Quando a Inteligência Artificial imita a vida - A reforma do Código Civil
segunda-feira, 14 de abril de 2025
Atualizado em 11 de abril de 2025 12:35
Sua imagem pode continuar circulando muito depois da sua morte - vendendo produtos, aparecendo em vídeos, até apoiando causas que você jamais escolheria em vida. Com a popularização da inteligência artificial, essa realidade já não é mais ficção. Este artigo discute como o novo Código Civil brasileiro está enfrentando esse desafio, propondo regras sobre consentimento, respeito à memória, uso comercial e transparência. Afinal, se a tecnologia avança, o direito precisa acompanhar.
Imagine abrir o celular, entrar em uma rede social e se deparar com a imagem de alguém que você ama, falecido há anos, sorrindo, cantando ou vendendo um produto. Não se trata de uma lembrança antiga, mas de algo novo, atual e vívido. Em outro cenário, é a sua própria imagem que aparece realizando ações que você nunca fez, promovendo uma marca que você nunca consumiu ou apoiando um candidato político ao qual você jamais se filiou. A princípio, tudo parece real, o rosto, os gestos, até a entonação da voz. Só mais tarde você descobre que aquilo não é uma gravação antiga, nem uma montagem grosseira, mas sim, uma imagem criada por inteligência artificial. Nesse momento, surge a pergunta que este artigo propõe enfrentar: como o direito pode proteger a imagem, a vontade e o legado das pessoas, diante de tecnologias capazes de recriá-las sem limites?
A criação de imagens por inteligência artificial divide opiniões. Em 2023, o público brasileiro se deparou com um exemplo emblemático: a recriação da cantora Elis Regina1, falecida em 1982, cantando ao lado de sua filha, Maria Rita, em uma propaganda de automóveis. As duas aparecem juntas, com naturalidade, dividindo o protagonismo da cena, como se o tempo não tivesse passado. A propaganda teve grande repercussão e levantou questões éticas sérias: Elis consentiria com esse uso? Sua imagem foi respeitada ou manipulada?
De outro lado, há quem veja esse tipo de recurso como uma ponte entre gerações, um gesto de homenagem e memória afetiva. No China, por exemplo, empresas já oferecem serviços de recriação digital de falecidos, permitindo que familiares revivam encontros visuais com quem já partiu. Para alguns, isso ajuda no luto e reforça o vínculo, para outros, apenas prolonga a dor e abre espaço para abusos emocionais e comerciais. O fato é que esta tecnologia já está aqui e o direito ainda não decidiu como tratá-la.
O Código Civil atual, assim como grande parte da nossa legislação, não foi pensado para o mundo digital que vivemos hoje. Quando foi aprovado, em 2002, nem sequer existia inteligência artificial generativa, redes sociais em massa ou a capacidade de recriar pessoas digitalmente com realismo, da forma que temos hoje. As leis sobre imagem, privacidade de forma ampla e personalidade partem de uma lógica analógica, baseada em registros físicos e interações presenciais. Esse descompasso entre a tecnologia e o direito abriu uma lacuna perigosa, onde pessoas estão sendo simuladas, manipuladas e até comercializadas digitalmente, sem qualquer respaldo legislativo.
Foi pensando nisso que a Comissão de Juristas da Reforma do Código Civil propôs, dentro do novo Livro de Direito Digital, um capítulo específico dedicado à Inteligência Artificial. E dentro desse capítulo, foram incluídas disposições que tratam diretamente da criação de imagens de pessoas vivas e falecidas por meio de IA. A proposta busca responder a um vácuo jurídico evidente, que é o uso da imagem sem consentimento em contextos digitais e automatizados, algo cada vez mais comum e com impacto real sobre a privacidade, a dignidade e ainda mais relevante para os falecidos: o legado das pessoas. Ao tratar desse tema com clareza, o texto reconhece que a criação visual não é neutra, ela pode ser instrumento de homenagem, mas também de manipulação, exploração e até difamação de uma memória.
Para muitos, tudo isso ainda soa como futurismo, como se ainda estivéssemos falando de algo distante e improvável. Mas os fatos mostram o contrário, pois já existem situações concretas e graves envolvendo o uso de inteligência artificial para simular pessoas falecidas. Na Índia2 por exemplo, campanhas políticas utilizaram a voz de líderes mortos para pedir votos, recriando discursos como se fossem atuais. Na Indonésia3, a imagem de um político influente, falecido há anos, foi reconstruída digitalmente para aparecer em vídeo apoiando um candidato nas eleições. Ou o famoso caso ocorrido em New Hampshire, onde eleitores receberam ligações com a voz do Presidente Biden, pedindo que estes não saíssem para votar4. Esses episódios revelam um uso da tecnologia que ultrapassa os limites da homenagem ou da lembrança, trata-se de um reposicionamento forçado de pessoas em contextos que elas nunca autorizaram, com consequências reais sobre memória, reputação e até mesmo podendo ter influência no debate público.
Ressalta-se neste ponto, que o impacto da inteligência artificial na política é tão relevante, que em 2024, o TSE5 aprovou resoluções que disciplinam seu uso no processo eleitoral, o que mostra a atualidade e os riscos do tema.
É justamente diante desses riscos concretos que o texto da reforma busca estabelecer parâmetros, impondo condições objetivas e éticas para isso. O primeiro requisito é o consentimento informado prévio e expresso, ou seja, a autorização precisa ser clara, concedida antes da criação da imagem e com plena ciência de como ela será utilizada. No caso de pessoas vivas, essa autorização parte da própria pessoa, já no caso de falecidos, essa decisão deve ser dos herdeiros legais ou representantes. Essa previsão evita que a imagem de alguém seja manipulada ou exposta sem qualquer controle de quem detém o vínculo familiar ou jurídico com aquela pessoa.
Esse ponto é fundamental, porque o consentimento deixa de ser apenas uma formalidade e passa a ser uma condição de legitimidade da criação da imagem digital. Além disso, ele protege não só o direito à imagem, mas também a identidade e a autonomia da vontade, mesmo após a morte. A norma tenta corrigir um cenário em que famílias são surpreendidas com a exposição de entes queridos em situações que jamais teriam autorizado em vida. E vale destacar que nada impede que a própria pessoa, em vida, deixe registrado em testamento que não autoriza o uso de sua imagem por inteligência artificial após sua morte.
A manifestação por meio do testamento, tem peso jurídico e deve ser respeitada pelos herdeiros e por quem eventualmente detenha os direitos de imagem. Ao exigir o consentimento informado, a proposta da reforma busca um equilíbrio entre liberdade tecnológica e segurança jurídica, reconhecendo que, na era digital, o direito à imagem exige mais do que autorização, exige responsabilidade.
Outro ponto central da proposta é o uso comercial dessas imagens. O texto deixa claro que qualquer exploração comercial da imagem criada por IA depende de autorização específica e no caso de pessoas falecidas, essa autorização deve ser dada pelos herdeiros, cônjuges ou estar prevista em testamento. Isso impede que a memória e a imagem de alguém se tornem moeda de troca, associadas a produtos, marcas ou campanhas sem controle da família. A comercialização sem consentimento é expressamente proibida, exceto se houver previsão legal em sentido contrário.
Mas talvez o ponto mais sensível e mais inovador desta proposta, esteja na exigência de respeito ao legado da pessoa natural, viva ou falecida. O artigo não se limita a proteger a imagem no sentido técnico ou visual, ele avança para garantir que a representação digital respeite aquilo que a pessoa é ou foi em vida, seus valores, crenças, modo de pensar, modo de existir. O texto é claro ao afirmar que são proibidos usos que possam ser considerados difamatórios, desrespeitosos ou contrários ao modo de ser da pessoa, conforme externado por seus comportamentos, escritos, posicionamentos culturais, políticos ou religiosos.
Essa previsão é essencial porque reconhece algo que vai além da imagem, a memória tem valor jurídico, social e afetivo. A tecnologia não pode reescrever a história de uma pessoa para atender interesses de terceiros. Não se trata de impedir homenagens ou iniciativas legítimas, mas de garantir que elas não distorçam, forjem ou manipulem quem a pessoa foi. A dignidade, mesmo após a morte, continua sendo um direito, e o respeito à memória é parte desse reconhecimento. E ao proteger o legado, o Código Civil se atualiza para um tempo em que as pessoas poderão ter imagens recriadas por anos ou mesmo séculos.
Por fim, respeitando a ampla transparência e garantindo que terceiros saibam que estão diante de uma criação artificial, a reforma estabelece a obrigatoriedade de informar, de forma clara, expressa e precisa, que determinada imagem foi criada por inteligência artificial.
Vale ressaltar que essa ideia surgiu quando nos deparamos com uma realidade cada vez mais comum nas redes sociais, influenciadores digitais criados por inteligência artificial, com milhares de seguidores no Instagram, vendendo produtos, construindo rotinas perfeitas, exibindo corpos idealizados e padrões estéticos inatingíveis. Essas imagens, mesmo não sendo reais, impactam comportamentos, alimentam expectativas e influenciam, principalmente adolescentes em fase de formação de identidade, mas este é um assunto para outro artigo.
Fato é que a ausência de identificação clara de que se trata de uma criação artificial aprofunda esse risco, pois leva o público a acreditar que está consumindo uma vida real, quando, na verdade, está interagindo com uma simulação. Não é apenas uma regra de forma, é uma medida de proteção contra manipulação emocional, desinformação e padrões inalcançáveis impostos silenciosamente por códigos de programação.
O que está em jogo não é apenas a regulamentação de uma nova tecnologia, mas a definição de limites éticos e jurídicos para proteger a dignidade humana em um ambiente digital cada vez mais fluido. A inteligência artificial trouxe avanços inegáveis, mas também abriu espaço para usos indevidos, manipulações emocionais e distorções da realidade. A proposta de reforma do Código Civil representa um passo importante para reconhecer esses riscos e enfrentá-los de forma responsável, sem frear a inovação, mas também sem permitir que ela avance às custas da identidade, da memória e da verdade.
Mais do que atualizar conceitos jurídicos, o novo texto sinaliza uma mudança de postura, reconhecendo que o direito não pode mais ignorar os impactos trazidos pelo mundo digital6. Ao incluir regras sobre consentimento, uso comercial, respeito à memória e transparência, o Código Civil passa a reconhecer que as imagens geradas por IA carregam efeitos, provocam emoções, influenciam decisões e precisam ser reguladas.
__________
1 Disponível aqui.
2 Disponível aqui.
3 Disponível aqui.
4 Disponível aqui.
5 Disponível aqui.
6 O Mudança estrutural da esfera pública (1962) de Habermas conhecia apenas as mídias eletrônicas de massa de sua época. Hoje, as mídias digitais submetem a esfera pública a uma mudança radical de estrutura. De modo que a obra Mudança estrutural da esfera pública de Habermas necessita de uma revisão fundamental. Na era das mídias digitais, a esfera pública discursiva não é ameaçada por formatos de entretenimento das mídias de massa, não pelo infoentretenimento, mas sobretudo pela propagação e proliferação viral de informação, a saber, pela infodemia.