A República contra os pobres: A "Operação Sem Desconto"
terça-feira, 13 de maio de 2025
Atualizado em 12 de maio de 2025 13:33
Há momentos na história institucional de um país que condensam, num único fato, a crueza de sua arquitetura social. A "Operação Sem Desconto", deflagrada recentemente pela Polícia Federal, não é apenas um episódio de desvio funcional, um escândalo administrativo ou uma falha técnica nos sistemas de controle. Ela é um espelho opaco no qual a sociedade brasileira se contempla - e não raro, se reconhece. Uma fraude de dimensões sistêmicas, operada em rede por servidores públicos, sindicatos, instituições financeiras e atravessadores digitais, tendo como alvo preferencial idosos, cidadãos e cidadãs analfabetos, pensionistas invisíveis, aposentados pobres. O que está em jogo não é simplesmente o desvio de verbas. É a própria inscrição da desigualdade como motor silencioso das instituições, no caso, de Estado.
No centro do episódio está o INSS - uma das mais potentes metáforas do contrato social brasileiro. Criado como pilar da seguridade, transformado em interface do Estado com seus cidadãos mais vulneráveis, ele se tornou, nesse caso, uma máquina de expropriação. A engenharia criminosa que se estabeleceu para roubar os pobres - e não há outra forma mais honesta de dizer isso - envolveu contratos falsificados, manipulação digital de sistemas, criação deliberada de obstáculos burocráticos e, acima de tudo, a certeza da impunidade. A "Operação", que deveria nos chocar por sua brutalidade, apenas escancara o que há muito tempo se tornou norma: a desigualdade como fundamento da ordem.
Susan Sontag, que tão bem compreendeu os regimes de visibilidade e violência do século XX, talvez visse nesse episódio uma "performance da estética estatal brasileira". Pois o que temos diante de nós não é um desvio, mas um gesto coreografado de institucionalidade. O direito à aposentadoria, no Brasil, é oferecido como um presente precário - uma promessa que chega mutilada, atrasada, atravessada por exigências kafkianas. Ao transformar esse direito em produto de mercado, operado por sindicatos e bancos em simbiose, o Estado performa a mais cruel das ironias: a pilhagem sob o disfarce do cuidado.
A máquina da desigualdade brasileira é sutil e sofisticada. Não se trata de uma violência aberta, de uma ditadura que suprime direitos, mas de uma engrenagem administrativa que funciona precisamente para manter os mais pobres em estado de dependência e vulnerabilidade. É nesse sentido que a corrupção - palavra hoje banalizada, repetida até a exaustão - adquire um sentido mais profundo: ela não é a doença do sistema, mas sua gramática. No Brasil, como bem apontam estudiosos da política em países de baixa renda, a corrupção é uma forma de organização política, um modo de redistribuição invertida, em que os recursos fluem de baixo para cima, dos despossuídos para os operadores do Estado1.
É nesse teatro de horrores que a "Operação Sem Desconto" revela sua potência simbólica. Ao capturar milhares de vítimas (fala-se de 50 mil), muitas delas com mais de 80 anos, o esquema revelou a extensão de uma cultura que naturaliza o sofrimento dos pobres e opera sobre sua ignorância - não como "erro histórico", mas como "oportunidade de negócio". Um país em que a baixa escolaridade e a desinformação não geram políticas públicas de inclusão, mas estratégias de predação, ironicamente numa área de ativismo dos partidos tidos como de esquerda. E isso não ocorre em favelas clandestinas, mas dentro de sistemas regulados, com CNPJs, convênios, termos de adesão, aplicativos oficiais. Tudo devidamente registrado - e invisível. Isso tudo está nos registros da "Operação Sem Desconto".
A democracia brasileira, nesses momentos, parece menos um pacto de direitos e mais um arranjo tecnocrático para manter as aparências da legalidade. A aposentadoria, esse símbolo máximo da dignidade na velhice, é transformada em ativo financeiro, em mercadoria negociável, em moeda de troca para sustentar sindicatos sem representatividade e bancos que lucram com a ignorância. A cada desconto indevido, a cada assinatura falsificada, uma camada a mais é acrescentada à estrutura de iniquidade que sustenta o edifício republicano: a segurança jurídica também é um produto elitista.
Talvez, então, a pergunta central não seja "como isso foi possível?", mas "por que nos surpreende?". Afinal, a desigualdade sempre foi a política pública mais bem-sucedida do Brasil. O que a "Operação Sem Desconto" faz é oferecer um mapa - incômodo, perturbador - da normalidade institucional brasileira, dentre outras tantas, vale dizer. E nesse sentido, o combate à corrupção não pode ser apenas uma operação judicial. Ele exige uma desconstrução radical da cultura política, do imaginário social, da arquitetura legal que transforma direitos em mercadorias e cidadãos (principalmente pobres) em alvos.
A literatura econômica chama atenção para os mecanismos de captura institucional. Quando uma organização pública é dominada por interesses privados, diz-se que ela foi "capturada". No caso do INSS e das instituições financeiras conveniadas, há algo mais grave: o próprio algoritmo foi capturado. A lógica de funcionamento dos sistemas, em vez de prevenir fraudes, as facilita. O risco moral (moral hazard) - conceito clássico da economia - se dissolve, pois os operadores do sistema têm certeza da inércia ou da ineficácia da fiscalização.
Essa constatação não é nova. Desde os estudos clássicos sobre o patrimonialismo latino-americano, sabemos que as instituições públicas frequentemente se organizam para atender aos interesses dos que detêm poder econômico, e não para promover justiça social.
Nesse contexto, a omissão estatal deixa de ser passividade e passa a ser técnica de governo - impressiona que a demissão do Ministro da Previdência foi acompanhada pelo rompimento político com o governo no Congresso. Sem cargo, sem apoio.
O gesto de pensar a corrupção para além do seu enquadramento jurídico - como sintoma, estrutura e linguagem - nos convida a deslocar o olhar da norma para o abismo que sustenta a própria legalidade. É nesse ponto que o pensamento de Jacques Derrida2 particularmente em seu texto "Força de Lei: O Fundamento Místico da Autoridade", revela-se pertinente. A corrupção, na chave derridiana, não é a simples transgressão da lei: ela é a exposição das fissuras do próprio fundamento do Direito.
Derrida parte da ideia inquietante de que todo sistema jurídico é sustentado por uma violência originária, uma força inaugural que funda a legalidade ao mesmo tempo em que a excede. Essa força - que não é nem legítima nem ilegítima - é o que permite à lei existir. Trata-se de uma violência anterior à existência da própria lei, um gesto de instauração que jamais se justifica por si mesmo, pois se funda sobre um "fundamento místico", um "salto de fé institucional". Ao instaurar a lei, esse gesto inaugural marca o limite entre o justo e o injusto, mas sem jamais poder se explicar completamente. O Direito, portanto, sempre carrega consigo um rastro de arbitrariedade.
No caso da "Operação Sem Desconto", essa reflexão ganha uma gravidade particular. O sistema jurídico que deveria proteger o aposentado foi precisamente o instrumento utilizado para violá-lo. Os descontos consignados foram processados "legalmente", por entidades autorizadas, com base em contratos "digitais" cuja origem jamais foi verificada. Os sistemas de auditoria interna, os protocolos bancários, os convênios firmados com sindicatos - tudo se deu dentro da moldura formal do direito. E, no entanto, o resultado foi a espoliação sistemática de centenas de milhares de brasileiros vulneráveis.
O que Derrida nos ensina é que essa contradição não é um acidente. Ela é estrutural. A lei, ao se pretender neutra e universal, esconde os dispositivos de poder que a fundam. A justiça, diz ele, é o "outro do direito" - uma promessa irrealizável, uma aspiração que escapa a toda codificação.
Se a justiça é impossível - porque está sempre além da norma, do cálculo, da equivalência - então a única maneira de nos aproximarmos dela é reconhecendo essa impossibilidade. Trata-se de um dever infinito: fazer justiça aos injustiçados sabendo que ela nunca será plena. Essa é a "ética da responsabilidade infinita". Aplicada ao contexto da corrupção previdenciária, ela exige mais do que auditorias e reformas pontuais. Exige uma refundação do modo como concebemos o cuidado com os vulneráveis, a relação entre Estado e cidadão, entre administração e dignidade.
É difícil falar em futuro quando se escreve sobre ruínas. Mais ainda quando essas ruínas não são vestígios arqueológicos de um passado superado, mas estruturas vivas que continuam a operar, a lesar, a humilhar. A "Operação Sem Desconto" nos colocou diante de uma evidência inescapável: a esfera pública brasileira - suas instituições, seus sistemas, sua promessa de proteção - encontra-se em colapso moral. E esse colapso não se deu subitamente. Ele foi lento, planejado, administrado. Uma ruína progressiva, disfarçada de normalidade administrativa.
O que resta, então? Como lidar com o irreparável? Como se reconstrói a confiança em um sistema que traiu, de forma repetida, silenciosa e violenta, aqueles que mais dependiam dele?
Não se trata, evidentemente, de um desafio apenas técnico. Auditorias, reformulações de convênios, modernização de sistemas, tudo isso é necessário - mas não é suficiente. O que está em jogo é o ethos do Estado. Sua concepção de cidadania. Sua capacidade de reconhecer a dignidade dos que o sustentam com tributos e expectativas. É preciso, antes de tudo, romper com a lógica da indiferença.
1 Não faltam estudos que correlacionam a corrupção coma desigualdade e a pobreza. Permito-me citar duas: GUPTA, Sanjeev; DAVOODI, Hamid; ALONSO-TERME, Rosa. Does Corruption Affect Income Inequality and Poverty?. Washington, D.C.: IMF, 1998 e PANDE, Rohini. Understanding Political Corruption in Low Income Countries. CID, Harvard University, 2007.
2 DERRIDA, Jacques. Força de lei: o "fundamento místico da autoridade". São Paulo: Martins Fontes, 2007