Democracia em jogo: O STF, a retórica trumpista e a identidade brasileira
segunda-feira, 4 de agosto de 2025
Atualizado em 1 de agosto de 2025 12:31
O Brasil, no limiar de mais um ciclo de novos paradigmas no cenário internacional, vê-se compelido a lidar com um conjunto de pressões simbólicas, discursivas e econômicas oriundas de seu tradicional parceiro hemisférico: os Estados Unidos da América. Essas pressões, intensificadas com o retorno de Donald Trump à presidência norte-americana, deveriam representar mais do que divergências políticas ou comerciais: o Brasil deve redefinir a sua identidade internacional no campo das narrativas globais que ora prevalecem.
A ascensão e consolidação de discursos nacional-populistas nos EUA tem reconfigurado os marcos simbólicos por meio dos quais países como o Brasil são identificados. Recentemente, o presidente Donald Trump e seus aliados têm mencionado o Brasil não apenas é visto como "ameaça comercial", mas como exemplo de "autoritarismo judicial", em especial por meio do enquadramento do Ministro Alexandre de Moraes como suposto alvo de sanções previstas pela Lei Global Magnitsky. Simultaneamente, medidas tarifárias contra produtos brasileiros reaparecem no vocabulário do protecionismo trumpista, com alegações de "concorrência desleal" e "ameaça à soberania econômica americana".
Esse cenário lança luz sobre a centralidade da política internacional como uma arena de disputa simbólica. Longe de ser apenas um campo técnico de negociações diplomáticas, a política externa se revela como prática discursiva na qual identidades nacionais são produzidas, legitimadas ou desestabilizadas. O governo do presidente Lula, parece atento a essas dinâmicas. Todavia, o momento exige que o Brasil se reposicione como ator racional, democrático e multilateral, em oposição às tentativas de enquadramento que o associam à corrupção, ao autoritarismo ou à disfuncionalidade institucional. A tarefa, portanto, não pode ser populista.
As medidas adotadas por Trump - sejam elas econômicas, como tarifas, ou discursivas, como o apoio à aplicação da Lei Magnitsky contra autoridades brasileiras - visam não apenas a interesses estratégicos pontuais, mas à construção da imagem do Brasil como um "outro autoritário"1, cuja existência justifica tanto ações punitivas quanto o reforço da identidade democrática e moralmente superior dos EUA. Frente a isso, a política externa brasileira deve operar não apenas na defesa de interesses econômicos internos (coletivos e particulares), mas também no plano simbólico, ao disputar os significados de conceitos como democracia, liberdade e soberania. O momento exige sofisticação discursiva.
A abordagem cabível para esse discurso é "pós-estruturalista", especialmente no que se refere à identidade internacional dos Estados a qual não é concebida como um dado estático, mas como uma construção discursiva continuamente negociada em arenas globais. A partir das contribuições de teóricos como Michel Foucault, Jacques Derrida, David Campbell e Lene Hansen, examinaremos como os discursos moldam fronteiras simbólicas entre o "nós" e o "outro", legitimando práticas políticas e hierarquias internacionais.
É em torno de três eixos principais que a disputa do Brasil gravita no momento. Primeiro, a retórica de Trump sobre o Brasil como "ameaça econômica" para a qual a instrumentalização cabível à América é o nacionalismo protecionista, algo absolutamente destoante com a tradição do país. Segundo: a tentativa de enquadramento jurídico-discursivo de Alexandre de Moraes como símbolo do autoritarismo latino-americano, à luz da Lei Magnitsky. Terceiro: a resposta do governo Lula, que se concentra em acusar o ataque americano à soberania e às instituições internas, notadamente o Judiciário.
Os documentos oficiais, os discursos de líderes, os atos diplomáticos e as coberturas midiáticas mostram claramente a "disputa simbólica" entre o Brasil e os EUA. Mais adiante veremos os marcos discursivos predominantes, que corroboram essa disputa e as dicotomias estruturantes (democracia vs. autoritarismo, civilização vs. barbárie), além das estratégias de posicionamento identitário do Brasil no cenário global.
Aqui se pretende contribuir para que fique evidenciado como a soberania e a legitimidade internacional não se esgotam em sua dimensão política-jurídica-formal, mas se realizam sobretudo na arena simbólica e discursiva. Em tempos de crescente volatilidade geopolítica e de disputas de narrativas, compreender a política externa como espaço de produção de significados é fundamental para preservar a autonomia estratégica e a integridade diplomática do Brasil. É hora de mudança e não de reprodução de discursos do passado. Vejamos.
O pós-estruturalismo emergiu (como agora) como uma corrente crítica que desestabiliza categorias fixas e tradicionais no campo das relações internacionais. Em oposição a teorias racionalistas e realistas2, que assumem a existência de interesses objetivos e identidades estáveis dos Estados, o pós-estruturalismo compreende que esses elementos são construídos discursivamente e não apenas a partir de "interesses racionalizados ou objetivos". O foco recai sobre os modos como o poder opera por meio da linguagem para produzir verdades, identidades e fronteiras entre o "eu" e o "outro". Trump é um ser essencialmente pós-estruturalista, está claro, apesar de suas raízes nas teorias realistas-racionais baseadas no nacionalismo econômico.
O conceito de Michel Foucault3 (em 1951) de que o discurso é a prática que produz "saber e verdade" e desloca a análise do conteúdo para os efeitos de poder que a linguagem exerce. Para Foucault, o discurso é performativo: ele não apenas representa o mundo, mas o constitui. Foucault sustenta que a produção de verdade está vinculada às relações de poder, e que tais verdades autorizam certos sujeitos e práticas (Trump, e.g.) enquanto marginalizam outros (BRICS, e.g.) No campo da política internacional, isso implica reconhecer que a legitimidade de um Estado, ou a acusação de autoritarismo, não decorre apenas de seus "atos objetivos", mas do modo como esses atos são enquadrados discursivamente.
David Campbell4, aplica esse arcabouço foucaultiano à política externa, argumentando que os Estados produzem sua identidade nacional por meio da exclusão de ameaças externas. Para Campbell, a segurança nacional não é uma resposta a ameaças objetivas, mas uma prática discursiva de identidade. O "outro" perigoso - frequentemente identificado por raça, autoritário ou subdesenvolvido - é necessário para definir o "nós" democrático e civilizado. A política externa norte-americana, segundo Campbell, é um exercício contínuo de manutenção dessa identidade hegemônica por meio da produção de alteridades. (Um exemplo dessa visão foi a "Guerra ao Terror" e o discurso sobre as "Armas de Destruição em Massa", ambos recheados pela alteridade com o mundo islâmico.).
Lene Hansen5, aprofunda essa abordagem ao demonstrar que a identidade nacional não é apenas construída na política externa, mas atravessada por gênero, raça e memória histórica. A ameaça, assim, não é um dado objetivo, mas um efeito da construção discursiva que articula certos eventos, atores e práticas como incompatíveis com os valores do "nós". Em contextos de guerra ou conflito, os discursos de segurança operam delimitando o inaceitável, o bárbaro, o autoritário - criando assim as condições para a ação militar, diplomática ou punitiva por outros meios. Discursos são consequentes, portanto.
Essas abordagens convergem em um ponto crucial: a política internacional é uma luta simbólica, em que se disputa o direito de nomear, interpretar e representar o mundo. Nesse sentido, a "soberania" deixa de ser apenas um atributo jurídico e passa a ser também uma "conquista discursiva" - é preciso ser reconhecido como soberano (e.g. Lula). A política externa, portanto, é uma prática performativa de identidade, em que os Estados não apenas perseguem interesses, mas dizem quem são, o que representam e quais valores encarnam.
No caso brasileiro, essa dimensão simbólica é central. O país historicamente oscilou entre imagens de "democracia tropical", exótica e cordial, e de percepções de corrupção endêmica, instabilidade econômica e, agora, autoritarismo. Essa ambivalência torna o Brasil particularmente vulnerável a enquadramentos negativos, sobretudo em contextos de crise institucional crônica na qual estamos metidos há anos ou mudança de governo, na qual as eleições de 2026 serão o ápice. O pós-estruturalismo permite compreender como esses enquadramentos não são meramente opinativos, mas performam efeitos reais como os que assistimos: justificam sanções, deslocam alianças, moldam mercados e afetam diretamente o status internacional do país.
Quando Trump ou parlamentares norte-americanos vinculados à sua plataforma afirmam que o STF atua como "instrumento de repressão política", não estão apenas emitindo uma opinião. De fato, estão engajando-se numa prática discursiva que reconfigura a legitimidade do sistema político brasileiro - o bolsonarismo sempre entoou essa ladainha. Da mesma forma, quando o governo Lula afirma que o Brasil é "o maior defensor da democracia do sul global6", está não apenas se posicionando politicamente, mas disputando simbolicamente o direito de ser reconhecido como democrático.
A lógica binária que estrutura muitos desses discursos - democracia vs. autoritarismo, liberdade vs. censura, civilização vs. barbárie - é essencial para a construção de identidades políticas. Essas dialéticas e dicotomias operam como dispositivos que estabilizam fronteiras e orientam ações políticas. Ao acusar um país de violar direitos humanos ou de censurar a imprensa, o "discurso ocidental" se posiciona como guardião de valores universais e, assim, legitima intervenções de diferentes naturezas, inclusive tarifárias e jurídicas.
O conceito de "prática discursiva de segurança" é particularmente relevante quando se analisa a aplicação extraterritorial da Lei Magnitsky. Embora formalmente vinculada à proteção dos direitos humanos, a lei é também um instrumento de poder simbólico. Sua aplicação implica em gesto de nomeação: declarar que um determinado indivíduo é "inimigo da liberdade, da democracia e da moralidade internacional". Como gesto performativo, produz exclusões, constrange atores e molda alianças. No caso de Alexandre de Moraes, o mero debate sobre a possibilidade de aplicação da Magnitsky já tinha inscrito o Brasil em um léxico de suspeição - o que exige, como dissemos mais acima, respostas simbólicas e diplomáticas para reverter os efeitos dessa nomeação. Note que pouco importa, nesse sentido estrito, se a forma de agir do Judiciário brasileiro é autoritária ou não. O que importa é o simbolismo declarado em vista do ministro.
Vale dizer que o pós-estruturalismo convida à crítica da crença liberal (alô Faria Lima!) de que o debate internacional ocorre entre sujeitos racionais em busca de consensos. Ao contrário, o que se revela é um campo de forças em que verdades são produzidas, identidades são performadas e exclusões são naturalizadas. O conflito é método. A política externa brasileira, nesse diapasão, torna-se palco de luta por reconhecimento, em que se joga não apenas a integridade de seus mercados ou o acesso a fóruns multilaterais, mas a própria definição do que é o Brasil no sistema internacional (que é o que mais está em jogo nesse momento, para além das tarifas).
A aplicação da Global Magnitsky Human Rights Accountability Act (ou simplesmente Lei Magnitsky) de 2016 contra o ministro do STF brasileiro, Alexandre de Moraes, revela-se como gesto de elevada carga simbólica, com impactos profundos na imagem institucional do Brasil. Não subestimemos esse aspecto a despeito da visível injustiça da aplicação da lei.
Ao construir Moraes como encarnação de um "autoritarismo judicial", setores do legislativo norte-americano alinhados ao trumpismo não apenas atacam uma figura específica, mas atribuem ao Brasil, por metonímia, o lugar de "outro autoritário". Esse movimento discursivo, embora ainda não se saiba todos os efeitos jurídicos, opera como mecanismo de exclusão moral e como ameaça performativa à soberania simbólica do país. Jair Bolsonaro, nesse sentido, performa o papel do injustiçado por um juiz perseguidor. Há de se aproveitar ainda mais desse script.
Aprovada em 2016 nos Estados Unidos, a Lei Global Magnitsky autoriza o presidente norte-americano a aplicar sanções contra indivíduos estrangeiros acusados de graves violações de direitos humanos ou corrupção significativa. Embora se baseie em fundamentos morais universais, a aplicação da lei tem sido objeto de "disputas geopolíticas" - aqui o realismo da política internacional é muito visível -, servindo como instrumento seletivo de pressão política e diplomática.
O aspecto mais relevante da Lei Magnitsky é que ao declarar um indivíduo como violador de direitos humanos, decreta um "banimento" simbólico, sustentado pela prerrogativa de autodeclaração moral do poder norte-americano, via Donald Trump. A gravidade é inconteste.
Petições de congressistas como Chris Smith (R-NJ) e Marco Rubio (R-FL), apresentadas ao departamento de Estado em 2023 e 2024, já acusavam Alexandre de Moraes de "censura sistemática", "prisões políticas" e "desrespeito ao devido processo legal" no âmbito das investigações sobre os atos golpistas de 8 de janeiro de 2023. A estratégia vinha de longe e poucos, aqui e alhures, viram os riscos que cavalgavam.
Tais acusações não visam apenas o indivíduo; elas visam ao Judiciário brasileiro como instituição e, por extensão, a legitimidade democrática do Estado brasileiro. A imagem do ministro Alexandre de Moraes como símbolo de repressão judicial é construída com base em uma inversão semântica dos marcos do liberalismo político: a defesa da ordem constitucional passa a ser lida como arbítrio. A proteção das instituições, como perseguição. Ademais, a ameaça pode se espalhar pelos corredores do STF e atingir outros gabinetes de ministros. Cabe, dessa feita, não subestimar o processo.
A retórica utilizada por parlamentares norte-americanos e estimulada por bolsonaristas e outros conservadores, além da sempre presente mídia da extrema direita (tanto nos EUA quanto no Brasil) mobiliza categorias familiares à gramática democrática (liberdade de expressão, separação de poderes e pluralismo político) para construir Alexandre de Moraes como uma figura autoritária. Essa construção se dá mediante uma inversão discursiva típica do populismo de direita e de esquerda: aquele que combate o golpismo torna-se o opressor, a contenção de ataques institucionais vira censura, o combate à desinformação é rotulado como tirania.
Essa inversão se sustenta em representações seletivas de fatos e na amplificação midiática de controvérsias. Relatórios e declarações de entidades como a Heritage Foundation ou a Judicial Watch reforçam esse enquadramento, apresentando decisões do STF como violações à liberdade religiosa, à liberdade de imprensa e ao direito de manifestação.
A força dessa retórica reside em sua capacidade de construir um imaginário simbólico em que o Brasil ocupa o papel de "democracia falha" ou "autoritarismo disfarçado". A sanção jurídica passa a ser secundária diante do efeito simbólico imediato: a inscrição de Alexandre de Moraes - e, por extensão, do Brasil - na lista de "desviantes morais". Inegável sucesso do trumpismo que arrastou, assim, o bolsonarismo para dentro dele, talvez de forma definitiva.
Diante desse enquadramento, o governo Lula tem buscado responder com um contradiscurso centrado na valorização do STF como "guardião das instituições" e na reafirmação da democracia constitucional brasileira. As notas do Itamaraty, bem como pronunciamentos do Chanceler Mauro Vieira e do próprio presidente, destacam a independência dos Poderes, o respeito às garantias fundamentais e o compromisso com o Estado de Direito.
A linguagem utilizada busca construir o STF não como um ator político-partidário, mas como um bastião de estabilidade institucional frente às ameaças autoritárias tentando inverter, portanto, a lógica discursiva trumpista. Ao invés de ceder ao enquadramento de Moraes como símbolo de tirania, o governo tenta reposicioná-lo como símbolo de resistência democrática. Funcionará? Sabe-se que as escolhas recentes de novos Ministros para os tribunais não são necessariamente apartidárias e institucionais e isso é uma grave barreira à consolidação discursiva.
Estamos inevitavelmente em meio a estreitos limites. A tensão entre os discursos revela uma disputa pela definição de "democracia" e "liberdade" no campo internacional. Trata-se de uma luta pela hegemonia semântica dos conceitos fundamentais da modernidade política. Por ora, o Brasil está isolado nesse processo vez que os países estão calcados objetivamente na defesa de interesses imediatos ou mesmo mediatos.
A construção simbólica de Moraes como inimigo da liberdade não se dá apenas no plano estatal. A mídia alinhada à direita internacional - como a Fox News, a Breitbart, o Epoch Times, além de redes sociais alimentadas por algoritmos e influenciadores - desempenha papel central na disseminação dessa imagem. No Brasil, colunistas e comentaristas identificados com o bolsonarismo ecoam esse discurso, internacionalizando a retórica doméstica de vitimização no caso de Jair Bolsonaro.
Por outro lado, a mídia progressista internacional, como o The Guardian e o New York Times, tem adotado posturas mais nuançadas, ainda que pouco alinhada ao governo Lula. A divisão simbólica transnacional reflete uma nova geografia discursiva na qual a soberania se torna cada vez mais dependente da capacidade de ocupar legitimamente os "lugares de fala" globais.
Além da mídia, atores transnacionais como ONGs, think tanks e organizações jurídicas internacionais também participam da disputa. A atuação da Freedom House, por exemplo, tem oscilado entre a crítica à polarização política brasileira e a defesa das instituições democráticas, revelando a complexidade da arena em que se trava essa batalha simbólica.
Há mais: a tentativa de enquadramento de Alexandre de Moraes à luz da Lei Magnitsky revela o esvaziamento prático do "princípio da não-intervenção". O discurso moralizante de sanções extraterritoriais - sob o pretexto de direitos humanos - vem substituindo formas tradicionais de intervenção armada, convertendo o soft power em hard symbolism. A retórica dos direitos humanos, em vez de promover a solidariedade internacional, é instrumentalizada para reorganizar hierarquias morais e justificar punições seletivas (caso notável é a situação da Palestina). Note que Lula (em menor medida) e Moraes, no sentido do trumpismo, são os algozes dos direitos humanos e não "as vítimas": Bolsonaro docemente ocupou o espaço. Tudo no campo do simbolismo.
O Brasil, nesse contexto, se vê compelido a proteger sua soberania não apenas por meio de instituições jurídicas ou da pouca força econômica7, mas por meio da produção simbólica de legitimidade. A resposta à aplicação da Lei Magnitsky é, portanto, menos jurídica que discursiva: trata-se de disputar o direito de nomear a democracia brasileira, de controlar os significados que circulam sobre si mesmo.
Frente à tentativa de Donald Trump e de seus aliados de reconstruírem o Brasil como um "outro autoritário" e uma "ameaça econômica", o governo Lula (e, claro, os subsequentes) precisa construir uma estratégia discursiva sofisticada e multifacetada para reposicionar a identidade internacional do país. Temos de sair das nossas tradições diplomáticas mais arraigadas às reações convencionais e retóricas para assumir os contornos de uma disputa não populista baseada em "significados fundamentais": democracia, soberania, liberdade, cooperação e civilização.
Essa reconstrução identitária ocorre em meio a um contexto global caracterizado pela fragmentação do multilateralismo, pela ascensão de discursos populistas e pela instrumentalização política dos direitos humanos e do comércio internacional. O Brasil de Lula tem de propor uma nova gramática internacional para a política externa. Sem força política, isolado e sem relevância econômica, essa é a alternativa.
Um dos pilares da resposta discursiva do governo brasileiro é a reafirmação de seu compromisso com a ordem multilateral baseada em regras. Essa estratégia contrasta diretamente com o isolacionismo e o unilateralismo norte-americano de viés trumpista. Ao participar ativamente de fóruns como a ONU, o G20, os BRICS e a CELAC, o Brasil procura reposicionar-se como um ator comprometido com a legalidade internacional, o diálogo entre civilizações e a busca de soluções coletivas.
Em discurso na assembleia geral da ONU em 2024, Lula declarou:
"O multilateralismo não é uma opção - é uma necessidade. O Brasil está do lado da cooperação, da ciência e do direito internacional. Não aceitaremos que narrativas de força se imponham sobre a razão."
Essa fala opera em diversos níveis. Ao falar em "razão" e "ciência", Lula associa o Brasil a "valores iluministas", deslegitimando a retórica emocional e agressiva do populismo trumpista. Ao afirmar que "não aceitará narrativas de força", explicita que o campo da disputa simbólica é também o da linguagem - que não é neutra.
Outro eixo do reposicionamento é a afirmação da democracia brasileira como plural, robusta e em processo de constante aprimoramento. Diante das acusações de autoritarismo, especialmente vinculadas ao Judiciário e às ações do STF, o governo Lula procura deslocar o debate para a solidez das instituições, a independência entre os Poderes e a resposta efetiva aos ataques golpistas de janeiro de 2023.
Essa estratégia não nega os conflitos internos, mas os reinterpreta. Em vez de esconder as tensões entre Judiciário, Legislativo e Executivo, o discurso oficial os assume como parte de um regime democrático vivo, onde o dissenso é expressão da diversidade e não um sinal de falência institucional. Apesar de vivermos um jogo não-cooperativo - e.g. emendas que conspiram contra o orçamento, o ativismo judicial face às disputas entre poderes e a ausência de iniciativas modernizantes na gestão pública - entre as funcionalidades do poder estatal, a hora é de discursos simbólicos.
Essa construção ressignifica o papel do STF e de Alexandre de Moraes: não como figuras autoritárias, mas como agentes da "contenção do autoritarismo". Trata-se de uma inversão simbólica (e não necessariamente realista) que desloca o Brasil da posição de réu para a de exemplo moral.
Diferente da retórica confrontacional de Trump, o governo Lula tem de investir numa linguagem internacional baseada na paz, no diálogo e na racionalidade. Essa estratégia performará o Brasil como ator civilizacional, em contraposição à linguagem de "guerra econômica" e de "inimigos da liberdade" difundida pelos populistas da extrema direita global. Ser conciliador implica em não apontar dedos para os interlocutores, mas sentar-se ao lado deles. É preciso se afastar de "lições" e se restringir ao "diálogo".
Essa linguagem tem de ser refeita em diversas frentes: na questão do conflito Rússia-Ucrânia, nas iniciativas de cooperação climática, nos acordos com países africanos, em relação ao conflito israelense-palestino e na reafirmação da América Latina como espaço de paz. O Brasil tem de ser representado como mediador - não como antagonista.
Os discursos já apontam nessa direção, mas é preciso forjar um "poder simbólico" e não apenas retórico. Na reunião dos BRICS em 2024, Lula afirmou:
"O mundo precisa menos de muros e mais de pontes. O Brasil não levanta barreiras - constrói caminhos."
Essa metáfora, cuidadosamente escolhida, tem de deslocar o Brasil para mais firmeza no campo simbólico da harmonia, em contraposição à política de tarifas e sanções. Trata-se de uma operação discursiva que articula valores éticos e pragmáticos, sem fazer da confrontação uma peça de retórica, ao gosto dos partidos que estão nos polos da polarização política.
Uma das frentes mais sofisticadas da resposta brasileira tem de ser a reapropriação dos conceitos de "liberdade" e "democracia", frequentemente instrumentalizados pela direita internacional. O governo Lula deve procurar mostrar que tais valores não pertencem a um campo político específico, mas devem ser defendidos por toda a comunidade internacional - e que sua deturpação serve a projetos autoritários. O automático afastamento silencioso em relação a países autoritários (e.g. Venezuela) é uma necessidade e não um mero jogo.
Essa disputa semântica se dá, com sucesso, na crítica ao uso da liberdade de expressão como justificativa para a disseminação de fake news, discursos de ódio e campanhas golpistas. O Brasil, ao tomar medidas contra essas práticas, afirma estar defendendo a liberdade real - não sua caricatura.
Em discurso no Fórum Mundial da Democracia (2025), Mauro Vieira declarou:
"Liberdade não é licença para destruir. Democracia não é espaço para o ódio travestido de opinião. O Brasil defenderá sempre a liberdade responsável e a democracia substancial."
Esse tipo de formulação desloca o eixo do debate: ao invés de negar e confrontar as acusações, redefine os termos do jogo, retirando a hegemonia semântica da retórica trumpista.
A resposta brasileira também passa pela construção de alianças simbólicas com países do sul global, em especial por meio dos BRICS, da cooperação Sul-Sul e das cúpulas latino-americanas - o Mercosul é um fórum muito problemático, por ora. O Brasil tenta inscrever-se numa nova cartografia da legitimidade internacional, onde a autoridade simbólica não depende da aprovação de Washington ou Bruxelas, mesmo que esteja a negociar com a UE.
Essa estratégia discursiva inclui a defesa de uma "nova governança global", mais inclusiva, que reconheça a "pluralidade de experiências democráticas". O Brasil deve se tornar o representante legítimo de um mundo que não cabe nas categorias binárias impostas pela hegemonia ocidental. Mesmo no regime militar, sob Ernesto Geisel, o Itamaraty (o chanceler era Azeredo da Silveira) operou bem esse papel, de "não-alinhado" do ponto de vista estratégico e independente na política externa.
Não se trata apenas de política externa, mas de redefinir o que conta como conhecimento legítimo, como experiência democrática válida.
A resposta do governo Lula não pode ser somente a contenção simbólica. Ela é também criativa: propor novas formas de pensar a política internacional, de articular interesses e de construir solidariedades. O Brasil não pode se apresentar apenas como vítima de um enquadramento injusto, mas como sujeito ativo de uma nova narrativa internacional.
Essa reconstrução da identidade internacional brasileira baseia-se em cinco eixos discursivos: (i) democracia plural e resiliente, (ii) soberania cooperativa e não agressiva, (iii) multilateralismo como racionalidade política, (iv) "sul global" como polo de legitimidade epistêmica e política, (v) reapropriação crítica dos conceitos fundamentais da modernidade (liberdade, verdade, direitos humanos, segurança climática e sustentabilidade social). A questão é: haverá consenso interno para essas iniciativas? O momento é de "teste", nesse sentido.
Diante do cenário internacional marcado por disputas narrativas, uso instrumental dos direitos humanos e do comércio, e tentativas de reconfiguração simbólica da identidade brasileira por atores hegemônicos, as saídas para o Brasil exigem mais do que defesas técnicas e diplomáticas convencionais. É necessário compreender que a política externa contemporânea é, acima de tudo, uma arena de produção simbólica - e que a soberania, a democracia e a legitimidade são, em larga medida, efeitos discursivos que precisam ser sustentados e atualizados continuamente no interior das sociedades das nações.
A política externa de Lula, deve reconhecer esse novo campo de batalha discursivo, adotar uma estratégia de reposicionamento simbólico que busca reconquistar não apenas o prestígio do Brasil, mas o controle sobre os termos nos quais o país é representado e evitar a confrontação meramente retórica ou ideológica. A atual estratégia de jogar não como player simbólico, mas como articulador a partir do próprio discurso, mesmo que bem fundamentada, encontra severas limitações diante da força de marcos discursivos enraizados, da influência dos EUA sobre os circuitos de legitimidade global e da persistência de assimetrias epistêmicas no sistema internacional. Mas, isso não isenta o Estado Brasileiro quanto à necessidade de buscar saídas.
A primeira e mais importante saída é tratar a reconstrução da legitimidade simbólica internacional do Brasil como um projeto nacional de longo prazo - aqui temos o calendário eleitoral como barreira. Isso exige articulação entre diplomacia, comunicação institucional, política cultural e formação de alianças globais. O Brasil precisa falar com coerência e clareza sobre si mesmo - e fazer isso em múltiplos idiomas, fóruns e plataformas.
Essa reconstrução depende, também, da solidez democrática interna. Instituições judiciais, legislativas e executivas devem atuar de modo convergente na afirmação de um Brasil plural, estável e comprometido com os valores republicanos. Quanto mais consistente for o discurso doméstico, mais ressonância ele terá no exterior. É hora de revisitar os papéis dos poderes e rever suas reais funcionalidades. Se não for assim, destruiremos qualquer discurso simbólico. O papel do líder nesse processo é essencial.
A segunda saída é a intensificação da articulação com países do sul global para a construção de alianças discursivas que desafiem a hegemonia simbólica da América (do Norte). Isso significa formar redes de solidariedade, promover fóruns alternativos de discussão sobre democracia, liberdade, justiça e desenvolvimento, e propor novas narrativas para os grandes e novos temas internacionais: a urgência climática, a desigualdade social e econômica, a nova era digital e seus efeitos e os temas da ética no mundo moderno.
Outra saída está na institucionalização da política simbólica. O Brasil precisa investir em órgãos e políticas públicas voltadas à diplomacia cultural, à defesa da imagem internacional e à resposta coordenada (interna e externa) em relação às campanhas de desinformação ou de deslegitimação externa. Assim como existem agências de inteligência e segurança cibernética, é necessário um aparato que monitore o ambiente discursivo internacional e atue proativamente na construção de narrativas.
Isso inclui capacitar diplomatas para lidar com disputas semânticas, formar especialistas em diplomacia pública e coordenar estratégias entre ministérios, universidades, mídias públicas e iniciativas culturais. O Brasil precisa de um verdadeiro coordenador para organizar o governo (o atual e os vindouros) em prol de seus objetivos permanentes. A Casa Civil é a melhor estrutura para isso se houver equivalente liderança e visão estratégica.
Por fim, é essencial compreender que a verdade (e não apenas interesses), na política internacional contemporânea, é objeto de disputa. A acusação de que o Brasil é autoritário, de que o ministro Alexandre de Moraes é censor ou de que o país pratica concorrência desleal, não são simples juízos técnicos: são gestos políticos que constroem uma versão do mundo. A resposta brasileira deve ser não apenas técnica, mas narrativa - deve propor outras versões, outros significados, outras formas de contar o Brasil. O processo de negociação das punições tarifárias é prova de nossa desorganização estrutural e não apenas momentânea.
Isso não significa que devemos manipular ou falsear a realidade, mas assumir que toda política externa é também política da linguagem, da representação e da construção de sentido. A defesa do Brasil passa, inevitavelmente, pela defesa de sua verdade - e essa verdade é construída, disputada e performada todos os dias em um processo político interno que necessita ser mais cooperativo. É preciso que a parte verdadeiramente democrática da atual polarização política se retire da ação ideológica e da luta retórica para construir uma identidade simbólica para forjar o verdadeiro desenvolvimento sustentado. Estamos diante de um novo paradigma: modelos de condução da política externa e interna se tornaram arcaicos. Vamos para a modernidade, pra lá de "líquida".
1 O "outro" aqui deriva da expressão pensada por Jacques Derrida da qual A "diferença" e a lógica binária ("presença/ausência") revelam que o significado de um termo depende de sua oposição a um outro ausente: não há "eu" sem "outro".
2 N.A. A partir dessas visões a política internacional é regida por ambição de poder, rivalidade e anarquia (realistas) ou os Estados (ou líderes) agarram-se a preferências estáveis e calculam custos/benefícios para maximizar utilidade; interação é modelada como jogos de estratégia (racionalistas).
3 FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. 23. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2014.
4 CAMPBELL, David. Writing security: United States foreign policy and the politics of identity. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1998.
5 HANSEN, Lene. Security as practice: discourse analysis and the Bosnian war. London: Routledge, 2006
6 A origem do termo origina-se como "Terceiro Mundo", usado para designar países recém-independentes da Ásia, África e América Latina que não se alinhavam diretamente nem aos EUA nem à URSS. Depois tornou-se "Relações Norte-Sul". Desde os anos 2000 tornou-se "Sul Global". A designação não é estritamente geográfica - Austrália fica no Hemisfério Sul, mas compõe o "Norte" pelo nível de desenvolvimento; Índia e Brasil estão parcialmente no Hemisfério Norte, mas integram o "Sul Global" pela posição histórico-estrutural.
7 O Brasil respondeu, em 2024, por aproximadamente US$ 42,35 bilhões em vendas de bens aos Estados Unidos, o que representou cerca de 1,3 % do total importado pelo mercado norte-americano, posição que o colocou como 17.º principal fornecedor (UNITED STATES CENSUS BUREAU, 2025). No mesmo ano, as exportações brasileiras alcançaram US$ 337,0 bilhões (cerca de 1,38 % das exportações mundiais) e as importações chegaram a US$ 262,9 bilhões (cerca de 1,08 % das importações globais), de modo que o país participou com aproximadamente 1,2 % do comércio internacional de mercadorias (WORLD TRADE ORGANIZATION, 2025). Esses números indicam que a relevância brasileira na pauta de compras dos EUA é praticamente equivalente ao seu peso no fluxo global de bens, destacando-se sobretudo em petróleo bruto, produtos siderúrgicos, celulose, café e suco de laranja. O Brasil é economicamente "visível", mas "pouco relevante" no cenário americano e global. (N.A.)