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Globalização em metamorfose: Brasil em jogo

quinta-feira, 24 de julho de 2025

Atualizado em 23 de julho de 2025 14:32

No Brasil, a perda de fé em instituições é amplificada quando gestos tarifários externos sancionam as vulnerabilidades internas.

O rumor de que vivemos o epílogo de uma época paira como neblina insistente sobre discursos políticos, relatórios corporativos e conversas em gabinetes diplomáticos. Fala-se em fim da globalização com o mesmo misto de cansaço e expectativa com que sociedades anteriores, especialmente no início do século XX, evocavam a decadência de seus impérios. Entretanto, o que se desenrola não se assemelha a um colapso teatral, e sim a uma metamorfose: a antiga globalização - alimentada pelo pressuposto de que cadeias longas, padronização regulatória incremental e disciplina multilateral formavam um horizonte, digamos, quase "natural" - dá lugar a uma "interdependência fraturada", seletiva, hierarquizada e passível de instrumentalização coercitiva, ainda mais quando parte da maior potência militar do mundo, conceito sintetizado na expressão "interdependência armada"1.

A política tarifária recente dos Estados Unidos sob Donald Trump cristaliza essa transição: tarifas deixam de ser um "dispositivo técnico", tipicamente defensivo e confinável em anexos estatísticos e assumem "função dramatúrgica e espetaculosa", coreografia que comunica simultaneamente para dentro da opinião pública dos EUA (eleitorado saturado de frustrações distributivas de renda e riqueza) e para fora (parceiros, rivais e atores intermediários que devem internalizar a mensagem de contingência)2. A tarifação universal, ou a ameaça de torná-la universal por meio de alíquotas de base, seguida de escaladas e descidas graduais ou acentuadas, substitui a previsibilidade por camadas de incerteza deliberada - cenário em que o valor de esperar se eleva, conforme a lógica de investimento sob incerteza real opcional3. O "protecionismo performático" de Trump difere do protecionismo clássico porque se alimenta mais da teatralidade da ameaça do que do resultado imediato das alíquotas, reposicionando mentalmente os agentes econômicos de forma volátil.

A economia internacional entra, assim, em fase em que redes globais tornadas em alavancas de coerção4. O Brasil, situado perifericamente em cadeias de maior densidade tecnológica tal como modelado pela "Nova Teoria do Comércio" e pela geografia econômica5, absorve essa transformação de modo enviesado: não é alvo principal de contenção estratégica, mas carece de "massa crítica de inovação" para negociar exceções de força própria, abrindo risco de "reprimarização funcional" - vamos ficar somente no "agro"? A aparente irrelevância geoeconômica converte-se em variável ambígua: ameaça de irrelevância cumulativa ou chance de reposicionar-se numa arquitetura de resiliência de cadeias. Ou seja, se ficar parado o bicho pega se correr pode escapar!

Quando ameaças tarifárias se articulam às narrativas sobre disputas políticas internas brasileiras, instrumentalizando episódios judiciais, a fronteira entre diplomacia e lawfare comercial torna-se permeável, reforçando a "performatividade populista". Emissários informais, como Eduardo Bolsonaro e outros parceiros que buscam protagonismo em solo norte-americano inserem-se no campo da "paradiplomacia e da diplomacia subnacional", e podem ter, não subestimemos jamais!, efeitos graves, como já se viu (parcialmente). O perigo para o Brasil é aceitar esse script personalista em vez de dirigir energia à construção de capacidades e políticas de Estado coerentes com a tradição de sua diplomacia, no caso a "política externa independente", traçada nos anos 1960 por Santiago Dantas e que necessita de urgente modernização.

As cadeias de produção dispersas, como a brasileira, dependem de horizonte temporal estável para serem rentáveis. Ao impor incerteza escalonada, o protecionismo performático implode a previsibilidade exigida por agendas de upgrading industrial, elevando o prêmio de risco e reduzindo investimento de longo prazo. Não é o nível isolado da tarifa que produz o maior dano, mas o caráter contingente do regime - um "imposto de volatilidade" difuso. A imprevisibilidade atua como tributo oculto que desloca capital de inovação para estratégias de proteção. Sem contramedidas, instala-se reprimarização: dependência reforçada de commodities e erosão da diversificação produtiva6.

O discurso legitimador das tarifas se enraíza em frustrações acumuladas: desigualdade, captura corporativa, desindustrialização regional - elementos diagnosticados por críticas à globalização assimétrica7 e reprocessados pela retórica populista que promete restauração de justiça recíproca. A universalização tarifária é apresentada como nivelamento moral, ocultando os efeitos nas cadeias onde valor é adicionado em múltiplas jurisdições. Com isso, difundem-se estratégias empresariais defensivas, encurtando o horizonte de inovação porquanto o acesso às tecnologias e insumos diminui. Isso é uma cilada e tanto. Não podemos cair nela.

As lentes sociológicas da "modernidade líquida"8 e da corrosão do caráter pessoal face ao "novo capitalismo" vigente replica-se no macro regime comercial instável. A precariedade alimenta cinismo institucional generalizado no mundo, abrindo espaço para atalhos identitários populistas: Make America Great Again!

No Brasil, a perda de fé em instituições - alimentada por escândalos, judicialização, sensação de seletividade social e política - é amplificada quando gestos tarifários externos sancionam as vulnerabilidades internas. O risco de "culto invertido", em que o antagonista estrangeiro se torna eixo explicativo onipresente, desvia foco de métricas concretas de capacidade econômica (inovação, densidade tecnológica, eficiência logística, integridade ambiental). Nosso atraso cresce, essa é a verdade. Não cabem discursos populistas.

A urbanização desigual e a vulnerabilidade de periferias metropolitanas, descritas por análises críticas da cidade global e da expansão de bolsões informais, intensificam impactos assimétricos: choques tarifários atingem cadeias intermediárias, comprimindo encomendas a pequenas firmas e inibindo qualificação. Sem política de reconversão (bioinsumos, manutenção de energias renováveis, manufatura aditiva), acelera-se também o atraso regional. Isso ainda não é visível. Será.

A menor relevância estratégica do Brasil na agenda central de competição sistêmica abre janela de oportunidade para nichos: minerais críticos intermediários (na transição energética), bioeconomia tropical, insumos agro de baixo carbono, química verde - domínios cuja demanda por fornecedores confiáveis e rastreáveis cresce. A literatura sobre resiliência de cadeias pós-choques e redundância estratégica destaca a busca por diversificação para mitigar riscos de concentração excessiva. Temos de inovar!

Concretizar essa oportunidade requer inteligência tarifária e regulatória permanente: monitoramento de ameaças tarifárias, investigações, padrões emergentes e barreiras não tarifárias, modelagem de elasticidades setoriais, projeções de impactos sobre clusters e cadeias, tradução desse radar em dashboards públicos para coordenação tripla (Estado -setor privado - academia). Sem isso, respostas seguem reativas e fragmentárias. É preciso que o país se reorganize profundamente. O caminho alternativo é o atraso contínuo. De resto, só conversa vazia.

A diplomacia deve aprofundar-se verticalmente (parcerias com estados norte-americanos, câmaras de comércio, sindicatos) e horizontalmente (universidades, laboratórios, think tanks e redes técnico-científicas), gerando interdependência funcional que eleve o custo político de medidas punitivas indiscriminadas de fora. A persuasão desloca-se da retórica generalista para demonstrações de impacto concreto (empregos preservados, metas climáticas facilitadas, estabilidade de suprimento). "A união faz a força".

O obstáculo estrutural interno é o personalismo: narrativas que equiparam defesa nacional à autopreservação de lideranças desviam energia de reformas institucionais. O antídoto é arquiteto de políticas industriais orientadas - plataformas habilitadoras e missões com métricas claras, em vez de subsídios difusos - a China já ensinou isso. A literatura contemporânea de política industrial recomenda instrumentos focados em externalidades dinâmicas: laboratórios de prototipagem, sandboxes regulatórios (como no caso do sistema financeiro do Brasil), normas abertas de dados, mecanismos de avaliação com sunset clauses9. E assim vai.

O componente ambiental não é adorno reputacional, mas eixo estruturante: transição de métricas volumétricas para métricas de intensidade (emissões/tonelada, rastreabilidade de origem, circularidade) e construção de credibilidade por certificações auditáveis.

A estratégia de capital humano é peça da resiliência: formação técnica dual, residências tecnológicas aqui e fora, reconversão contínua dos especialistas. Sem esse pipeline adaptativo, importam-se e exportam-se capacidades e reforça-se dependência. Essencial que as universidades sejam transferidas para o âmbito do Ministério da Ciência e Tecnologia e, assim, se acoplem ao setor produtivo mais facilmente.

Politicamente, agendas de médio prazo sobrevivem quando pluralizam beneficiários cedo: redução aferível de prazos aduaneiros via digitalização, certificações ambientais reconhecidas, mais céleres e bem avaliadas em mercados-chave, seleção transparente de clusters prioritários (não de "empresas campeãs"), acordos internos regionais estratégicos (entre estados mais pobres e mais ricos, e.g.). Essas entregas iniciais criam coalizões de defesa antes que interesses adversos e ilegítimos capturem o processo.

A "interdependência armada" dos EUA estreitaria fatalmente margens de países médios. Mas, vale lembrar nem todos os segmentos têm a mesma sensibilidade estratégica, ainda mais num país de economia fechada como o Brasil. Mapear a relevância estratégica permite carteira de apostas em empresas onde confiabilidade técnica e baixo custo são valiosos e que não incomodam a concorrência (e.g tecnologias moleculares). A estratégia recusa tanto a ilusão de autarquia plena do Estado no controle das políticas industriais quanto a resignação primário-exportadora, tentação de um liberalismo infantil que subsiste no Brasil. Equilíbrio é essencial em matéria de políticas industriais.

A metamorfose do Brasil exige preparação disciplinada: resistir à simetria teatral da provocação protecionista, metabolizar as ameaças em aceleração reformista e coordenar desenho institucional com experimentação criteriosa e efetividade contínua - chegou a hora de uma agenda mínima entre as parcelas políticas da sociedade brasileira. A confiabilidade relacional entre os poderes da República converte-se em ativo estratégico difuso, mas decisivo. Não é possível mais operar no varejo e cada um puxando pro seu lado. Caso contrário, o país fracassará.

Se o Brasil trilhar essa rota, poderá transformar "perifericidade" herdada em "centralidade funcional" discreta: não protagonismos personalistas de confrontos, mas fluxos sustentáveis investimentos em produção, dados e conhecimento. Alternativamente, a persistência em indignações episódicas e improvisos manterá o país como espaço de manobra alheia, agora não somente dos EUA, face à globalização que de fato existe. A janela de reconfiguração - na qual riscos e oportunidades se sobrepõem - é finita. Aproveitá-la implica disciplina acima de slogans, e imaginação pragmática capaz de converter críticas pretéritas em engenharia institucional robusta para um futuro melhor. Vamos sair das cadeiras e nos movimentar em favor do país. Chega de atraso.

__________

1 ARRELL, Henry; NEWMAN, Abraham. Weaponized interdependence: how global economic networks shape state coercion. International Security, Cambridge, v. 44, n. 1, p. 42-79, 2019.

2 MOFFITT, Benjamin. The global rise of populism: performance, political style, and representation. Stanford: Stanford University Press, 2016.

3 O conceito de risco empresarial é básico em processos decisórios de governança corporativa e não se sustenta em cenários imprevisíveis. Esse conceito precisa ser incorporado rapidamente à diplomacia. N.A.

4 FARRELL; NEWMAN, op. cit.

5 KRUGMAN, Paul. Increasing returns, monopolistic competition, and international trade. Journal of International Economics, Amsterdam, v. 9, n. 4, p. 469-479, 1979; KRUGMAN, Paul. Increasing returns and economic geography. Journal of Political Economy, Chicago, v. 99, n. 3, p. 483-499, 1991.

6 CIMOLI, Mario; DOSI, Giovanni; STIGLITZ, Joseph (org.). Industrial policy and development. Oxford: Oxford University Press, 2009

7 STIGLITZ, Joseph E. Globalization and its discontents. New York: W. W. Norton, 2002.

8 BAUMAN, Zygmunt. Liquid modernity. Cambridge: Polity Press, 2000.

9 Trata-se de provisões nas normas de caducidade programada ou cláusulas de extinção automática para forçar o reexame de normas temporárias. Muito aplicáveis em estratégias de políticas industriais. Evitam que poderes excepcionais provisórios virem permanentes. N.A.