Animais precisam de direitos? Reflexões de Direito Animal para a reforma do CC
segunda-feira, 21 de julho de 2025
Atualizado em 18 de julho de 2025 08:43
1. De todo o trajeto que pude acompanhar, desde a instalação da Comissão de Juristas, até a apresentação do PL da reforma do CC, ficou perceptível a tendência dos civilistas brasileiros em reconhecer que animais não mais podem ser simplesmente equiparados a coisas inanimadas ou a meros bens móveis, dado que se tratam de seres vivos sencientes (confira-se o art. 91-A do PL 4/25).
Essa tendência acompanha a reforma dos Códigos Civis europeus, desde o final do século XX, alguns alterados para dizer que animais não são coisas (como a da Áustria, Alemanha, Suíça e Holanda), outros para definir que animais são seres vivos dotados de sensibilidade (como a da França, Portugal, Espanha e Bélgica).
Mas, em todas essas reformas se continua a aplicar aos animais, em caráter mais ou menos transitório e subsidiário, o regime jurídico das coisas ou dos bens.
Isso quer dizer que as reformas dos Códigos Civis europeus não mudaram a natureza jurídica dos animais para sujeitos de direitos. Continuaram a tratar animais como bens ou coisas, mas bens ou coisas de natureza especial, dada a sua senciência e, portanto, a sua capacidade de sentir e de sofrer.
Essa concepção civilista contemporânea em relação aos animais vem inspirando os processos de reforma dos Códigos Civis de outros países, como o Brasil, no qual já se declarou, no relatório parcial da Subcomissão da Parte Geral da referida Comissão de Juristas, que foi a reforma do CC português, de 2017, que lhe serviu de inspiração para a proposta de uma nova natureza jurídica dos animais.
Dessa forma, a tendência das reformas é, ainda, patrimonialista, ao afirmar ou interpretar os animais como propriedade dos humanos, ainda que uma propriedade viva senciente, sujeita a uma proteção especial, com forte intervenção estatal, a qual reduz alguns dos atributos do direito de propriedade, em prol da garantia do bem-estar animal.
Ainda segundo essa concepção, no exercício do direito de propriedade do animal, o proprietário pode usá-lo, gozá-lo, reivindicá-lo e dele dispor, porém, não pode, como dispõe o art. 1.305-A, item 3 do CC português, "sem motivo legítimo, infligir dor, sofrimento ou quaisquer outros maus-tratos que resultem em sofrimento injustificado, abandono ou morte".
2. A questão que se lança à indagação, a partir disso, é: os animais precisam de direitos para serem eficazmente protegidos? Ou seria suficiente, para tanto, essa natureza jurídica de propriedade especial?
Entenda-se, preliminarmente, que a noção de Direito Animal, como disciplina cientificamente autônoma, requer, necessariamente, a consideração dos animais como sujeitos de direitos, como titulares de um repertório mínimo de direitos fundamentais.
Sem direitos para animais, não existe Direito Animal.
Poder-se-ia afirmar, em uma primeira aproximação, que animais precisam de direitos porque são seres vivos sencientes. Afinal, animais não são como rios, plantas ou outros elementos da natureza. Esse fato é necessário, mas não é suficiente para justificar os direitos animais, dado que está presente na base das próprias teorias patrimonialistas que vem ditando as tendências das reformas dos códigos civis: animais são bens especiais, que merecem proteção especial, porque são sencientes ou dotados de sensibilidade.
O que as teorias patrimonialistas escondem é que o exercício abusivo do direito de propriedade sobre animais não é a exceção, é a regra. De uma maneira geral, as leis de proteção do bem-estar animal são cosméticas, simbólicas ou de baixa eficácia, especialmente em relação aos animais hipervulneráveis, que são aqueles explorados economicamente pela pecuária e pela pesca ou mesmo pela ciência. Escondem também que esse direito abusivo de propriedade é exercido com estímulos, fomentos e regramentos estatais.
Em outras palavras, bilhões de animais são submetidos a uma violência institucionalizada, com características típicas de um regime de opressão totalitária: (1) impõe-se a doutrinação massiva, pela educação e pela propaganda, da ideologia do animal como produto de consumo; (2) eliminam-se ou se desestimulam as percepções alternativas, como a ideologia vegana, objetificando o corpo animal como referente ausente, tratando os seus aderentes como inimigos da cultura ou da economia; (3) as vítimas (os animais) são invisibilizadas e destituídas de personalidade jurídica, pelo que são usáveis, abusáveis, descartáveis e substituíveis, naturalizando-se, no cotidiano, a violência e a opressão sobre elas.
Animais precisam de direitos porque a atribuição de direitos ainda é a forma civilizada para enfrentamento dessa violência totalitária. Atribuir direitos é descoisificar, é tornar o sujeito importante em si mesmo, não apenas porque serve a propósitos humanos. O sujeito de direitos não se submete ao direito de propriedade alheio, regular ou abusivo, por conta da dignidade que lhe caracteriza. Ser digno é ser um fim em si mesmo, como construiu a filosofia kantiana. Os animais são seres vivos dotados de dignidade porque o que acontece com eles lhes importa. Hoje, na filosofia e no direito constitucional, cada vez mais se reconhece que a dignidade não é um atributo exclusivamente humano. O Direito Animal é, portanto, uma verdadeira terapia de choque no sistema institucionalizado de opressão aos animais.
3. Mas, existem razões técnicas para justificar que animais precisam de direitos.
A primeira delas é a imprescindibilidade dos direitos fundamentais para a proteção da dignidade animal. Se o animal é propriedade viva - não é sujeito de direitos -, não poderá ter direitos fundamentais e, consequentemente, o seu regime jurídico de proteção poderá mudar ao sabor dos governos que se sucedem. Os direitos fundamentais - bem nos recorda Perez Luño - são direitos constitucionais com tutela reforçada contra mudanças ocasionais. Negar direitos fundamentais a animais é negar que tenham uma dignidade própria que deve ser preservada e submetê-los a um regime jurídico precário e oscilante.
A segunda é que a atribuição de direitos vem acompanhada, ao menos em regimes constitucionais democráticos, da capacidade processual, ou seja, da possibilidade de reivindicar seus direitos em juízo, diretamente ou mediante representação. A possibilidade de animais demandarem em juízo - e os efeitos sociais e políticos disso - é um poderoso catalisador descoisificante.
Some-se a isso que a admissão de animais litigando em juízo por seus direitos ajuda a instituir uma nova cultura de proteção animal, não mais baseada exclusivamente na compaixão, mas fundada no respeito por uma questão de justiça. Pragmaticamente, respeitar os animais por uma questão de justiça agrega maior responsabilidade para aquele que ofende os direitos animais básicos, ampliando o espectro da proteção animal contra a violência.
Exemplo prático dessa responsabilidade reforçada pelos direitos animais é a experiência brasileira da judicialização estrita do Direito Animal, pela qual animais são admitimos a litigar em juízo, com capacidade de ser parte, com sentenças condenando os autores da violência a pagarem uma indenização para o próprio animal, a ser administrada pelo seu responsável humano, em benefício exclusivo do animal.
Nenhuma outra técnica jurídica - senão a da atribuição de direitos - possibilita soluções como essa, que garantem ao animal vitimado um mínimo existencial, por meio de um patrimônio mínimo capaz de fazer frente às suas necessidades vitais. Continuar a tratar animais como coisas, ainda que especiais, é torná-los carentes dessa proteção legal robusta.
Essa mesma experiência tem mostrando que, no processo judicial com animais demandantes, novos direitos animais podem ser criados, a partir das fontes normativas disponíveis, como o direito à reparação de danos morais, o direito a medidas protetivas em situação de violência doméstica ou familiar e os direitos típicos decorrentes do reconhecimento de famílias multiespécies (consulte-se o art. 1.566, § 3º, do PL 4/25).
Não basta apenas prever uma legitimação ampliada, para que humanos demandem em nome próprio para proteger animais, como não é o bastante para a proteção de crianças ou de outros incapazes. Recorde-se que, durante muito tempo, acreditou-se que crianças não precisavam de direitos, porque o Estado - e o Juiz de Menores -, eram capazes de protegê-las eficazmente. Crianças não eram sujeitos de direitos, eram objetos de tutela estatal. Foi a duras penas que essa doutrina da situação irregular foi substituída pela doutrina da proteção integral, com crianças afirmadas sujeitos de direitos, hoje assente na Convenção da ONU sobre os Direitos da Criança, de 1989, e no art. 227 da Constituição brasileira.
Portanto, animais precisam de direitos porque se encontram submetidos a um regime totalitário de violência e opressão, contra o qual apenas a tecnologia dos direitos pode ter eficácia real e duradoura. Animais precisam de direitos para terem direitos fundamentais, para terem acesso à justiça e para serem tratados com respeito pela sua dignidade própria e individual. Animais precisam de direitos, porque somente como sujeitos de direitos será possível inverter a ideologia do animal como bem de consumo.
Mas, atribuir direitos a animais, também significa destinar-lhe deveres e obrigações na ordem civil? Essa possibilidade não é incompatível com os animais considerados sujeitos de direitos, da mesma forma como não o é para o nascituro, para as crianças impúberes ou para outros incapazes. Os incapazes podem ser eventualmente demandados no juízo civil, muito embora se deva apontar a norma jurídica que lhes atribuiu algum dever ou obrigação exigível pelo processo (como no caso das leis tributárias).
4. Por fim, cumpre-nos dizer que temos pouca esperança atual que as reformas dos códigos civis, especialmente na América Latina, contemplem a natureza jurídica dos animais como sujeitos de direitos, consolidando, definitivamente, o Direito Animal. Mas, é possível empreender um avanço legislativo que permita uma gradual evolução nesse sentido, com o apoio posterior da doutrina e da jurisprudência.
Assim, é preciso declarar os animais como seres vivos sencientes, mas fora do livro dos direitos reais ou dos direitos das coisas, algo já presente na reforma do CC português (vide o caput do art. 91-A do PL 4/25). Além disso, é preciso abolir ou substituir o regime transitório ou subsidiário dos bens ou das coisas (vide o § 2º do 91-A do PL 4/25), enquanto não advier o Estatuto dos Animais, que, decididamente, reconstrua a natureza jurídica dos animais e lhes atribua os necessários direitos (vide o § 2º do art. 91-A do PL 4/25).
Com uma previsão aberta como essa, a doutrina terá espaço para elaborar uma autêntica teoria dogmática dos direitos animais, contribuindo para a formação de uma cultura de paz e de inclusão de todos os animais em nossa comunidade moral.
Além disso, esse espaço gerado pelas novas disposições de Direito Civil sobre os animais como seres vivos sencientes, fora do livro dos bens ou dos direitos reais, poderá incentivar e inspirar a legislação dos estados para criarem direitos animais como tecnologia de ponta para a proteção animal, como já o fizeram cerca de treze leis estaduais e uma lei distrital nesse sentido, permitindo afirmar que o país tem um Direito Animal positivado, a despeito das omissões do seu CC em reforma.