COLUNAS

  1. Home >
  2. Colunas >
  3. Política, Direito & Economia NA REAL >
  4. O complô contra o Brasil: Democracia e as tarifas de Trump

O complô contra o Brasil: Democracia e as tarifas de Trump

segunda-feira, 14 de julho de 2025

Atualizado às 10:55

O tarifaço é real. A história que contaremos sobre ele ainda é imaginária. 

Na noite de 9/7/25, às 21h47 em Washington, Donald J. Trump tornou público um memorando breve e inquietante: cinquenta por cento de tarifa sobre todas as exportações brasileiras, a vigorar trinta dias depois, salvo se o governo Lula recuasse na "perseguição judicial" ao ex-presidente Jair Bolsonaro1. O eufemismo transformava comércio em chantagem e convertia tarifas em senha de resgate para acusados de golpe de Estado.

Tal como Philip Roth anteviu em The Plot Against America2 (o Complô contra a América), no qual o herói da travessia do Atlântico Norte Charles Lindbergh, imaginariamente o presidente dos EUA no lugar de Franklin D. Roosevelt, desloca os EUA para a beira do abismo sem suprimir formalmente a Constituição. A medida de Trump parece um roteiro já escrito. O Departamento de Estado norte-americano, ao invocar a Seção 232 da Trade Expansion Act, emoldurou o gesto como questão de segurança nacional, assim como Lindbergh justificara ficcionalmente o pacto com Adolf Hitler. O romance de Roth começa com cenas triviais - Newark, bairro operário, cozinha judaica - para depois revelar o maquinário da erosão. Do mesmo modo, a crise brasileira principiou na venda de aeronaves, nas cotações do café, da celulose e do suco de laranja, índices cotidianos que mascaravam um projeto de rearranjo político.

Diz-se que a tarifa atinge cerca de 11,4 % das exportações brasileiras3. Percentuais, contudo, ignoram o trauma: sete pontos evaporados no Ibovespa no dia seguinte, o real rasgando a linha dos R$ 6,10 e relatórios flash prevendo chuva ácida sobre a dívida soberana4. Se, como ensinava Keynes, a economia é filha das expectativas, a tarifa funciona como chicote invisível - e não a mão invisível que os liberais imaginam. Trump foi visto como um liberal quando eleito, cá no Brasil. Vê-se que não é.

Max Weber descreveu a dominação carismática que suplanta a racional-legal5. O anúncio, em horário nobre, mobilizou o carisma plebiscitário de Trump, que atravessa fronteiras sem passaporte. Deputados bolsonaristas trataram-no como um aviso para o país. Quando a burocracia se curva ao carisma - seja ao de Trump, seja ao de Bolsonaro -, deixa de ser contrapeso para converter-se em "correia de transmissão". Não à toa a reação dos mercados foi a que se viu.

Raymond Aron definira a política internacional como "jogo sem árbitro"6. Seis décadas depois desse vaticínio, o jogador mais forte trucou as regras e imprimiu baralhos falsos. O objetivo não era comércio, mas salvar aliados de investigações criminais, borrando a fronteira entre diplomacia e intromissão judicial. Brasília, por instinto realista, já tinha começado no encontro dos BRICs na última semana a "diversificar riscos": conversou com Pequim sobre liquidação em renminbis (a moeda chinesa), reaqueceu o dossiê Mercosul-UE e cortejou a Índia como sócia tecnológica em fertilizantes verdes. Ao abusar do poder, os EUA, via Trump, corroem a própria autoridade: parceiros em potencial começam a indagar se aliança não passa de coleira.

Oswald Spengler enxergava o declínio como rigidez cultural7. Há algo de spengleriano no protecionismo dos anos 2020: a potência que pressente o crepúsculo recorre a políticas do século XIX - tarifas, muros - como quem veste armadura antiquada. Uma pena ver os EUA nesse caminho. O Brasil corre o risco do espelhamento: combater Trump imitando Trump, incorrendo na "pseudomorfose" que copia formas alheias sem absorver espírito. Esperamos que não. Cair nessa é um erro crasso.  

Arnold Toynbee oferecia antídoto contra o niilismo: sociedades sobrevivem quando transformam desafios em inovação moral-institucional8. A resposta brasileira precisaria, por exemplo, compor uma tríade: reindustrialização verde, fortalecimento das instituições anticorrupção, ativismo multilateral que proíba a instrumentalização comercial para intimidar processos judiciais.

Enquanto analistas debatem estratégias, setores sentiam o golpe. A Flórida consome 38% do suco de laranja brasileiro; a tarifa redirecionaria navios para Rotterdam, gerando excesso na UE e, possivelmente, margens negativas aos citricultores. O Vale dos Sinos, principal polo calçadista do Brasil, perderia 18 % das exportações e deixaria 260 mil empregos sob risco. Fertilizantes especiais, nicho em que o Brasil exporta tecnologia de microencapsulamento, veriam a Califórnia - principal compradora - fechar-lhes a porta. São exemplos dos efeitos de Trump contra o Brasil.

Do ponto de vista jurídico, acionar a OMC parece inútil: desde 2019 o Órgão de Apelação está paralisado. Quando o direito perde força coercitiva, a política e o poder bruto voltam sem pedir licença.

A guerra de narrativas não tardou. No X, #TrumpNosDefende duelava com #TarifaÉChantagem; influencers ultraconservadores pregavam boicote contra empresas que repudiaram a medida. O algoritmo, amoral, prioriza a indignação. Sontag notou que o imaginário de massa ama a estética da catástrofe: "vemos o pior como espetáculo e consumimos a ruína como sobremesa"9.

Manchetes de todo lado: nos subterrâneos do Congresso Nacional em Brasília, o "Agro" divulgou nota "em defesa de solução negociada" - a tarifa fere seu próprio bolso. A bancada evangélica, menos sensível ao fluxo de contêineres, viu chancela moral para denunciar "globalismo". Governadores do Nordeste enxergaram oportunidade de atrair indústrias sedentas de câmbio competitivo. O MST, a CUT e o Greenpeace lançaram campanha "Soberania + Floresta = Futuro", exigindo que retaliações financiem reflorestamento e requalificação industrial. Toynbee chamaria isso de "experimento de criatividade moral".

O risco-país avançou 120 pontos e as seguradoras encareceram prêmios. Todavia, o venture capital green-tech saudou o câmbio depreciado. Eis o "paradoxo spengleriano": o crepúsculo de uns é alvorecer de outros. O IPEA estimou perda potencial de 0,6 ponto no PIB de 2026 caso não houvesse redirecionamento de exportações10.

No STF, ministros sinalizaram que a ofensiva tarifária reforçava a importância de um Judiciário impermeável a pressões estrangeiras. A Comissão de Relações Exteriores instalou CPI sobre "interferência externa"; advogados citaram a Foreign Corrupt Practices Act (FCPA) para discutir lobby ilícito dos emissários de Jair Bolsonaro nos EUA. Nos corredores, respirava-se atmosfera que lembrava - guardadas proporções - a angústia da família Roth questionando se valia confiar na Suprema Corte do Presidente Charles Lindbergh.

A cultura não ficou à margem. Rappers lançaram a faixa Tarifas & Tretas; cineastas anunciaram documentário que conecta a tarifa de 2025 à Operação Brother Sam de 1964 (ai! ai! ai!); poetas slam11 ironizaram a "infância diplomática" brasileira. Sontag (cito de novo) defendia que o intelecto precisa de "olhos radicais" capazes de ver o familiar como estranho: o choque de reconhecimento - o herói americano convertendo-se em antagonista - produz fissuras no espelho colonial.

História oferece manual de emergência. Smoot-Hawley (1930)12 inflamou a Grande Depressão; Helms-Burton (1996) extraterritorializou sanções a Cuba, irritando aliados; o Convênio de Taubaté (1906) inflou artificialmente o preço do café até a bolha de 1929. O denominador comum é a miopia: distorções deliberadas geram ramificações inesperadas. O mundo, lembrou Susan Sontag (de novo), "é fotogênico para quem aprecia ruínas".

Se a tarifa empurra o Brasil a diversificar mercados, a Amazônia torna-se coringa estratégico: fonte de créditos de carbono, soberania alimentar e biofármacos. Mas a exploração sustentável exige governança que transcenda ciclos eleitorais - uma aposta de longo prazo que pode converter o revés em trampolim. Esperemos!

No plano simbólico, há escolha. Sontag (mais uma vez) ensinou a saborear a ironia sem ceder ao cinismo. O medo, quando estetizado, anestesia e, metabolizado, vira força crítica. O Brasil não precisa negar sua vulnerabilidade. Deve exibi-la como premissa para reinvenção. Contra o medo, ironia! Contra o complô, vigilância crítica!

Cenários prospectivos variam: na trajetória básica, o PIB cede 0,6 p.p., mas a reforma tributária avança e o desmatamento cai 12%, o investimento estrangeiro sobe. No cenário pessimista, tarifas expandem-se para aço e etanol, efeitos sobre os negócios nos portos e a nota de crédito cai dois degraus. Tudo é especulação, ainda. Está claro que tudo é obscuro!

O tarifaço é real. A história que contaremos sobre ele ainda é imaginária. Se, como sugere Toynbee, a criatividade é filha do desamparo, o Brasil tem diante de si a chance de redigir um capítulo menos submisso. A democracia, ainda que manquitola, conserva energia insuspeita: basta que instituições, sociedade civil, citricultores e geeks do hidrogênio encontrem ritmo comum. Se isso ocorrer, revisitar-se-á 9/7 como data inaugural de uma virada: a tarifa, convertida em peça de museu ao lado de Smoot-Hawley, lembrará aos visitantes que o nacionalismo econômico é paixão passageira - e que o complô contra o Brasil foi abortado pela obstinação de quem se recusou a dobrar o joelho.

__________

UNITED STATES OF AMERICA. Letter from President Donald Trump to President Luiz Inácio Lula da Silva. Washington, DC: The White House, 09 jul. 2025.

ROTH, Philip. The Plot Against America. New York: Houghton Mifflin, 2004.

3 ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DO COMÉRCIO. Relatório Estatístico de Comércio 2025. Genebra: OMC, 2025.

REUTERS. Brazil stocks drop, real rebounds after Trump's 50?% tariffs. 10 jul. 2025.

5 WEBER, Max. Economia e sociedade. Brasília: Editora UnB, 1999.

6 ARON, Raymond. Paz e guerra entre as nações. Brasília: Editora UnB, 2002.

7 SPENGLER, Oswald. O declínio do Ocidente. Lisboa: Presença, 2001.

8 TOYNBEE, Arnold. A Study of History. Oxford: Oxford University Press, 1934-1961

SONTAG, Susan. Styles of Radical Will. New York: Farrar, Straus and Giroux, 1969

10 IPEA. Nota técnica n.º78/2025: Impactos tarifários sobre o PIB brasileiro. Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 2025.

11 Poetas slam são autores e intérpretes de poesia pensada para performance ao vivo em competições chamadas poetry slams. Nesses eventos, cada participante tem geralmente 3 minutos (sem música nem adereços) para declamar um texto autoral diante de um público que, logo depois, atribui notas - quase sempre de 0 a 10 - à apresentação. Vence quem obtiver a maior pontuação média nas várias rodadas (N.A.).

12 Smoot-Hawley Tariff Act (Lei Tarifária Smoot-Hawley) foi um pacote de aumentos tarifários aprovado pelo Congresso dos Estados Unidos e sancionado pelo presidente Herbert Hoover em 17 de junho de 1930. Foi feita para proteger fazendeiros e pequenas indústrias norte-americanas em meio à queda de preços agrícolas pós-Primeira Guerra Mundial. Tornou-se símbolo da tese "empobreça o vizinho" e é frequentemente citado - inclusive neste artigo - como advertência sobre como protecionismo descoordenado pode aprofundar crises econômicas em vez de resolvê-las (N.A.)