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Pai, por que me abandonaste?

terça-feira, 19 de agosto de 2025

Atualizado em 18 de agosto de 2025 09:31

"Por volta das três horas, Jesus exclamou em alta voz: 'Eli, Eli, lama sabactani?', que quer dizer: 'Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?'"

Mateus 27,46

Introdução

Por uma dessas coincidências, concluo essas linhas para a Coluna Migalhas sobre a reforma do CC brasileiro, no segundo domingo de agosto, dia dedicado aos pais.

Para mim, em especial, é dia de lembranças e de saudade. 

Meu pai, que também era um apaixonado pelo Direito Civil e, assim como eu, professor da disciplina, já teve seu encontro com a "indesejada das gentes", me valendo aqui da poesia de Manoel Bandeira, para falar da morte1.

A despeito dessa nostalgia comum aos finais das tardes de domingos, reforçada pela simbologia do segundo domingo de agosto, me vi pensando nos mais de cinco milhões e meio de meninos e meninas do Brasil que não têm o nome do pai no registro de nascimento2.

Os dados foram retirados do Censo Escolar realizado pelo CNJ, divulgado no ano de 2013. Já àquela época, o CNJ alertava sobre a necessidade premente de debater o assunto.

Justamente por entender ser de fundamental importância a discussão sobre o tema, me propus a trazer, nessas breves linhas, algumas reflexões sobre a proposta contida no PL 04/25, de acrescentar o art. 1.609-A ao Capítulo III, que cuida do Reconhecimento dos Filhos. 

A proposta contempla evolução legislativa que bem observa o princípio da ponderação dos direitos fundamentais dos envolvidos, seguindo o eixo axiológico da Carta Política de 1988, com enfoque na proteção dos vulneráveis e no primado da dignidade da pessoa humana. 

Assim, levando-se em consideração o contexto social do Brasil, com mais de cinco milhões de crianças sem o nome do pai no registro, a alteração legislativa contida na proposta do art. 1.609-A do PL 04/25, traduz-se em verdadeiro avanço civilizatório.

1. Da família casamentária à família instrumental: Breves apontamentos

Muito já se falou que a família consolidada no século XX, forjada nos ideários da sociedade burguesa e plasmada no modelo monolítico do casamento, que assistiu à passagem da sociedade agrária à industrial, não existe mais. 

Dela tem-se, apenas, a lembrança de um patriarcado decadente que não encontra recepção nem na ordem jurídica, nem nos ideários de justiça.

Assim, a família institucional, matrimonializada, hierarquizada e reconhecida como unidade de produção econômica sai de cena, e entra em pauta a família instrumental. 

A família passa a ser reconhecida como fio condutor para realização das pessoas que a compõem, e cada uma delas, com suas especificidades e diferenças, passa a ser o centro da tutela do ordenamento jurídico. 

Sai de cena a proteção da família casamentária como instituição acima dos membros que a compõem, e passa-se a reconhecer a família como Locus de realização e tutela daqueles que a compõem, a nova hermenêutica proposta pela constitucionalização do Direito Civil. 

Em perspectiva histórica, interessante fazermos memória do giro hermenêutico ocorrido no Direito Civil a partir da constitucionalização do direito privado, propiciando verdadeira clivagem entre a Carta Política e CC, ambos em uma dança simbiótica na busca da tutela da pessoa humana em suas múltiplas dimensões. 

Diga-se ainda, nessas linhas introdutórias, que a hermenêutica da constitucionalização do Direito Civil, a preservação dos princípios da operabilidade, socialidade e eticidade, a proteção aos vulneráveis do CC/02 e a aplicação da diretriz proposta no protocolo de julgamento sob a perspectiva de Gênero serviram de bússola e foram os pilares centrais que nortearam a redação proposta no art. 1.609-A, do PL 04/25.

2. Contexto legislativo e finalidade do art. 1.609-A

Paulo Lôbo, com a clareza e lucidez que lhe são peculiares, já adverte que o reconhecimento da filiação, seja voluntário ou forçado, tem por finalidade precípua assegurar ao filho o direito ao pai e à mãe3.

Trata-se de direito de personalidade, inserido no direito fundamental ao conhecimento da origem genética, que não se confunde com as relações de parentesco, tema de que trataremos logo mais.

O art. 1609-A, portanto, se insere no capítulo do CC/02, que trata do reconhecimento dos filhos, fato este que pode ser voluntário - por ato de livre disposição do pai ou da mãe -, ou forçado, no modelo vigente por sentença judicial após ajuizamento de ação de investigação de paternidade.  

Para a reflexão que nos propomos no presente escrito, o reconhecimento voluntário não atrai maiores digressões; por isso, nos deteremos no reconhecimento forçado, ou seja, involuntário. 

Trata-se de direito personalíssimo, indisponível, cuja legitimidade para propor a ação cabe apenas ao filho. Enquanto menor de idade, será representado pelo genitor ou genitora que promover seu registro de nascimento.

Nesse ponto, convém lembrar que somente em 1977, com a lei do divórcio, a legislação brasileira admitiu a possibilidade de o pai casado reconhecer o filho havido com outra mulher, ou seja, fora do casamento.

No modelo atual da codificação, repita-se, o reconhecimento forçado somente se procede mediante ação judicial, através da ação denominada de investigação de paternidade ou maternidade, promovida pelo próprio filho, por seu representante legal ou pelo Ministério Público, nos termos do art. 2. da lei 8.560/92. Tal reconhecimento se insere, portanto, na categoria do ato jurídico em sentido estrito, na medida em que seus efeitos são predeterminados, não sofrendo qualquer inflexão da vontade das partes.

A Carta Política de 1988, no processo histórico de equalização dos direitos entre os filhos, cumprindo os ideários da social-democracia recém conquistada no país, quis igualar os menos favorecidos. Assim, plasmada no primado da dignidade humana, a CF/88 procurou remover todos os obstáculos para o reconhecimento da filiação.

Um bom exemplo da nova diretriz foi a promulgação da lei 7.841 de 1989 que revogou o art. 358 do CC de 1916 (lei 3.071) que vedava o reconhecimento dos filhos "incestuosos" e "adulterinos", expressões odiosas do velho sistema.

Posteriormente, seguindo a mesma orientação teleológica, foi promulgada a lei 8.560 de 1992, que passou a regulamentar o reconhecimento dos filhos havidos fora do casamento, dotando o ordenamento jurídico de nova sistemática atribuindo, também, ao Ministério Público, legitimidade para propor ação de investigação de paternidade.

A propósito do tema, os filhos havidos no casamento podem ser registrados pelo pai ou pela mãe em razão da presunção pater is est, daí porque a questão debatida é situação do filho nascido das uniões livres, planejados ou não. Válido, já nessa oportunidade, o registro de situação que se revela endêmica na realidade brasileira, com alguns agravamentos por região, como a Sudeste e a Nordeste, que se mostram as regiões com maior número de registros de nascimento com pais ausentes segundo os dados extraídos do sítio eletrônico do Portal da Transparência do Registro Civil.

Assim, determinava a lei 8.560 de 1992 que em registro de nascimento de menor apenas com a maternidade estabelecida, "o oficial remeterá ao juiz certidão integral do registro e o nome e prenome, profissão, identidade e residência do suposto pai, a fim de ser averiguada oficiosamente a procedência da alegação.

Segundo os parágrafos do artigo acima citado, caberia ao juiz notificar a pessoa indicada pela mãe e, nas hipóteses de não comparecimento no prazo de 30 dias após a notificação, ou diante da negativa da paternidade que fora atribuída, o juízo remeteria os autos ao Ministério Público para propor a investigação de paternidade. 

O legislador, personagem recorrente da doutrina civilista, ao lado dos também, igualmente queridos, Mévios e Tícios, expressamente facultava ao julgador, a análise sobre a necessidade, ou não, de que a diligência se desse em segredo de justiça, conforme houvesse ou não um casamento no meio do caminho.

No século XX, a descoberta do DNA introduz diferentes matizes ao reconhecimento dos filhos havidos fora do casamento. A matéria é tratada pela lei 12.004, de 2009 que introduz o art. 2o-A da lei 8.560 de 1992 com a seguinte redação: 

"Art. 2o-A. Na ação de investigação de paternidade, todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, serão hábeis para provar a verdade dos fatos.

Parágrafo único. A recusa do réu em se submeter ao exame de código genético - DNA gerará a presunção da paternidade, a ser apreciada em conjunto com o contexto probatório."

Importante destacar, todavia, que a recusa do DNA não pode ser considerada suficiente se não houver elementos de provas, tratando-se, ao fim e ao cabo, de presunção juris tantum, conforme expressamente contido no texto da súmula 301, do STJ.

Posteriormente, para dar ainda mais efetividade à lei n.8.560 o CNJ (provimento 16/12), facultou à mãe e ao filho maior a indicação do suposto pai perante qualquer cartório de registro civil de nascimento, cabendo ao oficial a lavratura do termo para ser encaminhado ao juiz, que notificará o pai e a mãe para serem ouvidos em juízo.

Seguindo a linha da desjudicialização dos conflitos, o art. 1.609-A do PL 04/25 amplia o alcance normativo da lei 8.560/92, com a alteração da lei 12. 004/09, com a atenção voltada à questão de gênero, dando um passo a mais na equalização dos direitos entre os filhos, independentemente de sua origem, nos seguintes termos:

Art. 1.609-A. Promovido o registro de nascimento pela mãe e indicado o genitor do seu filho, o oficial do Registro Civil deve notificá-lo para que faça o registro da criança ou realize o exame de DNA.

§1° Em caso de negativa do indicado como genitor de reconhecer a paternidade, bem como de se submeter ao exame do DNA, o oficial deverá incluir o seu nome no registro, encaminhando a ele, cópia da certidão.

§3º Não sendo localizado o indicado como genitor, o expediente deverá ser encaminhado ao Ministério Público ou Defensoria Pública para a propositura da ação declaratória de parentalidade, alimentos e regulamentação da convivência.

§4º A qualquer tempo o pai poderá buscar a exclusão do seu nome do registro, mediante prova da ausência do vínculo genético ou socioafetivo.

§ 5º Se o suposto genitor houver falecido ou não existir notícia de seu paradeiro, o juiz determinará, às expensas do autor da ação, a realização do exame de pareamento do código genético (DNA) em parentes consanguíneos, preferindo-se os de grau mais próximo aos de grau mais remoto, importando a respectiva recusa em presunção relativa de paternidade, a ser apreciada em conjunto com o contexto probatório.

Como se pode observar, o dispositivo traz mecanismos concretos para combater o fenômeno da paternidade ausente, conferindo aos oficiais de registro civil papel ativo na efetivação do direito à identidade e à convivência familiar.

Note-se que o procedimento tem início com a indicação do genitor pela mãe no ato do registro e se desdobra em hipóteses que garantem resposta célere e imediata - seja mediante notificação, seja pela inclusão do nome no registro diante da recusa ou ausência de colaboração do suposto pai.

Seguindo, também, a diretriz da lei 12.010/09, o texto ainda reforça a atuação obrigatória do Ministério Público ou da Defensoria Pública, visando garantir não apenas a inclusão do nome, mas também o acesso imediato aos direitos de alimentos e convivência.

Outro ponto relevante é o §4º, que resguarda o direito de defesa do suposto genitor, permitindo a exclusão do registro caso se prove a inexistência de vínculo genético ou socioafetivo, evitando injustiças. 

De igual modo, no §5º, há a previsão expressa da possibilidade de prova genética indireta em caso de falecimento ou paradeiro desconhecido, por meio de parentes consanguíneos e atribuindo à recusa a presunção relativa de paternidade - inovação que fortalece a busca pela verdade real.

Sabe-se que o exame de DNA não confere paternidade ou maternidade e a filiação a quem quer que seja, na medida que a parentalidade é dado cultural, afetivo, consolidado na posse de estado de filho. 

O exame do DNA apenas confirma um dado genético que, excetuando as hipóteses da utilização das técnicas de Reprodução Assistida, pode configurar presunção relativa de paternidade e os deveres dela decorrentes. 

3. Considerações finais

A proposta de inclusão do art. 1.609-A ao CC brasileiro representa um avanço histórico na proteção do direito ao reconhecimento da origem genética e à filiação, alinhando o Brasil às diretrizes internacionais de proteção à infância, como a Convenção sobre os Direitos da Criança (ONU, 1989), que garante à criança o direito de conhecer seus pais e de ser cuidada por eles.

Observa-se, também, mais um passo na direção da desjudicialização ao antecipar providências que antes dependiam exclusivamente da iniciativa judicial e enfrenta diretamente a realidade de mais de 5 milhões de crianças brasileiras sem o nome do pai no registro.

O dispositivo, assim, equilibra e pondera os princípios da proteção aos direitos da criança e as garantias processuais ao suposto pai, evitando abusos e permitindo revisões futuras do registro. 

Por todas essas razões, 1.609-A promove inclusão social, segurança jurídica e efetividade no campo pantanoso das relações familiares, configurando-se em verdadeiro chamado à responsabilização parental de forma mais igualitária.

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1 BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. 25. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1993.

2 Confirmar em Paternidade responsável: mais de 5,5 milhões de crianças brasileiras não têm o nome do pai na certidão de nascimento, disponível aqui. Acesso em 10 de agosto de 2025.

3 LÔBO, Paulo. Direito Civil, volume 05, Famílias, 2021, p. 280.

4 BARROSO, Luís Roberto. A dignidade da pessoa humana no direito constitucional contemporâneo: a construção de um conceito jurídico à luz da jurisprudência mundial. 4ª reimpressão, Belo Horizonte: Fórum, 2016.

5 BITTAR, Carlos Alberto. Os direitos da personalidade. 8ª edição, São Paulo: Saraiva, 2015. 

6 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

7 BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente - Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990.

8 BRASIL. Código Civil. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002.

9 BRASIL. Projeto de Lei nº 04, de 2025. Reforma do Código Civil. Disponível aqui.

10 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Mesmo com mudanças sociais e culturais, ausência do nome do pai no registro ainda é desafio no país. Portal CNJ, 17 maio 2024. Disponível aqui. Acesso em: 10 ago. 2025.

11 LÔBO, Paulo Netto. Direito Civil. Famílias. Vol. 5, 8ª edição. São Paulo: Saraiva, 2018.

12 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Súmula 301.

13 IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Registro Civil 2023.

14 CNJ - Conselho Nacional de Justiça. Relatório "Pais ausentes", 2024.