalhado na sociedade sobre a competência e, principalmente, a honestidade dos homens fardados. Do ponto de vista dos militares, os cargos traziam as vantagens salariais, para além dos soldos, e a visibilidade dos temas de governo e de Estado somada ao exercício de seus poderes concretos. Do Ministério da Saúde às agências reguladoras de diversas áreas, esse preenchimento resultou no devaneio de que há nos fardados ares redentores. Não à toa, há muitos eleitos com nomes associados às suas patentes a das Câmaras Municipais até o Congresso Nacional. Vale notar que as polícias ganharam o status de garantidoras da paz social e da ordem pública, a despeito do concreto agravamento da segurança pública, sobretudo nas grandes cidades brasileiras. Corporações antes relegadas aos seus papéis ordinários passaram a compor o "sistema bolsonarista": a título de ilustração, a polícia rodoviária exerceu funções jamais registradas, de guardiãs das fronteiras a combatentes contra o tráfico internacional de drogas. A tentativa de aparelhamento da Polícia Federal e da ABIN é outra expressão desse processo. Diante da gradual e relevante evolução do poder militar dentro do governo de Bolsonaro dois fatos foram adicionados e este processo. O primeiro foi a tentativa de dar contornos de legitimidade política e jurídica à crescente participação dos militares na vida civil. O contorcionismo jurídico-constitucional versando sobre o "poder moderador" das Forças Armadas é a tradução mais visível deste intento. O segundo fato foi a escolha do vice-presidente de Bolsonaro para as eleições de 2022: Walter Braga Netto era a representação mais visível da preferência do então presidente pela ala mais radical do Exército sem que houvesse qualquer tentativa do candidato Bolsonaro de tornar a sua imagem mais "centrista". Os eventos de 8 de janeiro podem ter sido inesperados, mas poderiam ser pressentidos. Afinal, o projeto bolsonarista sempre foi autoritário e isso foi evidente ao longo dos quatros anos de seu governo. O bolsonarismo com Bolsonaro foi encalacrado pelo TSE e STF por meio de ações concretas, vigorosas e necessárias à defesa da democracia. A inelegibilidade de Bolsonaro e Braga Netto e a punição dos autores dos malfeitos de 8 de janeiro, contudo, não retiram do cenário político a percepção de parcela significativa da sociedade e da elite que as Forças Armadas podem preencher os vácuos políticos e, assim, cumprir a missão de construir uma nova ordem. Se, de um lado, parte da sociedade vê-se dissociada da democracia e com visões messiânicas, a estagnação econômica e a ausência de reformas estruturantes acabam por engendrar frustrações que podem ser refletidas nas urnas a partir de 2024. Há uma extrema direita no país, momentaneamente acanhada pela força da reação institucional do governo, do Judiciário e da outra fração legalista e democrática da sociedade. A dissociação entre o poder e a política no Brasil é grave e permanente. Este vácuo será ocupado inexoravelmente. A ausência de crescimento econômico e de reforma social inserida na granularidade do debate e da ação política são sinais norteadores para o retorno da radicalização vivenciada em 2022. Desta feita, a margem estreita da vitória da democracia nas últimas eleições pode mudar de lado.
A legitimidade formal do presidente eleito nas eleições de 2022 é inegável. Com apenas 1,8% dos votos válidos, Lula da Silva obteve a vitória. A legalidade desse pleito com resultado apertado é crucial, pois demonstra a força do Estado de Direito por meio do voto popular soberano. No entanto, a legitimidade política vai além da formalidade. Como ensinou Max Weber, ela envolve a capacidade de obter obediência a um determinado mandato. Considerados esses dois aspectos da legitimidade, podemos tirar lições dos quase seis primeiros meses do atual governo. As medidas adotadas pelo Judiciário, executivo e legislativo, por meio da CPI, em relação aos eventos de 8/1 e ao histórico golpista do ex-presidente que nos governou, são necessárias. Elas deveriam reforçar a ideia de que o Estado de Direito é parte integrante da vida social, econômica e política do país. O respeito à essência do verdadeiro espírito democrático e aos processos correspondentes não pode ser negligenciado sob nenhuma lógica que distorça essa compreensão. O populismo, com suas narrativas abundantes, trouxe para a cena política a ideia de que a superação dos problemas de um país pode ser alcançada à sombra do autoritarismo e da exceção à ordem legal. Nesse sentido, acredito que Lula da Silva e seu governo representam a dignidade de nossa democracia, embora essa afirmação precise continuamente ser comprovada por meio de ações, políticas, palavras e iniciativas. No fundo, os eleitos são meros locatários temporários da dignidade democrática. Embora o governo esteja caminhando bem em termos de legitimidade formal, é no processo de legitimidade política que surgem os maiores problemas da administração de Lula. Vejamos. Inicialmente, é evidente que o presidente conquistou seu mandato nas urnas, mas também é claro que o centro político que o apoiou perdeu na disputa do Congresso Nacional. A base política efetiva do governo é muito pequena, talvez menos de 20% do total de deputados e senadores. De maneira pragmática, o presidente formou um ministério com ampla representação partidária, na esperança de que essa forma peculiar de representação no Executivo se refletisse no Congresso. No entanto, isso não ocorre por várias razões. A principal delas está relacionada ao fato de que os "representantes" sentados nos ministérios não têm controle razoável de suas próprias bases no Congresso. A fragmentação excessiva das bancadas de deputados e senadores não direciona mais as votações apenas com base em interesses políticos e, até mesmo, pessoais dos atores do Congresso. Na verdade, a fragmentação política ocorre em um contexto de agendas microscópicas. Além dos temas claramente políticos, as questões ideológicas exercem uma influência dramática na formação de maiorias contrárias ao governo. Não é incomum que temas de uma bancada, como a evangélica, se misturem com votações sobre questões fiscais. Mesmo em assuntos legislativos que teriam conexões lógicas, como o uso de armas pelos cidadãos e a segurança pública, os debates acabam assumindo dimensões e caminhos não necessariamente convergentes. A perda de controle político do governo, nesse contexto, não é apenas resultado de sua organização mais ou menos eficiente, mas está diretamente relacionada à capacidade dos congressistas de se organizar em torno de temas para fazer prevalecer seus interesses fragmentados. Além disso, os ministros não podem garantir ao governo o cumprimento do que foi prometido durante as negociações para ocuparem seus cargos no Executivo. Existe uma grande distância entre a aparência na foto de posse e o poder real. Seguindo a lógica política atual, percebe-se que os partidos políticos já não dependem tanto de verbas como no passado para desempenharem seus papéis como franquias de determinadas lideranças. Além dos generosos fundos partidários construídos com recursos públicos, os políticos conseguiram associar a dinâmica formal das votações à obtenção de favores governamentais para atenderem às suas demandas. Embora o Fundo Partidário garanta o "dia a dia" da vida política, as emendas surgem como uma "sobremesa refrescante" para aqueles que precisam manter suas bases sociais com benefícios visíveis (embora não necessariamente úteis à sociedade). No entanto, as questões não param por aí. O loteamento de cargos não se restringe apenas aos ministérios, mas se estende a todas as estruturas e órgãos do Estado. Ainda não existem cálculos precisos sobre isso, mas os apadrinhados da classe política participam das decisões mais importantes do Estado brasileiro, mesmo sem que se tenha certeza da capacidade desses indicados em relação aos assuntos que deliberam. No Brasil, o "poder político" se confunde totalmente com o "poder tecnocrático". A desmontagem da Lei das Estatais, com a participação do Judiciário, e a falta de atenção aos conflitos de interesses dos nomeados para cargos públicos são exemplos do alcance e magnitude da influência da classe política sobre o Estado. Vale ressaltar que o loteamento de cargos pelos políticos pode resultar até mesmo em "bancadas" conflitantes dentro de órgãos e empresas estatais. Isso está longe de ser algo republicano. Como podemos ver, a democracia no Brasil possui algumas virtudes formais e fortalezas políticas capazes de impedir, por exemplo, uma tentativa de golpe de Estado. No entanto, do ponto de vista da República, o Brasil está capengando. A situação se agrava ainda mais se o governo falhar por conta própria. Os primeiros seis meses de governo demonstraram que a administração federal carece de direcionadores estratégicos capazes de orientar as decisões individuais tomadas pelo Executivo e suas iniciativas em conjunto. Por exemplo, quando se trata de meio ambiente, é difícil conciliar ações que favorecem a produção de carros, a exploração da Margem Equatorial e os compromissos ambientais que colocam o Brasil no centro da política internacional. Além disso, na política externa, sinais contraditórios em relação a ditadores como Putin e Maduro contrasta com a defesa interna da democracia. Nesse sentido, a boa notícia no momento é a visita de Lula a Paris, bem-sucedida em termos de agenda e articulação de ideias o que coloca corretamente o Brasil na arena internacional. A ausência de direcionadores estratégicos amplia a fragmentação no Congresso e aumenta as pautas de entendimento (ou falta dele), ao mesmo tempo em que alimenta a nociva barganha entre as bancadas. É um processo impossível de discernir onde começa e onde termina o interesse verdadeiramente público. Além disso, a democracia requer a perspectiva de sucessão para funcionar, enquanto a ditadura é baseada na ideia de perpetuação do líder supremo. Atualmente, no cenário brasileiro, não se sabe se Lula será seu próprio sucessor, e existe uma alta probabilidade de o ex-capitão que nos governou se tornar inelegível. Com isso, as iniciativas de longo prazo do governo são limitadas pela falta de visibilidade em relação ao exercício futuro do poder. As eleições municipais, marcadas por questões específicas e regionais, podem se tornar um termômetro mais preciso do futuro da política brasileira em 2024. Em resumo, as variáveis políticas no Brasil se tornaram disfuncionais e demonstram, para aqueles que desejam uma avaliação menos marcada pelos fatos diários, que não há condições razoáveis e estruturais para um verdadeiro desenvolvimento com propósitos republicanos. Precisamos parar de torcer e começar a trabalhar em prol da democracia. Evitamos o precipício em relação à legitimação formal dos poderes, mas ainda estamos perigosamente enfraquecendo-a.
sexta-feira, 12 de maio de 2023

Cinco meses

Uma análise fria e sem viés ideológico indica ser difícil propulsionar mudanças concretas no país Após cinco meses da inauguração do novo governo, parece-nos possível vislumbrar quais sejam os seus principais desafios, mesmo que não se saiba o alcance de suas conquistas, as quais dependem da consolidação (ou não) ao longo do tempo. De todo modo, são as possibilidades de sucesso desta administração que originam as maiores dúvidas. A avaliação justa do cenário tem de ser realizada à luz das suas condições iniciais do governo Lula III. A eleição do atual presidente decorreu da consolidação de uma conjuntura jamais vista neste país - se assemelhou à disputa de 1950 entre Getúlio e o Brigadeiro Eduardo Gomes, sendo que naquele caso o caudilho gaúcho venceu por significativa porção dos votos totais. Já a última disputa eleitoral foi entre aqueles que queriam evitar Lula e aqueles que queriam tirar Bolsonaro. A magérrima vitória do candidato petista por 1,8% dos votos válidos foi resultado de uma espécie de "coalizão de momento" sem substantiva avaliação do eleitor no campo das ideias e/ou de interesses. A busca de "proteção" em um candidato em relação ao outro produziu um ambiente plebiscitário sem o componente estrutural e estruturante dos programas políticos e das coalizões partidárias que futuramente conduziriam o governo. Sequer houve "acordos conciliatórios" entre partidos e candidatos (no segundo turno da eleição) que delimitassem claramente para onde o governo iria, caso ganhasse o ex-metalúrgico ou o ex-capitão. Num país com um eleitorado cercado de preocupações concretas de sua vida cotidiana e com 33 milhões de famintos não é de se esperar que uma eleição majoritária possa ser realizada com dentro de parâmetros racionais, conforme imagina certa parcela da elite brasileira. Além de tudo, está claro que o controle social está desmobilizado e sem instrumentos para influir, inclusive porque o Parlamento esconde as reais relações de poder que o faz agir em certas direções. A eleição pode ter salvado o país de uma vitória de radicais, mas deixou a marca indelével da direita (extrema e ideológica) organizada e orgânica, identificada com a feição conservadora de larga parcela da sociedade (52 milhões de votos). Por sua vez, a esquerda é minoritária e incapaz de impor o seu projeto. Neste contexto, a denominada "ala fisiológica" do parlamento, pode oscilar com elevados graus de liberdade pelo meio do corredor entre os dois lados: vezes opera para fazer andar a esquerda governista, vezes cria barreiras ou formalmente a barra. De resto, também se soma à direita, inclusa a extremada. Não há articulação palaciana capaz de ser eficiente ao projeto do governo num contexto tão mutável no parlamento. É claro que se pode apontar ou argumentar sobre os erros (realmente incorridos) de articulação do governo, mas vai longe a ideia de que isso é a causa estrutural do fracasso neste item. Parece difícil a qualquer governo nestas condições extrair quilométrica "eficiência funcional" das votações no parlamento quando deputados e senadores medem por centímetros as oportunidades políticas. O oportunismo não é de ocasião, é um método consolidado. A malformação e as inconsistências parlamentares jogam o país num grau de incerteza muito além do que por ora se comenta. Junte-se a isso a crise institucional. Os eventos de 8 de janeiro, além dos conhecidos prejuízos aos poderes e aos palácios, agravaram ainda mais as distorções das instituições do Estado brasileiro. O Judiciário, em especial, que sinalizava caminhar para um leito mais estreito e pacífico ao exercer as suas prerrogativas acabou por manter e, até mesmo, ampliar o seu papel binário de estabilizador (dos desequilíbrios entre os poderes e as demandas sociais) e desestabilizador (do ponto de vista da democracia formal espelhada na Constituição). Vale dizer que num ambiente de fake news e golpismo a prioridade do Judiciário em agir não é difícil de ser estabelecida. Por óbvio, a denominada "segurança jurídica" corre por uma órbita bem volátil. Do lado do Executivo, as expectativas após as eleições do final de 2022 se moldaram em torno de cinco demandas da sociedade: (i) a ausência de escândalos (sobretudo, fraudes e corrupção), (ii) uma política econômica favorável à base eleitoral de Lula, acrescida pela parcela do bolsonarismo que poderia aderir às iniciativas do governo; (iii) a crença em uma melhor articulação política de Lula (parlamento e sociedade) com resultados mais promissores que o ex capitão; (iv) o controle da inflação e da carestia e (v) atender aos anseios dos mais necessitados, com mais empregos e salários fruto de um crescimento mais acelerado da economia. Após estes cinco meses verifica-se, de forma sumária e geral: (1) O governo restabeleceu com relativo sucesso a conexão política, social e econômica entre os temas políticos (valores democráticos, respeito às instituições, articulação política com os partidos, etc.) e civilizatórios (cultura, direitos humanos, política ambiental, respeito isonômico às minorias, etc.); (2) Lula retomou com sucesso o acesso e a participação na cena internacional. Neste aspecto o ponto negativo é que esta reinserção do país foi feita sem a observação atenta dos limites das possibilidades econômicas e políticas de um país como o Brasil. Ademais, em relação aos temas geopolíticos, notadamente a guerra da Ucrânia, a adoção de uma linguagem diplomática "moral e de valores" (idealista) acabou por limitar as possibilidades de uma ação mais isenta e proveitosa em relação ao conflito; (3) Do ponto de vista econômico, a opção do governo foi em favor da adoção de uma estratégia que conciliasse (i) o fiscalismo responsável e limitado (refletido pelo "arcabouço fiscal"), (ii) o foco na reforma tributária "possível" e na crítica, por vezes mais ácida, em vista do corrente aperto monetário do Banco Central liderado pelo indicado pelo governo anterior. Todas estas iniciativas não foram capazes de reverter as expectativas negativas sobre o desempenho econômico originadas na administração anterior. O crescimento do PIB deve permanecer medíocre neste ano e, talvez, no próximo, sem que existam indícios claros de que a tração do desenvolvimento possa ressurgir; (4) Nas diversas áreas de atuação governamental (energia, tecnologia, infraestrutura, etc.) verifica-se ausência de clareza sobre vetores estratégicos e preferenciais que devem orientar o funcionamento do governo e do Estado. Trata-se de falha grave face a crise financeira do Estado. Também, as declarações e algumas iniciativas do governo e do presidente sobre, i.e., a reversão de privatizações anteriores, mudanças no marco legal do saneamento básico, ataques diretos contra a política monetária e a respeito do estabelecimento de preços pelas empresas estatais causam inquietação sobre a estratégia do governo e o papel da iniciativa privada nos projetos de interesse do país. Este é um tema central que necessitaria ter sido claramente endereçado pela atual administração. Por óbvio, o sumário acima não é exaustivo, mas representa na essência o que foi a iniciativa do governo neste curto período. Será que a combinação dos fatos e temas acima abordados é capaz de levar o país à sua modernização? Uma análise fria e sem viés ideológico indica ser difícil propulsionar mudanças concretas no país pois não existem mecanismos disponíveis para que sejam tomadas as melhores decisões em prol do desenvolvimento sustentado economicamente e sustentável social e ambientalmente. A viabilização do atual governo via a coalizão parlamentar que o apoia formalmente reduziu o "mínimo comum" das políticas a um patamar muito baixo, que sequer é de "manutenção". Há, porém, outro risco, perigoso e já presente na sociedade. Diante da excessiva mitigação e fratura decisória do modelo político brasileiro, crescem as demandas por quebras institucionais, supressão de direitos políticos e adoção de padrões "tecnocráticos" de gestão do governo e uma administração voltada para os resultados (tidos como "superiores ao todo"), excluídos os meios democráticos. Sem maiores adjetivos, a manutenção da democracia depende de movimentos do governo e do parlamento mais convergentes em favor da política, da economia e da sociedade.
segunda-feira, 27 de março de 2023

A democracia vencerá?

Os dados objetivos e a análise subjetiva da evolução da história brasileira nos últimos quarenta anos demonstram que o crescimento econômico do país não ganhou tração que pudesse caracterizar consistente ciclo de transformação estrutural do país. Neste período, vale notar, o crescimento econômico se tornou estruturalmente dependente de transformações tecnológicas e da contribuição do "capital do conhecimento" para drenar capacidades de inovação que proporcionassem o aumento da produtividade. Ao contrário, o Brasil ficou atolado em níveis deploráveis de educação e na raquítica formação de técnicos e cientistas capazes de levar o país para o centro do capitalismo mundial, para citar dois exemplos. Do ponto de vista político, este atraso econômico estrutural brasileiro foi construído concomitantemente ao aprofundamento das características e laços de nossa formação para exercício do Poder Político. À corrupção, ao clientelismo e ao patrimonialismo, outros vícios sociais se juntaram: a continuada e crescente desigualdade social, a ausência de concretas oportunidades sociais, a falta de dignidade humana mínima, o racismo e a desigualdade de gênero. A polarização política recente (desde meados de 2017), a crise institucional que origina inconsistências e confusões funcionais do Poder Estatal, o enfraquecimento das organizações sociais e trabalhistas, o declínio da participação dos salários no PIB, o desemprego e as condições deterioradas de vida no campo e nas cidades completam o quadro altamente preocupante no nosso país. Há de se reconhecer também que, mesmo nos países centrais do capitalismo, este processo está presente e se tornou tendência estrutural. Neste contexto de atraso econômico que faz o Brasil permanecer dentre as nações atrasadas do mundo, juntou-se a fragilidade crônica da representação política. Há poucos anos, o enfraquecimento ideológico e representativo da classe política eram razões para processos arrastados e incompletos de reformas democráticas e econômicas. O processo político formal, tornou o tradicional "retardamento" de reformas em explícito impedimento concreto destas, agora. Não há a menor possibilidade que o atual sistema político brasileiro possa contribuir em suficiência para o desenvolvimento e o progresso do país. Reformas provavelmente acontecerão, mas com a excessiva mitigação em vista de interesses específicos acabarão por produzir ineficácias e ineficiências para sairmos do atraso. Ocorre que diante deste cenário, os movimentos sociais se radicalizaram em turbas que, antes desorganizadas, se tornam a cada dia mais coesas. O conteúdo ideológico rarefeito de antes, se torna a cada dia em movimentos mais consistentes a pregar a ruptura institucional e a adoção de modelos de governo autocráticos e antidemocráticos. As elites, diante desse enfraquecimento, juntam as suas demandas de forma oportunística na tentativa, ainda vã, de reduzir o gap do atraso econômico em relação ao mundo e/ou se inserir nas cadeias econômicas mais lucrativas. Vale dizer que o agronegócio, modernizado e produtivo, ocupa o papel que na República Velha, foi do café: aqui é onde residem os maiores riscos em termos antidemocráticos e autocráticos. Os acontecimentos de 8 de janeiro de 2023 não foram, de forma alguma, o ápice deste processo de deterioração do processo político. Todos as tendências estruturais em prol da radicalização estão presentes e atuantes na sociedade brasileira. A popularidade de Jair Messias Bolsonaro é desses sinais da demanda de parte substantiva da população por um "regime forte". A reação positiva das instituições republicanas, após os eventos de janeiro último, reduziu o tom de voz dos segmentos radicais, mas a impaciência social em relação a "velha ordem" política persiste forte. Também importante relevar que dois modus operandi recentes, amplamente utilizados pelas hostes radicais, permanecem, mesmo que em menor intensidade: (i) os argumentos sobre a ilegitimidade das eleições e (ii) a utilização de notícias falsas ou deturbadas (fake news) e discursos de ódio. Observada a cena internacional sob este prisma, apenas falta a organização de forças paramilitares para que se configure plenamente a vigência de grupos políticos reacionários organizados e prontos para a tomada do poder. No Brasil, o imbricamento parcial das Forças Armadas com grupos radicais é sinal muito preocupante. Esse é o contexto estrutural do Brasil atual: atraso econômico enorme somado a riscos potenciais e imanentes à democracia. A sociedade assiste a tudo com passividade, talvez em função das disfuncionalidades do processo político formal. Face ao que discorrido acima é que deve ser avaliado o desenvolvimento das atividades governamentais até o momento. Parece-me que se faz necessária uma "organização mais estratégica" do governo que permita a existência de um "fio condutor" entre as diversas iniciativas que têm sido tomadas. Provavelmente, o fato de o governo ter sido formado à luz de uma "frente ampla" acaba por desalinhar as iniciativas em vista de objetivos estratégicos maiores. Afora isso, possíveis visões de mundo incompatíveis entre si e entre os vários segmentos políticos (desorganizados), há de se considerar que os vícios sociais da corrupção, do clientelismo e do patrimonialismo persistem em ação dentro e fora do governo. Aqui não me refiro a fatos aflorados, mas às raízes conhecidas da política do Brasil. Por tudo isso, a fixação de ambiciosos objetivos estratégicos precisa seja estabelecida. Por exemplo, a criação de um "plano diretor" de desenvolvimento tecnológico pode ser um dos direcionadores estruturais para o desenvolvimento econômico, não para fazer o PIB crescer, mas para o país progredir, no sentido de se desenvolver holisticamente. Aqui, o Brasil tem na área de energia e de meio ambiente boa vantagem frente a outros países, não resta dúvida. Logo, é possível construir um modelo conveniente e de originação de oportunidades para irmos à frente. Feito este "alinhamento estratégico" as tarefas do governo poderiam ser derivadas em novas tarefas, com mais rigorosa seleção de iniciativas. Por óbvio, trata-se apenas de um "exemplo teórico" para fins deste artigo. Nesse diapasão, a tarefa de construir um orçamento viável se tornaria muito mais nobre do que a elaboração de uma "âncora fiscal" que apesar de necessária e urgente, ao invés de nos assegurar no médio e longo prazo, pode vir a nos afundar no atraso, a despeito da eventual estabilização econômica momentânea. Vale dizer que estes "objetivos estratégicos" podem servir à consolidação de um projeto político menos fragmentado, com a agregação de atores e partidos políticos "soltos" em termos ideológicos para um leito comum de atividade legislativa. Outros órgãos de Estado, como o Banco Central, podem ser convencidos que estes objetivos estratégicos se constituem de facto em saída consistente e estabilizadora, não apenas da taxa de inflação (momentaneamente "de custos"), mas também para as instabilidades políticas e sociais, além das econômicas. A atividade de planejamento (não somente do ministério homônimo) do governo tem de ser engrandecida para dar dinâmica ao país. A estagnação do momento, além de concreta, é conceitual.  Precisa de uma construção politicamente mais sólida e tecnicamente mais robusta. Outro aspecto importante é que para que esta política estratégica tem de ser positiva e construtiva para todos, mesmo que existam "perdedores e ganhadores". Diante da mais absoluta desigualdade social que vivemos, não resta dúvida de que os interesses difusos precisam prevalecer perante os direitos organizados e concentrados. Aqui a liderança política e o convencimento democrático permanente das elites é a tarefa mais importante para fazer entender os riscos enormes que estamos a viver. O Presidente Lula é legitimado pelas urnas para a tarefa. Não precisamos assustar as elites com ameaças e medidas. É preciso que estas participem dos frutos que virão do progresso do país frente à estagnação corrente. Este é um percurso arriscado, mas que necessita ser percorrido. Um "pacto social" no Brasil é inviável do ponto de vista formal. Não teremos um "Moncloa", para usar o exemplo espanhol, porque não temos organização social, política e econômica equivalente para a edificação de uma obra conciliadora de interesses. Todavia, as forças dispersas podem e devem ser atraídas ao centro político por meio da criação de "empatias" com interesses estratégicos que façam sentido no seu conjunto. A democracia no Brasil e no mundo está sob cerrado fogo. As sociedades estão fragmentadas e divididas. Estas vulnerabilidades já foram captadas para fins de radicalização política e para tomar o Poder Político. De fato, os extremos, sobretudo à direita, persistem ganhando espaço, depois de alguns recuos momentâneos. Não tenhamos ilusões a respeito. Os democratas e o governo devem radicalizar positivamente as suas metas por meio de ações estratégicas ambiciosas que aglutinem a sociedade. A desigualdade social é o maior ingrediente a turbinar a radicalização antidemocrática. Precisamos progredir. As inconsistências internas ao Poder Político são uma espécie de conspiração voluntária e involuntária contra a democracia em meio ao nosso profundo atraso econômico.  
"Os acontecimentos da história humana sempre submeteram a duras provas aqueles que querem revelar-lhes a moral."Norberto Bobbio (1909 - 2004)1 Sedimentados os fatos do último dia 8 de janeiro de 2023, bem como, a sucessão dos acontecimentos dos dias posteriores a depredação da sede dos poderes do Estado, verifica-se conclusão inequívoca de que não ocorreu somente um desrespeito ao Estado Democrático de Direito, mas um atentado contra todos os seus elementos mais estruturais. Noberto Bobbio ensina que "o direito é produto do poder contanto que se trate de um poder por sua vez derivado do direito, onde por "derivado do direito" deve-se entender regulado pelo menos formalmente, senão também pelo seu conteúdo". O direito emergente do poder é aquele que autoriza, por meio de uma ordem jurídica, a autoridade sobre este mesmo poder. A turbamulta golpista que avançou e depredou, não apenas um (como nos EUA), mas todas as sedes que representam o poder estatal (Staaltsgewalt), um fato grave que, por sua vez nos leva à reflexão de Hans Kelsen, mais especificamente a nota deste filósofo e jurista sobre a disputa entre o "bando de malfeitores" e a "comunidade jurídica". O jurista austríaco usou a famosa disputa entre Alexandre, o Grande e o pirata para explicar sobre o tema. O comando do bandido tem apenas o sentido subjetivo do comando, uma vez que lhe falta o comando objetivo da norma, da lei. O bandido pressupõe que o seu comando é garantido pela pressuposição de que ele exerce os poderes de uma norma absolutamente soberana que "fecha o sistema". Por que é importante avaliar com profundidade sobre o que ocorreu em Brasília? Somente assim podemos claramente perceber que o que vivemos foi de facto a concretização de uma visão de poder que "fecha" com a de um típico golpe de Estado. Encarar os corridos como "fato isolado" de vândalos é deixar de lado a constatação de que houve "autorização" para que os acontecimentos fossem perpetrados. A autorização mais vil perante o Estado juridicamente constituído. No Estado absolutista valia a máxima de Ulpiano sobre o poder: Quod principi placuit legis habet vigorem. Quando se diz que o imperador tem o vigor (poder) há decorrência imediata que é deste poder que decorre a lei. Tão somente do poder e sem limites. A evolução do processo civilizatório, não apenas no sentido temporal, mas também no sentido da evolução conceitual - nem sempre na marcha reta da história - da Política e do ordenamento jurídico, incluiu a "norma" como originada pelo Poder, mas que objetivamente o limita. Ou seja, a construção do Estado de Direito (Rule of Law) reconhece o Poder como fonte, desde que isso seja limitado por uma ordem de valores (e.g. democráticos) que está necessariamente expresso na ordem jurídica. Não à toa que na história, o maior confronto moderno seja entre o Poder e o direito. A fonte primária (o Poder) por vezes torna os governantes ou aspirantes aos governos estimulados à destruição ou limitação do direito. Aqui vale dizer que, do ponto de vista essencial (ontológico), não há diferença alguma entre a organização criminosa que exerce o poder para cometer crimes contra o ordenamento jurídico e o governante que atenta contra o Estado de Direito. Neste último caso, estamos diante de um criminoso, de um bandido a atentar contra todo o corpo social. Parece-me inegável que Jair Messias Bolsonaro, seus asseclas mais próximos (notadamente alguns militares) e a turba que foi se amontoou ao seu redor, ao longo dos últimos cinco anos (desde a campanha eleitoral de 2017), agiram, enquanto aspirantes ao governo ou no seu exercício pleno, como criminosos que, pouco a pouco, atentaram contra o Estado Democrático de Direito. É certo que larga maioria dos empoderados (e.g. políticos eleitos) e da própria sociedade (sobremaneira os detentores do poder econômico) subestimaram o medíocre ex capitão, por tantas vezes encarado como um figura folclórica e detentora de ampla simpatia do povo. Não foi diferente na moderna e culta Alemanha dos anos 1920, quando um cabo austríaco também foi subestimado. Não precisamos, num artigo como este colecionarmos os muitos, repetidos e graves atentados que o ex capitão cometeu ao longo dos últimos anos. Das suas lives de mau gosto estético e de conteúdo aos desfiles e encontros com o militares, o recado sempre foi claro no sentido de que o seu poder estava limitado pelos poderes constituídos do Estado, sobretudo o Judiciário. Como temos registrado neste espaço, há muito tempo, golpismo e bolsonarismo eram lados da mesma moeda.  Os eventos do dia 8 de janeiro foram, quiçá, inesperados, mas podiam ser pressentidos ao longo dos últimos cinco anos. A sociedade subestimou o personagem, suas pretensões e sua ideologia. A turba chegou inusitadamente, mas sempre este lá. A descoberta de um "rascunho" de um decreto, nas mãos de Anderson Torres com o objetivo de retirar as prerrogativas do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), é prova cabal da natureza do bolsonarismo, além de sua ignorância, inclusive para escrever. Especulo, com elevada probabilidade de acertar, que este pedaço de papel não deve ser a única evidência dos objetivos bolsonaristas. Creio, até mesmo, que em escritórios de certos "juristas" estejam acostados pareceres a sustentar um possível regime autoritário no Brasil - quem sabe isso apareça logo. Digo mais: isto não é novidade, como não foi na edição do AI-5. As consequências dos eventos de Brasília ainda estão a se desenrolar, mas é possível reconhecer que o governo atual ganhou adicional poder concreto que, esperamos, possa usar em favor do país. A legitimidade de quem administra crises e as vence, sempre aumenta. O exemplo de Barack Obama na sequência da crise de 2008, por exemplo, é uma das provas disto. De outro lado, a eventual fragilização do Estado por meio do fracasso de suas políticas, poderá levar a sociedade a fomentar processos de legitimação de poder que não incluam os limites do ordenamento político. Noto que a tarefa de criar políticas sustentáveis e positivas ao distinto povo não é somente da administração do Presidente Lula, mas de todos os poderes da República, cada um nos seus limites jurídicos e institucionais. Portanto, a "harmonia" dos poderes, algo impossível de concretizar e positivar do ponto jurídico é tarefa primordial neste momento. Há notável emergência em relação ao tema. Infelizmente, Jair Messias Bolsonaro não é ator fora do jogo político e talvez não esteja exatamente frequentando os parques da Disney em Orlando na Flórida. Os fatos graves de Brasília requerem dura resposta daqueles que zelam pelas leis, em termos de investigação e punição, o que certamente deve incluir o ex-capitão e alguns de seu círculo patético. A pacificação social não pode incluir aqueles que não propagam a paz. A hora é dos fortes, com a lei na mão. __________ 1 N. Bobbio, Teoria Geral da Política, 2000. P.347 - São Paulo: Ed. Elsevier.
segunda-feira, 2 de janeiro de 2023

Compreender o momento, empreender a união

"(...) a história não é em absoluto um processo, mas uma miscelânea de mudanças caleidoscópicas - algo como nuvens que se juntam e se dispersam de maneira aleatória"1. Dentre as várias possibilidades analíticas que permitem a tomada de consciência sobre a realidade estrutural e conjuntural do Brasil pós-Bolsonaro, talvez, no momento, a forma mais concreta de fazê-lo é reconhecer que os fatos políticos, econômicos e sociais não podem ser caracterizados enquanto "processo". O Brasil está alquebrado e espedaçado em grupos perdidos em meio ao corpo social. A aceitação desta premissa pode contribuir para antecipar a primeira tarefa do governo: criar e dar propulsão a um novo "processo" de desenvolvimento para o país. O país tão fragmentado, sobrestado por tantas narrativas sobre a realidade factual e sem razoável percepção cognitiva e metodológica sobre o que se passa, pode fazer com que o novo governo se perca na condução dos negócios de governo e de Estado. Se há uma herança nítida do ex governo do ex-capitão é a confusão de objetivos permanentes, políticos e econômicos. Basta verificarmos que do lado da economia quis a administração anterior dar vazão concreta às envelhecidas ideias liberais, representadas pelo seu ministro da Economia Paulo Guedes. De fato, o resultado obtido é deplorável: a política fiscal foi esburacada por isenções tributárias que visaram atender às demandas de ocasião (e.g. a desoneração dos combustíveis e do IPI de vários produtos), a política monetária se esmerou a enfrentar a inflação de custos originada pelo câmbio desvalorizado e pela alta dos preços das commodities (e.g. petróleo e alimentos) o que onerou todo sistema econômico com um custo financeiro recorde mundial. A política financeira foi absolutamente condicionada pela busca de apoio político junto ao esfomeado centrão que, em prol de si, dourou das "emendas secretas" à aceitação passiva de um orçamento de 2023 com algo como 150 bilhões de reais de "furos ao teto". De fato, o estranho liberal de Chicago não é reconhecível pelas reformas liberais, mas pela submissão inconteste ao seu capitão e pela destruição da Lei de Responsabilidade Fiscal. Esta lei passou de "ordenamento" político das finanças para a dinâmica dos cortes continuados do orçamento para ajustar a conta e evitar manchas ao currículo do ministro. Esta emergência fiscal durante toda a administração do ex-capitão é a marca que tem de ser superada no governo Lula, prima facie. Ocorre que ninguém pode imaginar que um governo é capaz de dar propulsão ao desenvolvimento com o mero controle da finança pública. Disciplina fiscal é meio e não fim, por óbvio. De toda a forma, não se pode adotar uma atitude blasé quando se fala sobre o tema. A simplificação de atribuir ao gasto público sem teto certas virtudes miraculosas é erro crasso no uso da expressão latina e velhíssima. Estabelecer uma "âncora fiscal" não pode ser um ato de criação espetacular. Tem de ser algo ordinário, óbvio e razoável, como as coisas mais comezinhas da vida humana. Perder tempo e esforço mental na discussão e elaboração sobre o tema pode significar o primeiro fracasso na consecução da "consistência processual" necessária ao novo governo, diante da fragmentação que enfrentará. Melhor investir em outras searas do debate público. O principal caminho a ser trilhado a partir da inauguração do Governo Lula seja o de deixar claro quais são as fronteiras do desenvolvimento que pretende empreender. Aqui a tarefa é perigosa, mas é acima de tudo fascinante e necessária. Afinal, se deixarmos de lado a mentalidade e o complexo de vira-lata de certas hordas das elites brasileiras, o Brasil é dos pouquíssimos países do mundo, senão somente ele, que pode engendrar um padrão de desenvolvimento inovador e que serve na medida ao século XXI e, quiçá, além disto. Num artigo como este não se pode elaborar longamente sobre o que seria o "novo padrão". Todavia, para não ser furtivo em relação à provocação, creio que é chegada a hora do Brasil apostar numa revolução econômica na direção da economia limpa, na sustentabilidade ambiental e social, na adoção da felicidade como conceito e padrão econômico. Provavelmente, haverá aqueles que trarão à baila a longa série de dificuldades para engendrar os processos necessários à consecução desta tarefa política e econômica. Inegável este "pleonasmo" argumentativo", pois afinal construir novas ordens é tarefa difícil mesmo. Todavia, suspeito que, por detrás das mentes que colocam as dificuldades como barreiras anteriores à determinação desta nova construção, reside a submissão ideológica e colonial ao que vige lá fora. Os países centrais do capitalismo atual são, no seu conjunto e individualmente, problemáticos (senão, inviáveis) para construir plenamente essa nova "ordem econômica sustentável". A vantagem comparativa de nosso país é inegável. Não há país algum no mundo com as nossas características de meio ambiente, clima, dimensão territorial, unidade linguística, presença pacífica, fronteiras estabelecidas, litoral aberto e imenso e assim vai. Vale dizer que aqui não se trata de louvação às virtudes fundadoras do Brasil: é a racionalidade analítica que deve nos conduzir por este caminho. Há décadas, a sustentabilidade ambiental e social não era contemporânea aos processos políticos e sociais. Não é o caso de agora. A tomada deste novo caminho pelo Brasil é absolutamente contemporânea com as demandas de nosso povo e da humanidade. Chegou a hora, é certo! Uma escolha como esta pode ser difícil, mas tem efeitos colaterais extremamente benéficos. A anamnese do caso brasileiro nos leva a esta constatação. O Brasil é hoje um país fragmentado internamente pelas divisões de toda a ordem: entre pobres e ricos, pretos e brancos, esquerda e direita, estados do sul e do norte, pró-imunizações e contra elas, evangélicos e não evangélicos e assim vai. Esta é a herança mais maldita que poderia ser legada ao nosso país. O esmero do ex-capitão e seus napoleões perdidos em trucidar as resistências civilizadas ao seu projeto autoritário, levou-nos a esta desunião inédita. Pois bem: é a sustentabilidade a melhor fonte para acalmar as mentes e pô-las para construir e não para destruir e dividir. A nossa vocação para a cordialidade que destrói a coisa pública pode ser, por que não?, a alavanca para aglutinar a sociedade em torno de interesses muito próximos: nossas próprias vidas. No cenário internacional, caótico e sem ordem jurídica e política, o Brasil tem na sustentabilidade o seu único argumento soberano e incontestável. Somos uma potência ecológica e diversa que conversa com a modernidade e que pode ser tratada sem as submissões coloniais aos modelos mentais e políticos de alhures. Toda a gama de informações e tecnologia disponível pode nos levar a engendrar um novo tipo de produtividade, não relacionada à mais-valia sobre o trabalho e a elevação da produção, mas à qualidade de vida, à poupança da natureza, a um novo padrão de tecnologia e à verdadeira transição energética. Neste último aspecto, vale lembrar que o Brasil é o único país do mundo que dispõe hoje de uma matriz energética tão diversificada e útil à passagem do fóssil à sustentabilidade. A mistura de enorme apatia política dos donos do poder e da perigosa cisão na sociedade brasileira, meticulosamente estimulada pelo trágico governo do ex-capitão, será barreira enorme para o sucesso da nova administração do presidente Lula. Não é possível prever ou gerar razoáveis expectativas sobre o país nos próximos anos porquanto a situação é delicada, mesmo que não crítica. Para ter sucesso o governo precisa utilizar da vitória estreita das urnas para alargar a base social que o sustenta. Isso não poderá ser conseguido de forma ordinária: não precisamos recorrer a Winston Churchill para saber que situações excepcionais necessitam de soluções excepcionais. No caso do Brasil, a excepcionalidade não é o autoritarismo tentado pelo ex-capitão e parte dos "generais de pijama" que o cercavam. A excepcionalidade que se pode provocar é o encontro do país com os seus melhores destinos e virtudes, junto aos mitos que fundaram a sua existência, a sua natureza, a extensa terra que rodeia a nossa gente, essa gente que mergulhou numa desunião que conspira contra o seu próprio futuro. A hora é da sustentabilidade. __________ 1 Kracauer, S. in History: the last things before the last. Markus Wiener, 1994, p.160-1: Princeton.
terça-feira, 20 de dezembro de 2022

Governar sem verdades e mentiras sagradas

"Tente viver como se fosse manhã".Zaratustra, Nietzsche  A democracia não é apenas um "sistema" ou "forma" de tornar concreta a política. A democracia pode ser analisada e exercida sob diferentes enfoques vez que, na qualidade de fenômeno social (pólis), permite diferentes angulações sobre a convivência entre os "agentes políticos de determinada sociedade. A necessidade de "sucessão" no exercício do poder político é das mais desafiadoras faces da democracia na atualidade: sem sucessão não há democracia, pois é desta que deriva a liberdade de escolha daqueles que exercem o Poder Político. Sem liberdade a democracia não pode materialmente existir. Afinal, é o escrutínio dentro da dinâmica social que cria as condições para a escolha de quem governa. Por outro lado, a corrupção está entre as distorções mais relevantes da democracia pois que o processo de sucessão pode ser mitigado ou destruído e o escrutínio social passa ser negativamente condicionado pelo envolvimento dos cidadãos com os empoderados - o Brasil sabe bem disso. A primeira derivada da corrupção leva a um interesse público destroçado. Sempre. Os primeiros  e singelos dois parágrafos deste artigo servem apenas para nos lembrar de que o esgarçamento eleitoral de 2022 ocorreu pela polarização entre dois candidatos que expressaram em menor medida a formação de correntes de opinião pública com fronteiras balizadas pela natural diversidade e pluralidade democrática (da esquerda à direita do espectro político) e muito mais a luta por meio do voto (graças!) entre os que acreditaram que a perspectiva de sucessão democrática não poderia ser arrebentada por um governo autoritário e, quiçá, ditatorial ou, face à esta possibilidade, pelos que acreditaram que a corrupção poderia destruir a expectativa de um Estado minimamente republicano. Claro que se trata de uma simplificação que, neste momento histórico de nosso país, faz todo o sentido. (Voltamos aos bancos escolares em matéria democrática). A diferença microscópica de votos entre Lula e Bolsonaro (1,8% dos votos) materialmente não simboliza per se o acirramento da disputa eleitoral. Significa, isso sim!, o fracasso de nossa democracia como expressão de que a neutralização dos "inimigos da democracia" via o voto universal poderia falhar. Não foram poucos eleitores dispostos a trocar a democracia pela ilusão da corrupção derrotada. De outro lado, foram outros muitos que disponibilizaram os seus votos para barrar um regime autoritário. Esta terrível constatação é facilmente identificável por aqueles que vivenciaram a eleição. Deveria sê-lo também pelos que ganharam a eleição, não é mesmo? É certo que os modelos baseados exclusivamente no tal do "mercado" não são fonte infindável de asseguração de que a democracia será sempre vitoriosa. Veja-se o caso da China que se estruturou como uma "economia de mercado", mas de facto é uma ditadura autocrática, dita comunista. O "mercado" pode viver sem a democracia, mas felizmente o contrário não é possível. Afinal, o escrutínio do voto livre repousa sobre direitos fundamentais insuperáveis, como o direito de consumir e investir livremente e no livre trânsito das ideias e expressões culturais. No mundo moderno, a restrição ao mercado decorre dos limites à sobrevivência e preservação da natureza, na maior igualdade social, no respeito às diversidades humanas e do meio ambiente e assim vai. As externalidades modernas tomaram conta de nossas preocupações maiores. A corrupção muito provavelmente não será extinta. Todavia, é obrigação de quem governa mitigar, ou mesmo, eliminar os meios propulsores da corrupção. Há compêndios volumosos que tratam deste tema. É dispensável a titulação de PhD para entender e dar vazão às boas práticas políticas e sociais em prol da redução da corrupção. No sentido do que acima escrevo, em suma, tivemos em 2022 (i) uma escolha de governo com estreiteza mínima de votos em face da polarização política, (ii) a rejeição dicotômica de um candidato em face das práticas de corrupção em suas administrações anteriores e de outro candidato que tentou (e tenta) pregar e agir contra a democracia e (iii) a vitória por uma margem de votos irrisória para justificar a glorificação do vencedor. Os termos da vitória eleitoral do governo vindouro deveriam motivá-lo à uma postura serena, mesmo que arrojada, em prol da renovação da política, das melhores práticas de governo e da inovação criativa e ética no trato da coisa pública. A legitimação da nova administração, do ponto de vista material e não somente eleitoral, depende da criação de excelentes expectativas a começar por aquilo que quase criou uma ruptura política. O combate à corrupção, ao clientelismo, ao patrimonialismo, à timocracia desprovida das virtudes na gestão da coisa pública. Tendo sido à vitória do novo governo promovida pelas suas virtudes democráticas por que as destroçar no reavivamento de seus desvios históricos? Aqui não se faz juízo de valor sobre as razões desta imagem histórica, justa ou injusta, de quem quer que seja. Referimo-nos exclusivamente à necessária percepção de que é preciso atuar naquilo em que o distinto povo desconfia e quer ver corrigido. Vê-se que a formação e estruturação da administração do candidato vencedor carece de cuidados com as cavidades e abismos nos quais pode tropeçar e levar a todos. Mal dizer, a título de ilustração, sobre a necessidade de uma âncora fiscal ou de uma gestão inovadora e escorreita do orçamento não é bom começo para quem desconfia de que o risco-país vai subir e pode estragar a festa da democracia. Mesmo para mudar as linhas mestras de uma política fiscal que se considera superada é necessário buscar apoio na sociedade e justificar a nova ordem fiscal. Se não há sabedoria no tal do "mercado" não pode faltá-la a quem não quer sacrificar a Política face ao tal do "mercado". Da mesma forma, não é bom sinal empoderar políticos e tecnocratas sem que se vislumbre ex ante a possibilidade de estes cuidem bem dos interesses mais profundos e legítimos da sociedade. Frentes amplas na formação de governos não deixam de requerer a estreiteza frente às más práticas com a res publica, bem como, a visão estratégica para que o país saia deste atoleiro econômico, social e político no qual todos estamos metidos. Sacrificar a Lei das Estatais, mesmo que se deseja melhorá-la, não é bom passo na longa caminhada. A perda de poder simbólico é enorme. O tal do "mercado" forma preços e variações de valor a partir de expectativas. A política forma expectativas a partir de fatos. A sociedade está vendo, desde a eleição, os fatos ao tempo em que forma as suas expectativas. Não se pode errar na saída sob pena de jogarmos o país nas mãos dos que estão dispostos a sacrificar a democracia em uma troca injustificada por uma nova ética autoritária. Por fim, creio que cabe relembrar que, nas escolhas dos que vão governar, a ingratidão aos apaniguados talvez seja uma virtude, no uso não-literal da profética e irônica sentença do grande Charles De Gaulle.  Um bom Natal a todos e um feliz ano novo.
quinta-feira, 8 de dezembro de 2022

Não há teto para a inovação

Inovação se tornou mecanismo essencial para combinar apoio da sociedade e das estruturas do Estado. Na superfície da política brasileira vê-se o pesaroso rumo das discussões sobre o orçamento de 2023. Mais que o "teto de gastos" o que está em jogo é a consistência interna e externa da política fiscal e os seus efeitos sobre as possibilidades de desenvolvimento do Brasil. A "herança maldita" do governo do ex-capitão vai muito além da constatação de que a única ferramenta consistentemente usada por Paulo Guedes e seus Chicago caps é a "tesoura" para cortar gastos de forma atabalhoada para, assim, cumprir a Lei de Responsabilidade Fiscal. Se no futuro o "teto" é um risco possível, no presente ele é a própria realidade. Seja qual for o desfecho das discussões parlamentares sobre o "teto", o certo é que as possibilidades econômicas do próximo governo estão sob forte escrutínio face ao desastre econômico deixado pelo desmonte bolsonarista. A conjugação da necessidade de uma (i) regra fiscal crível e efetiva, bem como, de uma (ii) política monetária e cambial que sustente as possibilidades de crescer e desenvolver o Brasil indicam que a saída política para os problemas brasileiros tem de ser robusta. Sabe-se que Lula tem de formar uma frente ampla no Congresso para viver e sobreviver nos próximos quatro anos. De outro lado, a gestão comezinha e banal do poder não levará o país a lugar nenhum: se os meios de se fazer política no Brasil são disfuncionais o que obriga o presidente da República a atuar com base em conchavos, de outro lado, as ambições e planos da gestão merecem conceitos com excelência e operação efetiva. Em pleno século XXI não adianta atuar com base na nossa tradição oligárquica e clientelista. No sentido do que se provoca nos parágrafos acima, é preciso que a nova administração não perca a capacidade de alavancar formas inovadoras para o país. Para tanto, é preciso que uma visão moderna de governo comece a transpassar o dia a dia da administração, dos mecanismos de governo, os sistemas de controles e o estímulo ao desenvolvimento sustentável. O setor público no Brasil está recheado de regras que de facto ainda não protegem o Estado, mas são capazes de enrijecê-lo a ponto de retirar agilidade e flexibilidade, algo incompatível com a modernidade. O maior prêmio de quem atua no setor público é fazer tudo conforme as regras, sem que necessariamente se atinja um resultado ao menos razoável. Assim, nós não vamos a lugar nenhum. É verdade que o clientelismo e a corrupção contribuem em larga medida para que no Direito Público se presuma a má-fé (e não a boa-fé) como princípio que guia as normas. Em lugar de iniciativas modernizantes o Estado contribui para a propagação do atraso. Isso precisa mudar em vista dos desafios do mundo moderno. O caminho da inovação estatal e governamental depende, é claro, da maior ou menor excelência da elaboração sobre o que se deseja fazer. Isto vai além de "programas e propostas" vez que depende de um compromisso primevo com os resultados a alcançar. A título de ilustração, pode-se construir uma série de elementos que podem ajudar a modernizar a ação governamental: (1) A agenda política tem de ser construída à luz da agenda de ações de governo. A identificação entre ambas é a força motriz da transformação processual na forma de agir. (2) A agenda do país tem de ser contemporânea com a dinâmica internacional, num processo contínuo de identificação de oportunidades e tarefas a serem desenvolvidas. (3) As contradições internas e a desorganização política precisam ser diagnosticadas e tratadas para serem alinhadas com os objetivos de inovação do governo. Tão importante quanto as reformas é a adoção de uma agenda prioritária para tal inovação. Reformas positivas com efeitos retardados são menos úteis do que reformas possíveis com resultados imediatos; (4) Agendas inovadoras são muito baseadas na adoção de novas técnicas e tecnologias, as quais em si não têm conteúdo ético e valores políticos e sociais. Assim sendo, toda inovação tem que adicionar tais valores nos seus propósitos. A priorização das camadas mais pobres nestes processos, por exemplo, é essencial. (5) Eliminar as fragilidades institucionais e dar feições modernas ao aparato do Estado é condição sine qua non para compatibilizar desenvolvimento econômico e social em novos padrões. As formas organizacionais e jurídicas das instituições têm de ser revisadas, sobretudo em termos de drives e objetivos. À independência e ao equilíbrio dos poderes do Estado deve ser somada a interdependência de objetivos confluentes entre eles. (6) Um Estado inovador necessariamente tem de ser escoltado por novas lideranças, atualizadas e competentes. Não se trata apenas de tema relacionado ao "estilo" e a "aparência" do primeiro escalão do governo, mas, sobretudo preparadas para os novos formatos institucionais do Estado. Ademais, a capacidade de liderar é essencial ao tempo em que precisam ser empoderados para o exercício do poder. "Diversidades" são necessárias, mas não suficientes para verdadeira renovação da administração. Os elementos acima não são, por óbvio, um rol exaustivo. Representam alguns predicados necessários para que governos se tornem inovadores e inseridos na nova era que vivemos. Neste contexto, sem inovação, a administração do Estado terá crescente carência de desempenho e eficiência. Especificamente no caso do Brasil, país que teve as eleições mais extremadas de sua história, uma das formas para engrandecer a legitimidade política do governo eleito é construir um ambiente público inovador e preparado para elevar a velocidade no atendimento das necessidades sociais e da formulação e execução das políticas públicas de forma mais madura do ponto de vista dos objetivos e, especialmente, dos resultados. Inovar impede que a ação dos agentes públicos e privados seja dicotômica e/ou com objetivos diversos e por vezes não-cooperativos. Com efeito, a fixação comum dos objetivos deriva em mitigação de riscos e menores custos financeiros, sociais e políticos. Num mundo cada vez mais complexo, na existência de crises sistêmicas (e.g. transição energética, mudanças climáticas, rupturas geopolíticas), a inovação se tornou um mecanismo essencial para combinar apoio da sociedade e das estruturas do Estado, notadamente da classe política, para legitimar as ações governamentais o que, por sua vez, minimiza a radicalização dos agentes políticos e da própria sociedade. Para tanto é preciso ir além dos pactos políticos necessários ao exercício do poder e investir em novas lideranças capazes de engendrar equivalente transformação cultural, econômica e social. Estamos no século XXI, para além das (importantes) discussões sobre teto alto ou baixo.
quarta-feira, 16 de novembro de 2022

O "recado" do mercado e a demanda dos excluídos

Economia é uma disciplina social que ganhou contornos científicos conforme foi estilizada ao longo do século passado por modelos com a aparência cada vez mais hermética porquanto matemática se tornou. Todavia, se tem uma coisa certa é que a distância entre muitos temas da disciplina econômica e a realidade deixa muito a desejar. Exemplo evidente diz respeito aos efeitos da quantidade e velocidade da moeda sobre a inflação. Por diversas razões, sabe-se que esta relação não faz sentido há algum tempo, muito embora significativo arcabouço teórico-matemático tenha sido erigido ao redor desta "escola" e os monetaristas tenham adquirido nos anos 1970 ares de profetas. O nosso ministro da Economia Paulo Guedes foi propagador desta ideia que deu de frente com o muro da singela realidade.  Há, porém, certos postulados econômicos que foram sendo consolidados ao longo do tempo vez que demonstraram conexão razoável (mesmo que não plena e perfeita) com os fatos e fenômenos econômicos. Um destes postulados diz respeito à necessidade de equilíbrio fiscal no longo prazo. De forma sumária, verifica-se que o valor presente dos fluxos de superávits primários (resultado da diferença entre receitas e despesas do governo antes do pagamento dos juros da dívida pública) tem de guardar razoável equilíbrio com o endividamento público real (deflacionado pelo nível de preços). Com efeito, se a expectativa for a de que os superávits fiscais futuros cairão, as expectativas serão de aumento de endividamento e consequente incremento do risco de inadimplemento. Há dúvidas se o equilíbrio fiscal tem significativo efeito direto sobre a inflação, mas há certo consenso que as expectativas são afetadas pela percepção sobre a política fiscal o que indiretamente afeta o nível dos preços (inflação). Ora, a despeito de se tratar de relevante ponto de partida para a lógica relacionada às expectativas, é preciso reconhecer que o equilíbrio fiscal, assim como a disciplina econômica, tem natureza política. (Aliás a "economia" perdeu no Ocidente o aposto "política" por causa da disputa ideológica entre marxistas e liberais ingleses vez que os primeiros usavam generalizadamente o termo e os liberais resolveram "extingui-lo" nos seus escritos). Em sendo "político" o tema fiscal, é preciso ter em mente que a formação do superavit (déficit) fiscal depende das escolhas que são feitas pela sociedade, por meio de seus representantes no Congresso Nacional, em relação à origem das receitas e a destinação dos gastos públicos. Em princípio, se espera que tais escolhas sociais intermediadas pelos políticos guardem racionalidade de, pelo menos, duas espécies: (i) que sejam utilizados critérios socialmente isonômicos (critério político de eficiência) entre mais ricos e mais pobres e (ii) que a aplicação e arrecadação dos recursos em despesas e investimentos seja fiscalmente sustentável - o endividamento não pode se elevar de forma desalinhada com o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB). Feitas estas considerações iniciais, vamos aos eventos da semana passada. No mercado financeiro e de capital brasileiro houve uma sólida e forte reação ao discurso do Presidente eleito Lula, quem afirmou em discurso que os gastos sociais (e.g. aumento do salário-mínimo, Bolsa-Família, Farmácia Popular) a serem efetivados via uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) não obedeceriam ao critério do "teto de gastos" que é uma das formas legais de controlar os dispêndios fiscais. Os preços das ações e títulos financeiros despencaram fruto de uma "deterioração das expectativas". Comentários abertos de agentes do mercado tratavam de um "recado" dos investidores ao presidente eleito e ao PT. Parece-me que o tema não está somente relacionado à comunicação de lado a lado, muito embora se possa avaliar que o discurso do presidente eleito tenha sido mais informal que o adequado para alguém que já é o eleito. Teria faltado prudência nas escolhas das palavras e na avaliação das consequências. Todavia, prefiro situar o tema dos gastos sociais no contexto de uma dissonância cognitiva coletiva. Vejamos. Não me parece razoável imaginar que os agentes do mercado financeiro possam inferir que os gastos propostos não são "eficientes" segundo o critério da isonomia, entre os mais abastados e os mais necessitados. Parece-me que a natureza dos gastos é legítima e o seu total (R$ 175 bilhões) não causaria um buraco estrondoso no endividamento público. Afinal, o orçamento do ano que vem está com uma previsão conservadora de 2% de queda na arrecadação federal (excetuando-se estados e municípios). O número é muito pessimista. Se não houver queda o dispêndio a maior cairá a zero. Se cair metade do esperado, o aumento de gasto será de R$ 75 bilhões. Se a gasolina não for mais desonerada (o que isonômico do ponto de vista ambiental), o déficit adicional será de R$ 100 a 120 bilhões. Ou seja, em muitas hipóteses o gasto pode não ser causador de grandes abalos econômicos quando sabemos que o abalo social será enorme. Então tudo bem? Absolutamente, não! Se o tema da sustentabilidade fiscal tem de levar em conta a justiça distributiva, de outro lado, é necessário uma reforma tributária e financeira profunda para criar um ambiente fiscal hígido que permita a ampliação da isonomia social juntamente com a estabilidade do endividamento público.  Para tanto, a revisão de onde (não) gastar e onde (não) arrecadar tem de ser profunda. Isto deve incluir, muito provavelmente, a menor tributação do consumo e do investimento e o aumento da tributação sobre a renda e a riqueza. O Brasil tem de caminhar para uma tributação mais justa e republicana. Sabidamente as relações capitalistas não têm natureza cooperativa. O ganho de um, no geral, significa a perda de outro. Ocorre que, no Brasil e no mundo, faz-se urgente a construção de uma sociedade resiliente, promotora da inclusão, redutora da desigualdade social e atacante das fontes das injustiças sociais. Isto apenas poderá ser efetivo dentro de um ambiente de sustentabilidade social, ambiental e de governança pública e privada. O discurso de Lula pode não ter convergido para a necessária transparência e equilíbrio fiscal. Todavia, o "recado" do mercado não é convergente com o entendimento de que sem um mundo inclusivo e mais justo não haverá desenvolvimento, mas sobrará obscurantismo e barbárie. A dissonância cognitiva me parece evidente e o debate de uma pobreza digna de um Bolsa-Família.
quinta-feira, 10 de novembro de 2022

Frente ampla num horizonte estreito

"Bem sabes: a primeira vez que respiramos o arVagimos e berramos". (Rei Lear, W. Shakespeare) A vitória do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva no segundo turno das eleições abre um novo espaço político para os próximos quatro anos, mesmo que ainda não saibamos com razoável precisão os caminhos que serão trilhados para que seja um governo de sucesso. Do ponto de vista da História muito ainda terá de ser desvendado em relação a este pleito de 2022 e ao processo político nesta última década. Também é essencial que se tenha claro que o denominado bolsonarismo teve expressiva vitória ao aglutinar na extrema direita do Brasil grande parte do centro político, especialmente o PSDB. Os números eleitorais no Estado de São Paulo e a presença de grande número de parlamentares próximos ao ex capitão evidencia o tamanho dos avanços do bolsonarismo, um movimento originalmente desorganizado que ganhou contornos nítidos ao redor dos conservadores, dos evangélicos, de parte relevante das Forças Armadas e policiais e do agronegócio. Há novas identidades que foram criadas no no entorno do atual presidente, com força política suficiente para impor derrotas acachapantes em diversas áreas do eleitorado do Centro-Sul do Brasil. Isso tudo, a despeito do ex capitão ter sido o primeiro incumbente a ser derrotado pós-adoção da reeleição. Na Europa e nos EUA, o avanço da extrema direita se deu em função das mudanças, para pior, na economia e, especialmente, no aumento da desigualdade social pela perda de vigor do Estado do Bem-Estar Social. No Brasil, foi a ausência de mudanças a principal causa do avanço da extrema direita. O diagnóstico inicial do novo presidente em relação ao processo eleitoral e à sua própria vitória foi precisa: o novo governo não será petista porque não pode ser petista. Foi, isso sim, a "Frente Ampla" que venceu a eleição, especialmente se considerada a margem de votos de 1,8% que levou Lula à presidência, a mais baixa de todas as eleições presidenciais - somos um país dividido econômica, social e regionalmente. Neste sentido, não se pode prever que o candidato eleito possa implementar um programa político que se distancie do centro no qual gravitam as forças democráticas que o apoiam. Além do prudencial apoio parlamentar que Lula almeja alcançar, é muito razoável esperar uma condução conservadora na economia o que, por sua vez, conterá a velocidade e profundidade das tão esperadas reformas, sobretudo as sociais. Não haverá mais um "presidencialismo de coalizão", mas um "presidencialismo possível" - o sistema político do Brasil ainda carece de correções estruturais. Do ponto de vista imediato, a permanente campanha eleitoral do atual presidente vai deixar um rombo relevante nas finanças do governo e de terceiros: dos saques dos depósitos do FGTS ao Bolsa-Brasil, passando pelo orçamento secreto e o empréstimo consignado, a conta é imensa, mesmo que ainda não se saiba o porte - seriam R$ 100 bilhões? A adoção de uma "estratégia emergencial" para cumprir o programa de governo, especialmente em relação aos mais pobres, especialmente o Bolsa-Família, Farmácia Popular e aumento do salário-mínimo, requererá enorme esforço político e congressual o qual diluirá adicionalmente o poder político do eleito. No Congresso Nacional não há neófitos quando se pretende amealhar entre R$ 150 e 200 bilhões. A Frente Ampla em formação também permitirá que haja um arejamento, em termos ideológicos, econômicos e sociais, das políticas públicas que serão adotadas. O Presidente eleito tem afirmado que não poderá repetir as suas administrações anteriores. Além das condições políticas serem completamente diferentes daquelas que prevaleciam entre 2003-2010, é evidente que as transformações tecnológicas, sociais, antropológicas, econômicas e assim por diante, alteraram o mundo e o país. Pode-se afirmar com certa segurança que as transformações do eleitorado também derivam deste processo. Dados das pesquisas eleitorais também evidenciam que os desmandos e a corrupção foram fortemente associados ao PT e ao novo Presidente. Esta constatação também precisa se tornar uma referência para a nova administração que terá de ser muito rigorosa em relação aos temas da ética pública, corrupção e quaisquer eventos escandalosos, inclusive em relação ao Erário. A sociedade, justa ou injustamente, é mais intolerante com Lula e o PT em relação ao tema relativamente, por exemplo, a aceitação do "orçamento secreto", "pedalas fiscais" e outros malfeitos ocorridos no curso da administração do atual presidente. Ademais, o "Mensalão" e "Petrolão" foram muito presentes na campanha eleitoral e serão relembrados em caso de novos incidentes no próximo governo. Também requererá muita atenção ao próximo governo a questão da comunicação. A transformação digital na forma e no conteúdo informacional alteraram significativamente a relação do governo com a população, dentre outras tantas. Aqui, será preciso que se pense sobre como se pode pensar a comunicação a partir de novos valores que permitam que a fragmentação dos meios possa atender aos fins democráticos. Se no passado a esquerda intentava a mudança dos marcos da mídia no Brasil, agora a missão política não é regular as grandes redes de televisão, mas convencer os usuários das redes sociais daquilo que é verdade factual em vista das narrativas e realidades criadas. Do ponto de vista psicossocial este tema é vital vez que as redes permitem movimentos de massa jamais vistos, organizados na forma e completamente duvidosos no conteúdo. A mobilização bolsonarista após o resultados das eleições são simbólicas e retratam uma mudança estrutural que terá de ser enfrentada. No campo internacional, Lula terá de reerguer, mesmo que de forma diferente, o policentrismo da política externa, buscando o diálogo junto ao centro do capitalismo mundial (o que ironicamente inclui a China comunista), bem como, transversalmente, alinhando-se às agendas nas quais países emergentes e subdesenvolvidos podem propor e participar do delivery negociado. No tema do aquecimento do clima, do ambientalismo e do comércio internacional, o Brasil tem um lugar para exercer certo poder e isto foi completamente abandonado pelo ex capitão e seus napoleões perdidos. Lula é figura relevante no mundo, sobretudo na Europa. Terá aí o seu melhor espaço para exercer no curto prazo este poder e, quiçá, obter bons resultados. Por fim, a maior dificuldade de Lula será exercer o governo sem que a cisão política do país o atinja e/ou contamine. Para reunificar o país talvez tenhamos de esperar um período bem mais longo e que ainda não é possível estimar razoavelmente. De toda a forma, o novo presidente terá de recolocar as instituições republicanas no lugar e, ao eliminar as disfuncionalidades dos poderes estatais, não incorrer no aumento da insegurança jurídica e institucional. Infelizmente, o bolsonarismo invocou para o seu ringue boa parcela das funções e instituições que tem de zelar pela legalidade democrática. Este processo originou excessos em todos os poderes, o que revela riscos de inconstitucionalidades. Além disso, devemos lembrar que a legalidade pode ser expressa em normas e princípios, mas a harmonia depende essencialmente dos líderes dos poderes. O bolsonarismo deixou a institucionalidade em frangalhos e com ela o próprio país e sua democracia. Lula terá de ser impecável nesta reconstrução republicana, acima de si e de seu governo. A eleição de Lula é uma esperança para o Brasil. Não resta dúvida. Todavia, a vitória agora terá de ir bem além daquela sobre o medo.  
segunda-feira, 24 de outubro de 2022

Como nunca neste país

A polarização não é propriamente entre a esquerda e a direita, mas entre a democracia e o autoritarismo. O resultado da corrida presidencial no próximo dia 30/10/2022 é incerto, não apenas pelo que demonstram as pesquisas de opinião, mas, sobretudo, em função do relativo desconhecimento sobre os efeitos da disseminação das fake news provocarão (ou não) sobre os eleitores somados aos desempenhos dos candidatos nos debates televisivos. A mídia reflete o andamento eleitoral sem que seja capaz de dirimir o tema para que o leitor possa se inteirar sobre as tendências em curso. Observado o ambiente, não é razoável elaborar conjecturas sobre o futuro imediato, sendo possível ter uma leitura interpretativa e crítica sobre o futuro mediato. A grande novidade é que o bolsonarismo conquistou solidez parlamentar e consistência de sua linguagem na campanha eleitoral, mesmo que isto tenha sido construído sobre o pântano das fake news e uma gestão governamental sem grandes conquistas. Conforme elaboramos em nosso último artigo ("A vulnerabilidade tomou conta do segundo turno" ), "o bolsonarismo permanecerá como a frente mais homogênea e preponderante na divisão do poder político". Ou seja, a conquista eleitoral do atual presidente e seus apoiadores é significativa e consistente, mesmo que diante de uma vitória oposicionista no segundo turno. É necessário que o cenário político do país seja avaliado face à "insurgência" do ex-capitão contra o status dos valores políticos, culturais, religiosos e sociais, bem como, a demanda reprimida e interessada das elites por um liberalismo caboclo que estranhamente combina a aspiração de mais liberdade de iniciativa com a preservação de interesses privados dentro do Estado grande. Depois do longo período de reconhecimento amplo dos valores e direitos fundamentais consolidados na Constituição de 1988, ingressamos em 2018 em novo momento no qual os fatos políticos começaram a concretamente conspirar contra os preceitos constitucionais. Da crise institucional que emergiu em meados da década passada passamos a um ambiente de enorme vulnerabilidade nas atuais eleições. O bolsonarismo se oferece e se constitui como uma espécie de antibiótico contra a desordem que de muitas formas ele mesmo cria e dá propulsão. O ativismo deste movimento é bastante saliente, conforme demonstram o vigor das manifestações de seus adeptos. Até o presente, está claro que o ativismo a partir de causas genéricas e desconexas, mesmo que absurdas do ponto de vista de suas causas e consequências, é a principal razão de ser do bolsonarismo. De agora em diante, este movimento político começa a expressar com mais clareza e melhor elaboração as suas antipatias e intolerâncias. Interessante que, se no passado a práxis deste tipo de movimento radical era militar, agora a violência é praticada a partir do denominado mundo virtual e em rede. Dentre as elaborações políticas do bolsonarismo, três se destacam: o moralismo dos costumes, a religião como forma de expressão política e a aversão radical a um "socialismo imaginário". Vale notar que estas construções ou ideias não foram moldadas de forma articulada e com a observância da consistência e coerência internas. Muito menos se identifica a existência de documentos e manifestos a validar e corroborar o pensamento e a ideologia do movimento. De fato, estamos diante de um "sistema de crenças" que usam, ao invés das armas, a difusão de falsas notícias e que pretende subjugar os que não concordam com o seu "modo de ser" por meio da tomada das instituições do Estado. Vale ressaltar que as Forças Armadas foram pouco a pouco submetidas a este processo nos últimos quatro anos, via a intervenção direta ou por meio da sua utilização direta no exercício do governo civil. O contraste da forma de ação política do bolsonarismo frente aos meios tradicionais de coerção autoritária (violência, por exemplo) é que esta coerção não se dá pelo desencadeamento aberto à ordem, mas pelo uso, em geral, da própria estrutura institucional e jurídica. De agora em diante, com o apoio reforçado e consistente no Congresso, o atual presidente terá mais "armas" para agir. Nenhuma dúvida disso. Com efeito, a representação política deve ser minorada pelo engrandecimento da figura presidencial, a supervisão dos poderes aparelhada pelos seus apoiadores e os princípios fundamentais relativizados pelo moralismo, religiosidade e libertarismo caboclo. Os ritos e procedimentos não devem ser completamente institucionais, mas cada vez mais personificados pelo líder do movimento. O reconhecimento dos contornos e cenários acima distintos não parece ser claro aos eleitores do próximo domingo, em geral, e aos do bolsonarismo, em particular. Todavia, os elementos radicais deste movimento estão absolutamente disponíveis: (i) a ofensividade aos seus opositores que não são considerados "adversários", mas "inimigos", (ii) a preferência dos apoiadores por um Estado autoritário, (iii) a não-aceitação do pluralismo e da diversidade da nação, (iv) a valorização da diferença e não da igualdade, (v) a transformação da realidade factual em um mundo virtual estilizado por slogans e narrativas, (vi) a propagação de factoides e mentiras, dentre os principais. Não faz sentido buscar equivalência simétrica entre o bolsonarismo de agora e o fascismo ou nazismo do passado. O Brasil é outro país e o contexto histórico bem diferente. De outro lado, o bolsonarismo não impede que se retire o foco sobre a sua essência de sorte a verificar a sua natureza. Considerada a crise política em torno da democracia ao redor do globo, é revelador o que aconteceu nos EUA sob Donald Trump, por exemplo. Não se trata claramente de um movimento autoritário? Há semelhanças com o Brasil? Da mesma forma, a linguagem do ex-capitão em relação ao STF ou os seus comícios no sete de setembro não aproximam o presidente do que ocorreu no fascismo? A prática de seus nomeados às posições de Estado (STF, MPF, agências, estatais, etc.) e de seus apoiadores no parlamento não é conivente e submetida ao interesse pessoal do presidente?  O uso dos recursos do Estado não serve aos interesses do presidente? Ninguém pode sublimar os erros da oposição, de esquerda ou direita, ao bolsonarismo. Sem dúvida, houve práticas nefastas e graves e em desacordo com a Lei em outras administrações da atual oposição. Ademais, a relativamente frágil oposição ao bolsonarismo e a subestimação das transformações econômicas e sociais do país em seus programas políticos também são causas diretas para o que ocorre neste processo eleitoral e que se propagará nos próximos anos. Ocorre que estamos diante de verdadeiro impasse a partir da formação de uma aglomeração política mais consistente e organizada que pode conspirar gravemente contra os princípios democráticos e os direitos fundamentais - como dissemos acima, este processo pode ser inclusive construído por meio dos procedimentos legais necessários à sua realização. A polarização não é propriamente entre a esquerda e a direita, mas entre a democracia e o autoritarismo. Este retrocesso já contempla o primeiro passo que foi a vitória significativa do bolsonarismo nas eleições parlamentares e o seu efeito será maior ou menor se e quando se formar uma maioria no próximo dia 30 que possa mitigar e eliminar os riscos autoritários. A radicalização ganha dinâmica. É preciso barrá-la.    
sexta-feira, 14 de outubro de 2022

A vulnerabilidade tomou conta do segundo turno

A "crise institucional" crônica e corrosiva já demonstra que há evidente vulnerabilidade dos poderes Por mais que se deseje afastar a ideia de "ruptura" do cenário político-eleitoral, temos de admitir que a possibilidade de uma quebra da ordem institucional é concreta, quiçá provável. Neste sentido, é razoável aceitar que o bolsonarismo teve significativa vitória neste primeiro turno. A quantidade de governadores eleitos e aqueles que provavelmente serão eleitos, somados aos parlamentares sufragados pela força-motriz originária do próprio presidente dão a dimensão exata desta vitória. Por óbvio, o fato de o ex-presidente Lula estar na liderança das pesquisas do segundo turno, bem como, o fato de que vários governadores que o apoiam podem ser eleitos relativizam, por ora e até o segundo turno, a percepção da vitória do bolsonarismo. Mesmo se confirmada a vitória do ex-metalúrgico no segundo turno, o bolsonarismo permanecerá como a frente mais homogênea e preponderante na divisão do poder político. As razões mais visíveis e estruturais (e, também, estruturantes) para o aumento do poder bolsonarista derivam de alguns aspectos. Vejamos. O governo bolsonarista sempre procurou desvincular o poder sobre o Estado das instituições. No primeiro mandato, o ex capitão exerceu o papel de iconoclasta do ordenamento jurídico e institucional do país. Pregou contra o Judiciário, mas também sobre os fundamentos mais cotidianos e essenciais da democracia, do direito à saúde às políticas ambientais, passando pelos costumes e identidades das minorias. O resultado desta estratégia é espetacular: a construção do apoio popular ao atual presidente minorou, senão eliminou, qualquer expectativa de que os valores democráticos e os direitos fundamentais estivessem acima de tudo e de todos. O bolsonarismo não tem limites claros. O efeito da escolha popular em prol do bolsonarismo faz com que a sua estratégia em relação ao propósito de minar o processo eleitoral e limitar os direitos civis, o que inclui necessariamente o aumento de sua influência concreta sobre o Judiciário, tem chance muito razoável de ter sucesso. Se antes, o bolsonarismo foi barrado pela sua própria desorganização política (e.g. fragmentação partidária, falta de um projeto político abrangente), agora pode prosperar enquanto efeito das conquistas eleitorais de 2022. Processos políticos como este, ocorridos em outros países no passado (e.g. Alemanha e Itália) ou no presente (e.g. Hungria e Polônia) ensinam que as mudanças ocorrem sob holofotes moralistas e por uma espécie de guerra cultural que esconde a desigualdade econômica e social sob o manto de uma ideologia que agrega o povo em torno de ideias sem relação com a realidade, digamos, "objetiva". Todavia, sempre vale a ressalva de que processos que são estruturalmente semelhantes nunca se espelham exatamente. O slogan "Deus, Pátria, Família" associado a outros movimentos de extrema direita, tem a proposição clara de dissociar o povo da realidade temporal. No dizer do historiador Timothy Snyder1, "se acharmos que o futuro é uma extensão automática da boa ordem política, não precisamos indagar que ordem é essa, por que é boa, como se sustenta e como pode ser aperfeiçoada". Outro tema relevante da vitória bolsonarista decorre do fato de que, pela primeira vez, o presidente, realmente se interessou pela formação de uma maioria parlamentar. O volumoso apoio que recebeu nas urnas deve tê-lo feito perceber que sua mensagem foi acostada em boa parcela da sociedade. Seus adeptos sufragaram candidatos apoiados diretamente pelo presidente e rejeitou aqueles que ele rejeitou. Está aí a evidência de que a utilidade das fake news é muito maior do que pensava. Ademais, pode-se interpretar que a vitória do ex capitão veio e virá em camadas: primeiro vem o sucesso do proselitismo moral, depois a revolução concreta. Entre estas duas camadas existe a destruição institucional e jurídica, cujo grau dependerá da maior ou menor adesão social num eventual segundo mandato. No campo econômico, o atual presidente está disposto a se acomodar no modelito liberal. Não necessariamente estamos a falar do atual ministro da Fazenda, mas de qualquer força ou pessoa que possa atrair robusto apoio das elites para o seu projeto. Nesse sentido, a desmobilização do Estado enquanto agente econômico essencial é clara. A privatização e desregulamentação não são temas "políticos" no uso clássico do termo. De fato, ganham forte e renovada conotação ideológica. A adesão das elites ainda é tímida na aparência, mas não tão vagarosa quanto se pode imaginar. A reconstrução da imagem internacional do Brasil também pode ser derivada desta ideologia integracionista e liberal. Certamente, os temas sociais e ambientais são limites a esta possibilidade, mas vale não subestimar o pragmatismo das relações entre Estados. Observados e designadas as tendências acima, vamos ao segundo turno. Parece bastante claro que a vitória do bolsonarismo consolidou a ideia de que a disputa do segundo turno não pode ser classificada ou conceituada como sendo homogênea do ponto de vista democrático: as duas ideias de Estado e de governo das candidaturas são opostas do ponto de vista da democracia. O bolsonarismo essencialmente não é legalista. Já há inúmeras provas de que a ordem institucional e jurídica se constituiu em empecilho à realização plena dos objetivos preconizados pelo atual presidente. Não é necessário um rol extenso de exemplos. Basta uma rápida visita aos sistemas de busca da internet. Ademais, os chamados do atual presidente aos seus apoiadores são bastante distantes da via pacífica daqueles que acreditam na democracia - não há uma "lei superior" a conter os instintos políticos (e primários) dos seus agentes, mesmo que parte do eleitorado tenha exercido o "voto útil". Além da questão da legalidade, temos de levar em conta que a "crise institucional" crônica e corrosiva que vivemos já demonstra abertamente que há evidente vulnerabilidade dos poderes diante do bolsonarismo. O exemplo mais evidente diz respeito à contenção responsiva que o Judiciário exerce às fake news e aos abusos nas redes sociais que evidencia que as consequências nefastas destas não são barradas. As próprias manifestações do atual presidente servem mais para esconder a verdade do que revelá-la para o eleitor. A mentira ganhou contornos científicos, de fato. Feitas as breves considerações sobre o que opõe o bolsonarismo à democracia pode-se afirmar com segurança que o que será decidido no próximo dia 30 de outubro é se a vitória do bolsonarismo nestas eleições será parcialmente contida ou se mergulharemos na incerteza e instabilidade institucional. Restará, ainda, tomar conhecimento se o eleitor sabe o que está em jogo. __________ 1 T.Snyder, Na contramão da liberdade (2018), pp.23, São Paulo: Editora Schwarcz.
quarta-feira, 28 de setembro de 2022

Para além das eleições

"Nunca devemos nos esquecer de que o futuro não é totalmente nosso, nem totalmente não nosso, para não sermos obrigados a esperá-lo como se estivesse por vir com toda a certeza, nem nos desesperarmos como se não estivesse por vir jamais". (Epicuro). A eleição do próximo dia 2 de outubro de 2022 ficará marcada como a mais extremada da história brasileira. Não precisamos realizar uma reflexão profunda para adentrarmos a esta conclusão. O resultado do pleito, para além da escolha popular em relação ao primeiro mandatário, mostrará o país cindido social e economicamente e, assim, estará refletida politicamente esta dura verdade. Triste e perigoso cenário. A missão do próximo presidente e dos congressistas será a de atrair o país para o centro político, seja de direita ou de esquerda, conservadores ou progressistas. A tarefa será árdua, observados os três pilares. Vejamos. O primeiro pilar diz respeito à economia. A situação fiscal brasileira tem de ser avaliada não somente com base nos riscos relacionados com o crédito público - a avaliação do "risco país''. De fato, o "teto de gastos" será muito provavelmente ajustado pelo novo governo, não apenas para satisfazer às necessidades conjunturais e fáticas do difícil momento, mas, sobretudo, para satisfazer demandas encomendadas no processo eleitoral ainda em curso. A insatisfação imediata da população, sobretudo dos mais desfavorecidos, implicará em correspondente perda de apoio político no curto prazo, o escasso capital necessário à negociação com a futura base governamental junto ao Congresso Nacional. Se o "tal do mercado" avaliar o rompimento do teto de forma ortodoxa, a frustração será imediata (e errada). A política forja a economia. Não há como fugir desta máxima. De toda a forma, este "furo do teto" não poderá ser o "padrão" da condução econômica. Se o for, a frustração momentânea pode se tornar de fato um risco, cujos efeitos políticos serão graves. Disciplina e boa gestão fiscal são virtudes na concepção e execução da política econômica, mesmo quando a visão dogmática tenha de ser abandonada em certos momentos. Vale lembrar que a próxima administração estará sujeita a um banco central nomeado pelo atual Ministro da Fazenda e o pelo ex capitão, aspecto relevante em caso de vitória de Lula. A taxa de juros no Brasil é a mais elevada do mundo e seus efeitos duvidosos. Todavia, ainda conta com forte apoio no segmento financeiro que "forma a opinião" em relação ao tema. Em caso de inconsistências fiscais, a taxa de juros será usada como amargo e duvidoso remédio contra o Erário esbanjador. O segundo pilar diz respeito aos riscos sociais. A situação é crítica e não deve ser subestimada. A desigualdade em termos de renda e de condições (presentes e futuras) é o mais importante empecilho para o desenvolvimento econômico do país - um erro de avaliação comum é restringir o debate político à economia. A pobreza espalhada e a ausência de formação educacional e técnica das crianças e jovens, tornará o país atolado no seu próprio subdesenvolvimento. Aqui o que cabe ao próximo Congresso e ao futuro Presidente da República é engendrar uma "revolução no campo social". O atraso é enorme e será ainda mais profundo se não houver aceleração das reformas sociais e a adoção de planos ousados nos campos da educação, novos padrões tecnológicos para a incorporação dos jovens à vida profissional, o combate inteligente e determinado à criminalidade, uma boa política habitacional que inclua a erradicação das favelas, a vitalização da saúde e assim por diante. É preciso que o tema social se torne verdadeiramente estratégico e não apenas sujeito às intempéries políticas, especialmente no que se refere às subvenções, por vezes eivadas de interesses politiqueiros e eleitorais. Aqui também cabe o alerta de que a corrupção precisa de enforcement concreto e efetivo. O tema foi muito "batido" na campanha eleitoral, mas nada se falou sobre como enfrentá-la. Trata-se, juntamente com a regressividade tributária, do maior "ruído" do processo econômico. Distorce relações e aumenta custos, além da destruição dos valores políticos e sociais. O terceiro pilar relevante diz respeito à radicalização política do Brasil. Inicialmente cabe dizer que a atração do povo para o "centro político" não pode ser fruto da "pacificação" promovida pelas elites econômicas e políticas. A radicalização, essencialmente, deriva da imensa desigualdade social, da ausência de organização política da sociedade, da falta de educação formal e ética e da deterioração da democracia enquanto "valor" em função da descrença em relação às autoridades e instituições do Estado. Logo, a "pacificação por cima" representa a opção histórica e equivocada do país: acordos políticos que não atacam as causas na raiz. É preciso enfrentá-las para deixar a direita radical sem oxigênio social e político. O atual governo, se derrotado, deixará uma parcela substantiva de radicais espalhados pelo corpo social. É preciso criar empatia democrática e real com este segmento político, sob pena de submeter o país a uma tensão permanente em torno desta radicalização. As dificuldades na Europa e nos EUA são alertas evidentes: a radicalização é global e umbilicalmente relacionada com o aumento vergonhoso da desigualdade social. Também no que se refere à radicalização é preciso voltar à esfera legislativa e verificar se o ordenamento jurídico serve à contenção e repressão das atividades dos radicais. Neste sentido, é preciso retirar da cena as distorções funcionais de instituições, dentre os quais, o Ministério Público, a CGU, a AGU e o próprio STF. A segurança jurídica requer que todos cumpram os seus papéis face ao ordenamento formal, mas também aos interesses materiais dos princípios democráticos e de Direito. O que acima se argumenta, de forma resumida, é urgente. Não se pode enfrentar a crise brasileira sem vigor e sem operar diretamente sobre a grave crise institucional, econômica, social e política. A desorganização partidária e as distorções institucionais, que paradoxalmente evitaram que o ex capitão avançasse no caminho da ruptura democrática, precisam ser sanadas. Não se pode avançar com a quantidade e qualidade dos partidos políticos brasileiros. Ou se faz uma reforma partidária séria, forjada por legítimos interesses da sociedade, ou jogaremos o próximo presidente no mesmo processo político que não intermedia soluções, mas que origina crises, de forma permanente. A sobrevivência de nossa democracia e o desenvolvimento do país dependerão no longo prazo do desempenho do próximo governo. A ruptura institucional tem de ser radicalmente afastada e será preciso que o núcleo estratégico do próximo governo e o Congresso Nacional se unam em prol dos graves desafios. Os votos do próximo domingo não podem ser frustrados. A pena será pesada. Para todos e não apenas para o governo que começa a nascer.