Lições de Zohran Mamdani para o Brasil Fragmentado
quarta-feira, 2 de julho de 2025
Atualizado em 1 de julho de 2025 07:54
A democracia contemporânea ocidental vive um paradoxo: nunca se produziu tanta riqueza e tanto desencanto foi originado no seio das sociedades. Entre avanços tecnológicos que prometem progresso infinito e descolado das realidades sociais de evidente justiça distributiva, as instituições democráticas e representativas veem-se atacadas por dentro e por fora. É nesse turbilhão que a recentíssima vitória de Zohran Mamdani nas primárias do Partido Democrata em Nova York1 adquire força de metáfora - e, mais do que metáfora, de manual de sobrevivência para políticas sociais e econômicas em tempos de ceticismo radical.
Filho de imigrantes, inspirado pelo socialismo democrático, Mamdani costurou uma colcha de retalhos identitários transformada em tecido político tangível e não fragmentado politicamente. Sua campanha nasceu nas calçadas do Queens, nutrida por milhares de conversas porta a porta; alimentou-se de micro-doações potencializadas por um programa de matching público que multiplicava por oito cada contribuição de até duzentos e cinquenta dólares; floresceu quando as demandas mais prosaicas - aluguel que cabe no bolso, transporte gratuito para quem ganha pouco, salário-mínimo municipal de trinta dólares a hora - foram afinadas em linguagem de urgência moral em tempos de trumpismo. Ao fim, não se tratava de retórica sobre a democracia, mas da experiência material de quem a habita. Não é apenas uma sutileza eleitoral, diga-se. Foi a linguagem que venceu sem os truques da mídia social.
Essa virada concreta guarda ressonância com os interessantes diagnósticos de Thomas Carothers e Brendan Hartnett2 para quem o retrocesso democrático deriva menos da suposta falha em "entregar resultados" e mais da captura das "regras do jogo" por parte das denominadas elites predatórias. O paradoxo resolve-se quando se percebe que a entrega necessária não é qualquer entrega: é aquela que modifica a vida cotidiana antes que a dinâmica dos que detêm mais poder se instale. Mamdani prova que uma agenda sobre o custo de vida numa cidade como NYC pode servir de antídoto ao cansaço sistêmico face aos discursos ideológicos (e vazios, por vezes contrafactuais).
Enquanto isso, na União Europeia, o Parlamento empenha-se na construção de um escudo democrático para blindar eleições, combater desinformação digital e proteger o pluralismo midiático. O "European Democracy Shield"3 mostra que a democracia, em sua fase de incerteza algorítmica, depende de coalizões cívicas heterogêneas capazes de responder com rapidez a ataques difusos. Há uma emergência de um novo eixo de competição política - democracia versus autoritarismo - que atravessa os antigos contornos ideológicos e aprofunda uma polarização afetiva capaz de corroer qualquer ponte deliberativa e, portanto, concreta4. A travessia democrática não se dará apenas pela reforma institucional, mas pela reinvenção do vínculo entre Estado e cidadão. O "panfleto" não tem sentido se não tocar o cotidiano do eleitor.
No Brasil, vincular-se ao cidadão tornou-se operação cada vez mais rara. Com trinta partidos na Câmara dos Deputados e uma constelação de coligações fluídas, o Governo ensaia projetos de reforma tributária, auxílio social atualizado, política industrial verde; todos naufragam na aridez de uma aritmética legislativa que substitui convicções por emendas orçamentárias. A derrubada parlamentar do decreto sobre IOF expôs a fragilidade de uma coalizão negociada no varejo. Falta coerência, falta narrativa, falta pertencimento do sistema político. O "mérito" dos temas esmorece no seu retrato fluido e leviano. Simples assim.
É aqui que Mamdani torna-se método: ele oferece um roteiro para reconstruir o terreno político não na cúpula, mas na base. O primeiro passo é restituir a centralidade da experiência material: falar de aluguel, comida, ônibus, salário. O segundo é financiar a política por meio de contribuição cidadã, multiplicada por subsídio público, garantindo transparência e autonomia diante de interesses empresariais onerosos. O terceiro - talvez o mais difícil - consiste em transformar a militância de rua em inteligência digital, cruzando cadastros participativos, assembleias de bairro e plataformas de mobilização que convertam indignação em distribuição detalhada de tarefas.
Do ponto de vista institucional, os relatórios transatlânticos oferecem pistas complementares. Se nos Estados Unidos a reforma democrática centra-se em voto antecipado, registro independente no distrito e financiamento popular5, a União Europeia volta-se para a proteção do espaço informacional. Ao Brasil cabe articular ambas as dimensões: aprimorar as regras do jogo representativo - cláusula de desempenho partidário real, fidelidade programática mínima, incentivo a doações individuais via Pix com exposição instantânea - e, simultaneamente, proteger a esfera pública de enxurradas de desinformação que exploram nossas desigualdades digitais. Isso, é claro, tem de nascer de uma maior organização social onde o todo valha mais que o particular.
Não se trata, porém, de transplantar instituições como se fosse possível trocar de pele sem afetar ossos. O voto preferencial que tanto ajudou Mamdani a herdar votos de segunda opção não existe nos marcos brasileiros dominados pelas alianças formais e nem sempre verdadeiras, segundo turno eleitoral e pelo quociente parcialmente proporcional. O que se pode importar é a "cultura de coalizão" que o voto preferencial favorece: acordos programáticos construídos sem renunciar a identidades, mas dispostos a subordinar "vaidades de candidatos" às "metas palpáveis" da sociedade.
Os ditames europeus contra a manipulação informacional também encontram equivalentes tropicais. A aprovação, por exemplo" do que seria um "Observatório Multipartidário de Integridade Digital", inspirado no Democracy Shield, poderia monitorar campanhas automatizadas, rastrear financiamento suspeito em tempo real e impor sanções graduais às candidaturas que transformam a mentira em arma estratégica.
Nada disso ganhará vitalidade se o cidadão permanecer espectador. Zohran Mamdani não venceu porque expôs diagnósticos sofisticados sobre captura institucional; venceu porque fez o eleitor sentir que, ao doar vinte dólares, estava comprando um pedaço tangível de futuro. No Brasil, a política é financiada majoritariamente por fundo partidário e emendas, e não por participação direta e limitada em quantidade. Um programa de matching público, multiplicando por cinco cada contribuição de até duzentos reais, acompanhado de uma plataforma que publique nomes e valores em vinte e quatro horas, teria dupla virtude: reduziria a dependência de grandes doadores e devolveria ao cidadão uma parcela de direito deliberativo.
Hemorragia democrática não se estanca apenas com reforma de gabinete que prestigia "donos de partido". Ela exige reforma de consciência. Para isso, políticas sociais e econômicas precisam nascer de laboratórios comunitários que testem soluções antes de escalá-las. Ensaiar "projetos-piloto" de subsídio a creches, por exemplo, geraria evidências sobre impacto e custo-eficácia, antes de replicar nacionalmente. Este é o método empírico defendido por centros como o Brookings Institution e perfeitamente adaptável à realidade fiscal brasileira.
A lição derradeira é que não existe atalhos normativos capazes de suprir a carência de laço social. A democracia, ensina a literatura sobre retrocessos democráticos, desmorona paulatinamente quando os cidadãos deixam de considerá-la parte de sua identidade moral². Mamdani reconectou identidade e democracia ao falar de teto, transporte, salário. Os relatórios europeus fazem o mesmo ao proteger a tal da "verdade factual", sem a qual não há diálogo. O Brasil, para escapar do ciclo de trinta anos de promessas natimortas, deve combinar o fio material - políticas que afetam imediatamente a mesa e o bolso - ao fio simbólico - mecanismos que reafirmem a dignidade de participação.
Quando o governo federal, seja qual for, imaginar novos programas, precisa articular-se a frentes comunitárias, não apenas a bancadas partidárias. Precisa traduzir metas em aplicativos de consulta periódica. Precisa prestar contas em linguagem clara sobre cada centavo do orçamento. Precisa, sobretudo, oferecer ao cidadão a experiência de coautoria, sem a qual a política seguirá parecendo espetáculo de casta fechada.
Ao encarnar essas premissas, Zohran Mamdani deixou de ser apenas uma curiosidade da maior cidade dos Estados Unidos e tornou-se espelho de nossos dilemas nacionais. Sua campanha oferece ferramentas adaptáveis - participação granular, financiamento popular, agenda de impacto cotidiano - que, combinadas às advertências e às prescrições dos estudos modernos sobre democracia6, podem enriquecer o progresso social e econômico brasileiro, tornando-o não promessa de gabinete, mas prática de rua.
_______
1 AP NEWS. Mamdani declares victory in NYC Democratic primary. Nova?York, 24 jun. 2025. Disponível aqui.
2 CAROTHERS, Thomas; HARTNETT, Brendan. Misunderstanding democratic backsliding. Journal of Democracy, v. 35, n. 3, p. 24-37, 2024.
3 Disponível aqui.
4 Vide um estudo interessante sobre esse tema: GESSLER, Tobias; WUNSCH, Natasha. A new regime divide? Democratic backsliding, attitudes towards democracy and affective polarization. European Journal of Political Research, 2025 (online first).
5 SOZAN, Michael. An American democracy built for the people: why democracy matters and how to make it work for the 21st century. Washington, DC: Center for American Progress, 2024.
6 Vide, a título de ilustração: V-DEM INSTITUTE. Democracy report 2025: 25 years of autocratization - democracy trumped? Gothenburg: University of Gothenburg, 2025.