Francisco: Angústia e esperança
terça-feira, 22 de abril de 2025
Atualizado às 07:20
Francisco não desejava veneração, tampouco multidões dóceis: ansiava por consciências despertas, por discípulos que ardessem na inquietação da responsabilidade.
A morte do Papa Francisco (1936-2025), neste 21 de abril, não se inscreve apenas no obituário dos grandes líderes religiosos; ela revela o encerramento simbólico de uma tentativa radical - e ao mesmo tempo terna - de reconciliar a Igreja com os fragmentos humanos que o século XXI insiste em desprezar: os pobres, os invisíveis, os tristes, os que desistiram de esperar. Jorge Mario Bergoglio, o primeiro Papa vindo da América Latina, selou no nome de Francisco uma escolha ética, estética (no sentido cultural) e espiritual - o ascetismo poético de Assis - e assumiu, até o último instante, a missão de reconfigurar a Igreja como espaço de acolhimento, combate e compaixão. Mas não se compreende essa travessia sem confrontar a rudeza de nosso tempo: convulsões que colapsam os alicerces sociais, políticos e econômicos do mundo dito civilizado.
Num planeta embriagado por uma angústia que Kierkegaard1, em tempos remotos, descreveu como o vértice entre a liberdade e o nada - e que hoje se manifesta em epidemias de solidão, desespero e anestesia moral -, Francisco ousou reabilitar a linguagem do amor como ética (no sentido humano) e como salvação (no sentido religioso). Seu magistério não repousa na retórica: há nas suas encíclicas, em seus gestos de proximidade e em sua denúncia da cultura da indiferença uma tentativa de restaurar o sagrado na existência cotidiana - aqui o seu comportamento foi essencialmente jesuítico. Para muitos, ele ofereceu não uma resposta, mas um eco - algo entre um sussurro e um grito - diante do brutalismo do presente.
Com lucidez rara, compreendia que os instrumentos do passado - dogmas, protocolos, hierarquias - eram insuficientes frente aos dilemas do agora. Assim, ergueu uma voz que não temia a modernidade, mas que buscava redimi-la. Em "Laudato Si'", encíclica que se ergue como novo manifesto ético-ambiental, inaugurou a ideia de uma ecologia integral, síntese entre o cuidado com a Terra, a justiça social e o sentido espiritual da existência. "Tudo está interligado": essa frase, que poderia ser banal, torna-se, em sua boca, uma chave metafísica contra a tirania da desigualdade econômica e social e da decomposição relacional.
No espírito do filósofo Jonathan Wolff2 - cuja concepção de justiça não se esgota em igualdade aritmética, mas exige o reconhecimento da dignidade como substância política -, Francisco identifica na exclusão o ponto de fratura da moralidade coletiva. Para ambos, justiça é reconstrução: senão apenas no sentido material, mas também de almas. Eis então um Papa que, mais do que redistribuir, queria restituir; mais que ensinar, desejava escutar. Seu pensamento não é técnico nem diplomático: é um compromisso com a atenção radical. A dor do outro, para ele, não é estatística - é teológica.
Foi também no escuro dos conflitos que sua voz ecoou com mais nitidez. Ucrânia, África, fronteiras militarizadas - a geopolítica não lhe era indiferente. Rejeitou o conforto das neutralidades, nomeou os interesses que movem as guerras e chorou pelos que fogem. Condenou muros, exaltou pontes. A diplomacia, para ele, não era jogo de xadrez, mas gesto de misericórdia.
Internamente, enfrentou os fantasmas da Igreja: o clericalismo, os abusos sexuais e materiais, o autoritarismo e o silêncio cúmplice diante dos fatos que conspiram contra a humanidade. Criou estruturas inéditas de escuta, acolheu vítimas e desafiou a inércia institucional da Cúria Romana. Se não foi além do possível, foi até onde a coragem permitiu. A reforma da Cúria, com sua insistência em descentralizar o poder e incluir os esquecidos no seio do governo eclesial, não foi apenas gesto administrativo: foi uma recusa simbólica do poder como privilégio.
Com relação às mulheres, não se refugiou em negações dogmáticas, nem cedeu às pressões ideológicas. Seu movimento foi o da abertura progressiva, tateante, porém real. Ao nomeá-las para postos-chave, ao abrir-lhes espaço no Sínodo, ao permitir o debate sobre o sacerdócio, iniciou uma transição que talvez outros completem.
No campo das novas tecnologias, mostrou-se profético. Advertiu contra os perigos da inteligência artificial, não em nome do progresso, mas da alma. Denunciou algoritmos que devoram subjetividades e sistemas que transformam o humano em dado. Acompanhava, nesse sentido, pensadores como Shoshana Zuboff3 e Byung-Chul Han4, que acusam o desaparecimento do eu no espetáculo digital. Seu antídoto era o encontro - a presença, o silêncio, o olhar.
Sua opção pelos pobres nunca foi caridade ocasional, mas insurgência ética. Convocou os movimentos sociais, sonhou com uma economia que tivesse rosto, e declarou sem meias-palavras: "esta economia mata". O escândalo de suas palavras foi também sua força. A denúncia do capitalismo desalmado lhe rendeu inimizades entre os poderosos - e veneração entre os deserdados.
Talvez nada resuma melhor sua tentativa de transformação institucional do que o sínodo sobre a Sinodalidade. Um evento que subverteu a lógica vertical, que desafiou o modelo monárquico do poder eclesial. Um processo em que a escuta se converteu em método e a pluralidade, em revelação. A Igreja, neste gesto, ensaiou ser comunidade, e não corte; povo, e não elite.
No teatro do mundo, Francisco recuperou o papel diplomático da Santa Sé com uma tonalidade distinta: não como intermediário, mas como consciência. Participou de diálogos que reaproximaram nações, foi presença em zonas de horror, elevou os sem-nome aos palcos do poder. Sua diplomacia não operava pelo cálculo, mas pela compaixão.
Num tempo em que a democracia oscila, o clima agoniza, os extremos se radicalizam e a esperança parece vulgarizada, sua morte inaugura uma ausência que é também chamada. Francisco foi síntese viva entre tradição e ousadia, entre autoridade e escuta, entre liturgia e mundo. Sua partida é um corte. Seu legado, uma seta.
Francisco não desejava veneração, tampouco multidões dóceis: ansiava por consciências despertas. Sua espiritualidade do encontro é convite constante à insurgência da ternura. Em meio à agonia do presente, sua existência aponta, com sobriedade e vigor, para o que ainda pode ser salvo. Ele nos lembrou - não com palavras de fogo, mas com gestos de luz - que a esperança, para ser verdadeira, deve ser crítica. E que a fé, para ser viva, precisa andar com os pés sujos do mundo.
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1 Recordo esse pensador dinamarquês porque ele considerava a fé como o remédio para o desespero - entendida a fé não como "crença abstrata", mas como entrega existencial ao fundamento divino do ser. Esse conceito se conecta profundamente com o legado espiritual do Papa Francisco, que, diante de um mundo em angústia, propôs uma fé encarnada no amor, na escuta e na dignidade.
2 WOLFF, Jonathan. Ethics and Public Policy: A Philosophical Inquiry. London: Routledge, 2011
3 Em sua obra The Age of Surveillance Capitalism argumenta que as grandes plataformas digitais criaram um regime econômico baseado na extração de dados comportamentais para prever e manipular condutas humanas. Ela denuncia a perda de autonomia e privacidade do sujeito diante de algoritmos opacos e práticas corporativas invasivas. Para Zuboff, esse sistema representa uma ameaça inédita à liberdade individual e à democracia.
4 Han, especialmente em obras como "A Sociedade do Cansaço", argumenta que vivemos sob um regime de auto exploração, onde o indivíduo é pressionado a produzir continuamente, perdendo o silêncio, a contemplação e a verdadeira liberdade interior. Essa crítica ressoa profundamente com a proposta espiritual de Francisco de recuperar a presença, o cuidado e o sentido comunitário. Sua proposta era a de uma ética da presença, do cuidado, da contemplação.