A celebração de contratos por meios digitais: Notas sobre o PL do CC
quarta-feira, 17 de setembro de 2025
Atualizado em 16 de setembro de 2025 09:28
Como discutido em outras oportunidades, a reforma do CC brasileiro insere-se em um movimento de atualização necessário para acompanhar as transformações sociais, econômicas e tecnológicas ocorridas nas últimas décadas. O Código vigente, de 2002, já nasceu como fruto de um longo processo de debates iniciado nos anos 1980, em razão da defasagem normativa de seu antecessor, em vigor por quase noventa anos. Agora, o cenário é semelhante: diante da crescente digitalização das relações sociais, da emergência de novos bens jurídicos e da complexificação dos contratos e formas de manifestação da personalidade, tornou-se inadiável repensar os fundamentos e institutos centrais do direito civil brasileiro1. A Comissão de Juristas instaurada pelo Senado Federal em 2023 foi encarregada de propor mudanças que não apenas consolidem a evolução jurisprudencial do STF e do STJ, mas também projetem o CC para o futuro, garantindo previsibilidade e segurança jurídica em um ambiente social cada vez mais dinâmico2.
Um dos eixos mais inovadores desse processo é a inserção de um livro específico dedicado ao direito digital, o que representa, no contexto da tradição civilista, uma inovação de caráter pioneiro. A opção por um tratamento sistemático e autônomo do tema reflete a centralidade do digital na vida cotidiana e na economia, que já não pode ser considerado apenas acessório de outros institutos jurídicos clássicos. Ao contrário, a crescente especialização das relações digitais, a relevância dos direitos da personalidade nesse ambiente e a emergência de patrimônios de natureza intangível, como criptoativos e contas em plataformas digitais, exigem uma disciplina jurídica própria e integrada ao núcleo do direito privado3.
A proposta do novo livro contempla uma arquitetura normativa abrangente, que vai desde a definição de conceitos fundamentais - como ambiente digital e plataformas digitais - até a regulamentação de temas sensíveis, como neurodireitos, tutela do patrimônio digital, contratos eletrônicos e smart contracts, além da proteção contra usos indevidos da IA - inteligência artificial. Também se destacam as disposições que estabelecem obrigações específicas às plataformas digitais, em especial no que toca à proteção de crianças e adolescentes e à responsabilidade por conteúdos de terceiros. A iniciativa de incluir um livro autônomo no CC não apenas alinha o Brasil às tendências globais de regulação do digital, mas também afirma uma sensibilidade própria, capaz de irradiar princípios e diretrizes para a legislação infraconstitucional futura. Nessa perspectiva, merece destaque a disciplina celebração de contratos por meios digitais, contida no Capítulo VIII do Livro proposto.
A concepção dos contratos inteligentes, conhecidos internacionalmente como smart contracts, remonta ao trabalho seminal de Nick Szabo, publicado em 1994. Segundo o autor, trata-se de um "protocolo de transação computadorizado que executa os termos de um contrato, reduzindo os custos e os riscos de descumprimento, seja acidental ou proposital, além de diminuir a necessidade de intermediários, como bancos, advogados, contadores e corretores"4. Esse caráter de automação contratual foi posteriormente aprimorado com o advento da tecnologia blockchain, mas já no desenho original visava conferir maior eficiência, segurança e confiabilidade à execução dos negócios jurídicos.
No contexto da literatura jurídica contemporânea, ressalta-se que "o que difere os smart contracts dos demais contratos eletrônicos, não é sua autoexecutoriedade, que pode ser programada em outras formas eletrônicas de contrato, mas na natureza descentralizada do vínculo que se pretende estabelecer entre as partes"5. É justamente dessa descentralização que decorre a possibilidade de autoexecução, já que, ausentes intermediários, o código inserido na rede opera de forma autônoma, garantindo o cumprimento das condições previamente estabelecidas. Nesse sentido, o art. 2027-AU do PL 4/25 acolhe a definição normativa, ao prever que os contratos inteligentes são aqueles em que "alguma ou todas as obrigações contratuais são definidas ou executadas automaticamente por meio de um programa de computador"6.
A doutrina também chama atenção para a evolução histórica dessa categoria. Como observam Eduardo Talamini e André Guskow Cardoso, "na sua origem, os contratos inteligentes não estavam ligados nem dependiam da tecnologia blockchain"7. De fato, quando a ideia foi formulada no início da década de 1990, a tecnologia ainda não havia sido criada. Contudo, prosseguem os autores: "o uso da tecnologia blockchain para a elaboração e execução de smart contracts produziu uma verdadeira revolução no conceito dos smart contracts. Embora, como dito, a noção já existisse antes mesmo do desenvolvimento da tecnologia blockchain, foi apenas com a evolução desta última que a implantação e utilização dos smart contracts passou a ser factível e mais difundida"5. Assim, a disciplina positiva brasileira conecta-se a uma transformação global que tornou os contratos inteligentes mais robustos, transparentes e verificáveis.
O parágrafo único do art. 2027-AU, ao impor requisitos mínimos de robustez, controle de acesso, auditabilidade, possibilidade de término seguro e consistência, revela clara preocupação do legislador em proteger os contratantes diante da assimetria técnica que caracteriza essa modalidade contratual. Como destaca a doutrina, muitos usuários finais não possuem condições de compreender plenamente a lógica e o código que regem a execução automática do contrato, o que eleva a necessidade de responsabilização de fornecedores e desenvolvedores8. Ao prever tais salvaguardas, a proposta brasileira aproxima-se de tendências internacionais, como aquelas consagradas na União Europeia, que igualmente exigem mecanismos de auditabilidade e interrupção segura em smart contracts, especialmente em setores regulados como criptoativos e compartilhamento de dados. O objetivo é claro: assegurar que a inovação tecnológica caminhe ao lado da segurança jurídica e da proteção do contratante em ambiente digital.
Para tanto, o art. 2027-AO adota uma definição ampla e tecnologicamente neutra de "contrato digital", centrada no acordo de vontades celebrado em ambiente digital e na aptidão do meio para comunicação entre as partes e criação de direitos e deveres. Essa técnica de "neutralidade de meios" evita obsolescência regulatória e alinha o Código à lógica da equivalência funcional, reforçada pelo art. 2027-AP: as mesmas regras dos contratos por instrumento particular ou público se aplicam aos contratos digitais, salvas as especificidades do ambiente eletrônico. Daí decorre a necessidade de articulação com a legislação especial quanto a assinaturas eletrônicas, proteção do consumidor e proteção de dados pessoais - exigências de autenticidade, integridade, identificabilidade e prova do consentimento, tal como previstas na lei 14.063/20, no CDC e na LGPD9. No plano comparado, a diretriz é convergente com a lei-modelo da UNCITRAL sobre Comércio Eletrônico (princípios de equivalência funcional e neutralidade tecnológica) e com o regulamento eIDAS da União Europeia, que reconhecem efeitos jurídicos a documentos e assinaturas eletrônicas, sem hierarquizar o suporte físico10.
Já art. 2027-AQ explicita princípios estruturantes - imaterialidade, autonomia privada, boa-fé objetiva, equivalência funcional, segurança jurídica e função social - que operam como filtros de controle de validade e comportamento, inclusive em contextos assimétricos de plataforma. Já o art. 2027-AR orienta a interpretação por vetores técnico-funcionais ("funcionalidade conjunta, compatibilidade, interoperabilidade, durabilidade e uso comum e esperado"), fundamentais para contratos dependentes de código e infraestruturas digitais. Em smart contracts, a leitura sistêmica deve considerar o código-fonte, a blockchain e, se houver, oráculos (fontes externas de dados), pois a automação é sensível a fricções de compatibilidade/interoperabilidade e a desalinhamentos com boa-fé e normas protetivas11. A literatura evidencia que problemas de interoperabilidade e governança técnica impactam a exequibilidade e o controle judicial posterior, reclamando interpretação que componha camadas técnica e jurídica (p. ex., padrões de dados, linguagens e APIs)5; também adverte para a durabilidade: a imutabilidade do registro aumenta a integridade, mas pode dificultar ajustes diante de fatos supervenientes, impondo equilíbrio entre segurança e flexibilidade12.
Por sua vez, o art. 2027-AS positiva os requisitos de celebração: (i) manifestação clara de intenção (p. ex., cliques, escolhas em interface, assinaturas eletrônicas), (ii) objeto lícito/possível/determinado ou determinável e (iii) atendimento a formas/solenidades quando exigidas (identificação e assinatura, se necessárias). Em complemento, o art. 2027-AT reafirma a regra da informalidade (art. 107 do CC), sem afastar formalidades para negócios de maior risco/densidade (p. ex., assinatura eletrônica qualificada ICP-Brasil em operações sensíveis). O art. 2027-AV reconhece a validade e eficácia de contratos por aplicativos digitais (incluindo gestão e execução), com foco na intermediação de bens não fungíveis ou imateriais (v.g., NFTs, licenças, direitos de PI), desde que presentes os elementos essenciais. A ampliação de meios de consentimento alcança atos conclusivos em interfaces e, conforme proposto na doutrina recente, até manifestações simbólicas inequívocas em mensageria (emojis/"joinha"), desde que claras e não induzidas por dark patterns, preservando boa-fé, transparência e proteção do aderente13.
No âmbito internacional, é interessante notar como o projeto brasileiro converge com a orientação de "neutralidade tecnológica" e equivalência funcional consolidada em instrumentos recentes da União Europeia. Os princípios do ELI - European Law Institute propõem diretrizes para interpretação/aplicação de smart contracts que preservam a proteção do consumidor e a compatibilidade com o quadro normativo vigente, buscando equilíbrio entre inovação e segurança jurídica14. Já o Data Act europeu reforça essa linha ao positivar, no art. 36, requisitos técnicos para smart contracts usados em compartilhamento de dados - controle de acesso robusto, possibilidade de interrupção/terminação segura, auditabilidade/arquivamento de lógica e código, e conformidade com o acordo subjacente - que espelham, com vocabulário muito próximo, os deveres previstos no art. 2027-AU, parágrafo único, do projeto brasileiro15. Em termos sistêmicos, a solução do PL 4/25 aproxima o Brasil da prática regulatória da UE: reconhece a validade dos contratos digitais e, ao mesmo tempo, exige governança técnica para sua execução automatizada.
Em aspecto transnacional, a UNCITRAL fornece a base principiológica que o projeto internaliza: a lei-modelo sobre Comércio Eletrônico (1996/1998) e a Convenção das Comunicações Eletrônicas (2005) positivam a não discriminação de documentos eletrônicos, a equivalência funcional e a neutralidade tecnológica, bem como regras claras sobre envio/recebimento e efeitos das manifestações eletrônicas de vontade16. A diferença é que, enquanto os textos UNCITRAL concentram-se em mensagens de dados e formação/executabilidade de contratos eletrônicos em geral, o projeto brasileiro tipifica o "contrato digital" e detalha parâmetros de interpretação técnica (funcionalidade conjunta, compatibilidade, interoperabilidade, durabilidade e uso comum e esperado), além de normatizar os smart contracts com deveres específicos de robustez, auditabilidade e kill-switch. Em outras palavras, o projeto brasileiro dá um passo adicional: passa do plano da comunicação eletrônica ao da arquitetura técnica do contrato autoexecutável.
No direito comparado setorial, a Alemanha acolhe a equivalência funcional (eIDAS, § 126a BGB) e disciplinou conteúdos/serviços digitais (§§ 327 ss. BGB), mas não tipificou smart contracts; o tratamento permanece ancorado em oferta/aceitação e requisitos formais, com uso de assinatura eletrônica qualificada onde exigido17. Nos Estados Unidos, inexiste definição federal, porém estados como Arizona, Tennessee e Nevada reconhecem explicitamente a força vinculante de smart contracts e de registros em blockchain, sob a moldura do E-SIGN/AETA18. No Reino Unido, a UK Jurisdiction Taskforce assentou a vinculação de smart contracts na common law, desde que presentes acordo, intenção e consideration19. Em apertada síntese, o Projeto brasileiro combina o reconhecimento amplo (à moda UNCITRAL/eIDAS) com exigências técnicas detalhadas (como faz o Data Act), oferecendo um desenho normativo comparável ao "estado da arte" e, em certos pontos (interpretação técnico-funcional e deveres do fornecedor/desenvolvedor), mais denso que diversos ordenamentos.
Em conclusão, a disciplina dos smart contracts no PL do CC dá um passo qualitativamente novo: parte do reconhecimento da equivalência funcional dos contratos digitais para positivar um regime de governança técnica do código - robustez e controle de acesso, kill switch e término seguro, auditabilidade (com arquivamento de lógica e código) e consistência com o acordo subjacente - apto a mitigar riscos de automação, assimetrias informacionais e falhas de programação, sem esvaziar a autonomia privada e a boa-fé. Ao tipificar os contratos inteligentes e imputar deveres ao fornecedor/desenvolvedor, o texto brasileiro deixa de tratar apenas da "mensagem de dados" e passa a regular a arquitetura técnico-jurídica da execução automática, dialogando com o estado da arte internacional (e.g., art. 36 do Data Act da UE). O resultado é um modelo que combina segurança jurídica e inovação responsável, conferindo previsibilidade às relações privadas em cadeias blockchain e ecossistemas de dados, e que pode irradiar parâmetros para legislações setoriais futuras sem romper com os princípios estruturantes do direito contratual clássico.
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1 CAMPOS, Ricardo. O direito digital na proposta de reforma do Código Civil: a importância de se adaptar um dos principais regramentos do direito brasileiro frente ao dinamismo da sociedade atual. JOTA, 29 abr. 2024. Disponível aqui. Acesso em: 12 set. 2025.
2 SALOMÃO, Luis Felipe; CAMPOS, Ricardo. Um novo livro para uma nova sociedade: atualização do Código Civil anda de mãos dadas com o espírito do seu tempo. JOTA, 8 maio 2024. Disponível aqui. Acesso em: 12 set. 2025.
3 SALOMÃO, Luis Felipe; CAMPOS, Ricardo. Um novo livro para uma nova sociedade: atualização do Código Civil anda de mãos dadas com o espírito do seu tempo. JOTA, 8 maio 2024. Disponível aqui. Acesso em: 12 set. 2025.
4 SZABO, Nick. Smart Contracts. 1994. Disponível aqui. Acesso em: 12 set. 2025.
5 LIMA, Cintia Rosa Pereira de; SAMPAIO NETO, Walter Francisco. Smart contracts: desafios e perspectivas a partir da proposta no Projeto de Código Civil. Migalhas, 26/07/2024. Disponível aqui. Acesso em: 12 set. 2025.
6 BRASIL. Projeto de Lei nº 4, de 2025. Altera a Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), para instituir o Livro de Direito Civil Digital. Brasília, DF: Senado Federal, 2025.
7 TALAMINI, Eduardo; CARDOSO, André Guskow. Smart contracts, "autotutela" e tutela jurisdicional. Revista do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, nº 89, jul./set. 2023, p. 45-93.
8 LIMA, Cintia Rosa Pereira de; SAMPAIO NETO, Walter Francisco. Smart contracts: desafios e perspectivas a partir da proposta no Projeto de Código Civil. Migalhas, 26/07/2024. Disponível aqui. Acesso em: 12 set. 2025.
9 BRASIL. Lei nº 14.063, de 23 de setembro de 2020. Dispõe sobre o uso de assinaturas eletrônicas em interações com entes públicos e em questões de saúde. Brasília, DF, 2020. BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990(Código de Defesa do Consumidor). Brasília, DF, 1990. BRASIL. Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018 (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais). Brasília, DF, 2018.
10 UNCITRAL. Model Law on Electronic Commerce (1996) with additional article 5 bis as adopted in 1998. New York: United Nations, 1999. EUROPEAN UNION. Regulation (EU) No 910/2014 of the European Parliament and of the Council of 23 July 2014 on electronic identification and trust services (eIDAS). OJ L 257, 28 Aug. 2014.
11 SANTOS, Gabriel Gonçalves. Smart contracts: conceitos, limitações e potencialidades. 2022. Dissertação (Mestrado em Direito) - Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2022.
12 GOBBO, Leandro Oliveira. Smart contracts e o direito contratual brasileiro. Tese (Doutorado em Direito Constitucional). Brasília: Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), 2022.
13 SABINO, Marco Antônio C.; SOUZA, Gabriel Grigoletto Martins de. Alteração do Código Civil: regulamentação dos contratos digitais. Jota, 2024. Disponível aqui. Acesso em: 12 set. 2025.
14 EUROPEAN LAW INSTITUTE. Principles on the Use of Distributed Ledger Technology and Smart Contracts. Vienna: ELI, 2022.
15 EUROPEAN UNION. Regulation (EU) 2023/2854 (Data Act), of 13 Dec. 2023, art. 36. Official Journal of the European Union, L 2023/2854.
16 UNCITRAL. Model Law on Electronic Commerce (1996) with additional article 5 bis (1998). New York: United Nations, 1999. UNITED NATIONS. United Nations Convention on the Use of Electronic Communications in International Contracts (2005). New York: UN, 2007.
17 ALEMANHA. Bürgerliches Gesetzbuch (BGB), §§ 126, 126a, 327-327u; v. tb. Regulation (EU) No 910/2014 (eIDAS).
18 SALOMÃO, Luis Felipe; LEME, Elton; PORTO, Laura; et al. Direito Digital. Rio de Janeiro, RJ: Fundação Getulio Vargas, 2025.
19 UNITED KINGDOM. Law Commission (England and Wales). Smart contracts. London: Law Commission, 2021. Disponível aqui. Acesso em: 12 set. 2025.

