O fim da era do mercado? A nova política trumpista e a distopia global do século XXI
terça-feira, 8 de abril de 2025
Atualizado em 7 de abril de 2025 11:49
Donald Trump é, inegavelmente, o fenômeno mais marcante da política contemporânea, goste-se ou não. Sua ascensão meteórica à presidência dos Estados Unidos em 2016, sua derrota eleitoral e posterior retorno ao poder, revelam não apenas uma personalidade política resiliente, mas a manifestação mais profunda de transformações culturais, econômicas e institucionais que atingem não apenas os Estados Unidos, mas o globo. Ao assumir novamente a presidência em um segundo mandato não consecutivo (o que é historicamente incomum), Trump não retoma apenas antigas diretrizes: quer inaugurar um "novo paradigma", mais claro, mais radical e profundamente marcado por uma rejeição do globalismo, do liberalismo clássico e das instituições democráticas tradicionais. Aqui o mercado, de forma equivocada, não entendeu essa transformação e o viu como um liberal pró-business. Ele não é.
Se o século XX foi marcado por uma divisão ideológica entre capitalismo e comunismo, o século XXI parece caminhar para uma nova "guerra fria": a que contrapõe democracias liberais em crise profunda e "autoritarismos digitais de viés empresarial-tecnológico" em ascensão. A China, a Rússia e outros países mais periféricos como Hungria e Argentina vêm se fortalecendo como modelos de governança baseados em estruturas de gestão verticais, controle informacional e centralização de decisões econômicas e políticas. Trump, com sua retórica e prática, aproxima-se mais desses modelos em oposição à democracia construída na codificada Constituição de 1787 dos EUA, a mais antiga do mundo.
Os recentes aumentos de tarifas contra parceiros comerciais históricos, a retórica nacionalista e populista intensificada e o desdém por instâncias multilaterais revelam um projeto de poder que não visa simplesmente governar o Estado, mas redefinir os fundamentos da ordem global o que, paradoxalmente, pode estimular o declínio da América. Trump tentará inclusive alterar os processos de sucessão no poder central e nas instituições do Estado, coisa inimaginável há poucos meses. Como dissemos acima, essa reconfiguração tem sido erroneamente interpretada, inclusive do Brasil, por setores do empresariado e da direita liberal como um projeto de caráter pró-business. Nada poderia estar mais distante da realidade. Trump não é um liberal econômico. Seu projeto, no cerne, é profundamente político, e coloca a economia a serviço de um projeto político autoritário, nacionalista e antiglobalista.
Desde os anos Reagan, o mundo vivia sob a hegemonia do neoliberalismo. O mercado foi erigido como "regulador natural" das relações humanas. A política, enfraquecida enquanto construção cívica e social, cedeu espaço aos interesses econômicos. O homo economicus tornou-se o sujeito central da história contemporânea. No entanto, com Trump, essa lógica parece inverter-se rapidamente. O que se observa é um retorno da política como força organizadora da vida social. Mas, esse retorno não se dá por vias democráticas ou deliberativas: ele é marcado por uma reconfiguração autoritária do poder, que coloca a economia sob a égide de um projeto conservador e populista.
A ausência de um sistema de mercado que incorporasse os valores sociais e democráticos e mantivesse a legitimidade permitiu que figuras como Trump canalizassem as frustrações populares contra as elites econômicas e institucionais. Por sua vez, o empresariado acreditou que poderia domar Trump. Agora, o presidente norte-americano conduz o mundo rumo à distopia.
Francis Fukuyama1, que pregou o "fim da história" e vislumbrou a consolidação da democracia liberal após a queda do Muro de Berlim, hoje reconhece que subestimou as forças do ressentimento, do nacionalismo e da identidade cultural. Digo: subestimou também a desigualdade que se formava. O trumpismo é a prova concreta de que a história não acabou. Ela voltou com fúria, armada com algoritmos, fake news e redes sociais. A nova guerra é ideológica e intensamente simbólica, mas seus efeitos são profundamente materiais: o abalo sísmico das instituições democráticas, a erosão da cooperação internacional e a ascensão de regimes autoritários ao redor do globo.
Zygmunt Bauman, com sua noção de "modernidade líquida"2, ajuda-nos a entender por que projetos como o de Trump ganham adesão. Em tempos de incerteza, de dissolução de laços comunitários e de angústia frente ao futuro, figuras autoritárias oferecem a promessa de estabilidade. Essa promessa é ilusória, mas eficaz. A "identidade americana" oferecida por Trump não é apenas uma retórica: é uma estratégia de reconstrução simbólica de "pertencimento" e, inevitavelmente, de exclusão econômica, social, das identidades nacionais, racial e política.
A terceira via imaginada pelos teóricos do neoliberalismo, notadamente Anthony Giddens3, e os dilemas da globalização, já apontavam para os riscos de uma política que não dialogasse com as ansiedades reais da população. No Brasil, FHC foi o grande representante dessa ideologia que comprometeu os fundamentos de seu partido, o PSDB. O problema é que, diante do vácuo de liderança moral e intelectual, surgiram soluções simplistas, autoritárias e perigosas. O trumpismo é uma delas; sua exportação já é perceptível na Europa, na América Latina e em partes da Ásia. De outro lado, a esquerda se perdeu na visão de um Estado empresarial e disfuncional. A corrupção ingressou nos governos de esquerda com profusão.
Estamos diante de um processo de transformação, cuja liderança americana, baseada em instituições, valores liberais e cooperação global, pode ser substituída por um império "tribalizado", centrado em vontades individuais e em microconflitos internos. A guerra civil simbólica dentro dos EUA pode ser também um sinal do colapso de seu papel como guia do Ocidente. Enquanto os valores ocidentais enfrentam erosão, muitos países orientais demonstram maior preservação institucional. A Europa esterilizou boa parte de sua cultura, visão política e econômica, e envelhece sob taxas de natalidade sofríveis.
Neste contexto, as decisões tarifárias de Trump não respondem a critérios econômicos da globalização, mas a impulsos políticos, a objetivos de curto prazo de agradar suas bases e punir adversários e, no longo prazo, para forjar o novo paradigma. O mercado global, que acreditava poder contornar Trump, vê-se hoje acuado. A nova ordem é, por ora, imprevisível, volátil e autorreferente. A distopia ocidental não é um futuro distante: ela está em curso. E seu principal motor é a confusão entre liderança e autoritarismo, entre soberania e isolacionismo, entre identidades particulares e a exclusão das maiorias. O grande erro dos analistas econômicos foi subestimar o poder da política quando moldada pelo medo e pela desinformação.
Cabe às democracias do mundo repensarem seus pactos sociais, sua pedagogia cívica e seus mecanismos de proteção institucional. O futuro não está mais nas "mãos invisíveis do mercado", mas nas escolhas muito tangíveis da política. E, como nos lembra Hannah Arendt4, "a política baseia-se no fato da pluralidade humana". Negar essa pluralidade, é abrir caminho para a barbárie - um percurso que o trumpismo parece perseguir. A ética do mercado foi derrotada pela estética do confronto.
_______
1 FUKUYAMA, Francis. O fim da história e o último homem. Rio de Janeiro: Rocco, 1992.
2 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
3 GIDDENS, Anthony. A terceira via: reflexões sobre o impasse político atual e o futuro da socialdemocracia. São Paulo: Record, 1999.
4 ARENDT, Hannah. A condição humana. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009.