COLUNAS

  1. Home >
  2. Colunas

Registralhas

Análises do Direito Notarial e Registral.

Vitor Frederico Kümpel
terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Considerações acerca do pacto antenupcial I

1.1 Introdução Em primeiro lugar desejamos a todos um feliz 2015, salientando o privilégio de discutirmos questões notariais e registrais nesse rotativo tão prestigiado. Abordaremos hoje o pacto antenupcial, instituto ímpar do ordenamento jurídico, não só diante da multiplicidade em questões suscitadas, mas também pela complexidade de sua natureza e estrutura dentro da sistemática atual. Apesar da figura do pacto antenupcial integrar o ordenamento brasileiro desde o domínio português, no âmbito das Ordenações, mantém-se a sua atualidade tanto nas discussões teóricas, quanto nas práticas. É importante a discussão acerca de sua natureza jurídica, dos limites à autonomia privada em sua celebração, além de questões formais decorrentes do processo de habilitação. A importância de se determinar a natureza jurídica do pacto é, mais que meramente uma questão teórica, operacional, pois é por meio dela que se determinará até que ponto os conceitos próprios da Parte Geral do Código Civil - relativos à validade e capacidade, por exemplo - podem ser a ele aplicados. Urge também delinear com maior clareza os limites ao objeto do pacto, tendo em vista a autonomia privada estar limitada pela função social e pelo próprio dirigismo contratual. Nesse aspecto, entra em relevo a questão relativa à possibilidade de regramentos não patrimoniais serem objeto de pacto antenupcial, o que torna ainda mais complexa a sua limitação. Seria possível, por exemplo, uma cláusula de "relacionamento aberto" no pacto, mitigando o dever de fidelidade conjugal? Ou, ainda, estabelecer uma cláusula penal confirmatória da obrigação de fidelidade, punindo monetariamente uma eventual traição? Qual o limite da liberdade dos nubentes no estabelecimento das "regras do jogo" relativas ao próprio casamento? Numa sociedade complexa como a nossa, cada vez mais o destinatário da norma quer fazer valer "seus direitos" e exige do tabelião uma verdadeira ginástica para moldar um regramento deficitário à situação pessoal extremamente complexa. O pacto antenupcial surgiu com a finalidade precípua de facultar aos nubentes a escolha do regime nupcial de bens, isto é, a norma do patrimônio dos nubentes que irá valer no casamento1. Assim, apesar da lei brasileira prever um regime supletivo2, que incide na ausência de convenção diversa, aos nubentes é via de regra facultado pactuar eles próprios o regime de bens que em seu matrimônio incidirá. Vigora, portanto, no ordenamento, o princípio da liberdade dos pactos antenupciais3. Na prática, os contraentes adotam regime subsidiário da comunhão parcial de bens, não realizam pacto e habilitam casamento da maneira mais singela possível, desconhecendo a riqueza de situações que poderiam previamente acordar no pacto. O registrador civil que tem obrigação de informar o regime de bens acaba tendo dificuldade até diante da questão econômica de orientar as partes na confecção do pacto. No Direito luso-brasileiro sempre foi usual a liberdade de convenção antenupcial. A gênese do costume é histórica, dado o sincretismo jurídico cultural presente no regime português, que refletia além do velho direito português fundado em seus costumes locais, o romanismo, o germanismo, bem como infiltrações feudais e canônicas, sem prejuízo do regime de comunhão universal também presente nas ordenações como o regime "segundo o costume do reino"4. De fato, o pacto antenupcial encontra precedentes já nas Ordenações Afonsinas, promulgadas em 1446 em Portugal. Nestas, porém, o regime de bens entre os conjugues era tratado de forma superficial e sem menção expressa ao pacto antenupcial. Em 1521, nas Ordenações Manuelinas, foi prevista a possibilidade de pactuação do regime de bens pelos nubentes, ao dispor que "todos os casamentos que forem feitos em Nossos Reynos, e Senhorios, se entendem ser feitos por carta de metade, salvo quando antre as partes outra cousa for acordado e contractado, porque entonce se guardará o que antre eles for concertado", apesar de não prever a forma e o objeto do pacto5. Às Ordenações Manuelinas sucederam-se as Filipinas, que por sua vez trouxeram previsão semelhante quanto à possibilidade de escolha do regime de bens pelos nubentes através do pacto antenupcial. Nas Ordenações Filipinas vigia a liberdade de estipulação das convenções antenupciais quanto à administração dos bens dos conjugues6. Havia, não obstante, restrições a cláusulas ilícitas, ou seja, que ofendessem a lei, os bons costumes ou os fins naturais e sociais do casamento. Tais cláusulas, assim como as delas dependentes, seriam eivadas de nulidade, o que, porém, não acarretava a anulação do restante do pacto7. No esboço de Código Civil publicado em 1861, Teixeira de Freitas tratou com acuidade da figura do pacto, abordando questões materiais, como o objeto do pacto, e questões formais concernentes a capacidade, nulidades, forma, etc. Restou portanto evidenciar a importância da figura do pacto antenupcial, como é possível se verificar com a leitura do art. 88: "os esposos podem excluir a comunhão de bens, no todo ou em parte, e estipular quaisquer pactos e condições, devendo-se guardar o que entre eles for contratado"8. Três décadas mais tarde, foi previsto no decreto 181 de 24 de janeiro de 1890 (regulamentação do casamento civil), que a eficácia do pacto se condicionava à celebração do casamento. Apesar de manter a liberdade de regulamentação do regime de bens pelos nubentes, o decreto incluiu novas restrições, impondo, em determinados casos, o regime dotal e o de separação dos bens9. Nos projetos seguintes, Felício dos Santos e de Antônio Coelho Rodrigues, trouxeram novidades, como a adoção de regimes mistos, deixando, porém, de tratar do tema de forma tão abrangente quanto o projeto de Teixeira Freitas. Por fim, o último dos projetos do código de 1916 foi o de Clóvis Bevilaqua, sem mudanças materiais significativas quanto à regulação do pacto, apesar de ter consolidado questões formais, como a necessidade do registro público do pacto nupcial, lavrado por meio de escritura notarial. O art. 256 do Código de 1916, versava que "é lícito aos nubentes, antes de celebrado o casamento, estipular, quanto aos seus bens, o que lhes aprouver", disposição esta reproduzida no Código atual, no art. 1639. Muitos autores classificam o instituto como contrato sob condição suspensiva, logo, com eficácia condicionada à celebração do casamento, evento futuro e incerto. Ora, não é possível confundir a vontade de casar com a celebração do casamento em si, esta última não pode ser considerada um condição convencionada pelas partes, pois é antes um fato necessário imposto pela própria lei, independendo portanto da vontade particular, uma verdadeira "conditio iuris"10. Ademais, sequer é consensual a qualificação do pacto antenupcial como contrato. É certo que a função primária do pacto antenupcial é o estabelecimento do regime de bens, o que o torna um negócio jurídico de intuito substancialmente patrimonial, o que o aproxima dos contratos. Contudo, a própria natureza patrimonial do pacto fica enfraquecida se consideramos a possibilidade de inclusão de cláusulas não patrimoniais, como se verá mais adiante. É bom lembrar aqui que a dignidade da pessoa humana (art. 13) no direito de família, implica em despatrimonialização e o que prestigia a aposição de cláusulas não patrimoniais. Além disso, é possível apontar algumas características que afastam o pacto antenupcial - assim como pactos em geral - da categoria dos contratos. O contrato pode ser definido como um negócio jurídico fundado num acordo de vontades, cujo fim é criar, modificar ou extinguir direitos, ensejando assim a circulação de riquezas. O "acordo", em sentido amplo, integra o contrato, mas, em seu sentido técnico é estrito - como sinônimo de pacto - não se confunde com ele. De fato, se no contrato há uma composição de interesses contrapostos, no acordo há a fusão de interesses convergentes, paralelos entre si. Para os romanos, ainda, a distinção fundava-se nos efeitos: do pacto não decorreria a geração de direitos e obrigações mútuas para as partes, como ocorreria nos contratos11. Assim, apenas os contratos originavam direito de ação. No caso do pacto, o direito de defesa restringir-se-ia à via da exceptio, ou seja, na oposição de um fato impeditivo à outra parte12. Nesse diapasão, seria impreciso classificar o pacto antenupcial como contrato, já que pactos e contratos constituem categorias jurídicas distintas. Para Pontes de Miranda, nesse sentido, o pacto antenupcial seria uma figura sui generis "que entre o contrato de direito das obrigações, isto é, o contrato de sociedade e o casamento mesmo, como irradiador de efeitos. Não se assimila, porém, a qual quer deles: não é simplesmente de comunhão, de administração, ou do que quer que se convencione; nem ato constitutivo de sociedade, nem pré-casamento, ou, sequer parte do casamento"13. Logo, o que temos, na verdade, é uma figura que pode ser classificada como um negócio jurídico de direito de família. Segundo D. Gozzo, o pacto nupcial pode assim ser classificado como negócio jurídico sui generis do Direito de Família, tem seu locus próprio no ordenamento jurídico. Possui as características próprias desse tipo de negócio, a saber, o pessoalismo, o formalismo, o ser nominado e o ser legítimo14. É um negócio pessoal uma vez que só os nubentes podem dele fazer parte. Aqui é bom mencionar, é exceção quanto à possibilidade de doação antenupcial feita por terceiro aos contraentes, no pacto. É, ademais, formal, já que deve ser realizado mediante escritura pública, e nominado, pois possui previsão legal. Essa concepção, que afasta o pacto antenupcial da categoria dos contratos, justifica certas peculiaridades do mesmo. Por exemplo, embora o Código Civil permita nas aquisições de direitos a figura da representação, o mesmo não ocorre nos pactos antenupciais. Isso, pois, se trata de disciplina de direito de família, em que incide bloqueio de legitimação e, que prescinde ainda, da análise dos efeitos que resultam do próprio negócio jurídico15. Em arremate a todo o arrazoado, o pacto antenupcial é figura própria, sem qual quer identidade com os demais institutos no sistema jurídico, ocupando locus próprio, intrinsecamente ligado ao matrimônio. Nessa mesma linha de raciocínio, o pacto antenupcial tem peculiaridades que refogem aos demais institutos do direito civil. No próximo Registralhas, abordaremos as implicações práticas dessa figura sui generis tão necessária para regular relações econômica e não econômicas da sociedade conjugal nos casamentos do século XXI. Até lá, alegria! Bibliografia. Betti, Emilio, Teoria generale delle obbligazioni, v. III, Milano, Giuffre, 1954. Bevilaqua, Clóvis, Direito da Família, 5ª ed., Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1933, p. 185. Bevilaqua, Clóvis, Direito da Família, 5ª ed., Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1933. Cretella Jr., José, Curso de Direito Romano, Rio de Janeiro, Forense, 1998. Gomes, Orlando, Direito de Família, 11ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1999. Pontes de Miranda, Francisco C., Tratado de Direito Privado - Parte Especial, Dissolução da Sociedade Conjugal e Eficácia Jurídica do Casamento, t. VIII, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2012. Tese (Mestrado) - Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 1988. __________ *O artigo foi escrito em coautoria com Giselle Viana, graduanda da Faculdade de Direito da USP e pesquisadora jurídica. __________ 1F. C. Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado - Parte Especial, Dissolução da Sociedade Conjugal e Eficácia Jurídica do Casamento, t. VIII, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2012, p. 314. 2De acordo com o art. 1.640 do Código Civil, no silêncio das partes, ou diante da nulidade ou ineficácia do pacto, "vigorará, quanto aos bens entre os cônjuges, o regime da comunhão parcial". 3O. Gomes, Direito de Família, 11ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1999, p. 173. 4F. C. Pontes de Miranda, Tratado cit. (nota 1 supra), p. 306. 5D. Gozzo, Pacto Antenupcial, Tese (Mestrado) - Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 1988, p. 6. 6Ordenações Filipinas, 4, XLVI, pr 7: "Todos os casamentos feitos em nossos Reinos e senhorios se entendem serem feitos por Carta de ametade; salvo quando entra as partes outra cousa for acordada e contractada, porque então se guardará o que entre elles foir contractado." 7C. Bevilaqua, Direito da Família, 5a ed., Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1933, p. 184. 8Apud D. Gozzo, Pacto cit (nota 5 supra), p. 9. 9O art. 59 do aludido diploma, por exemplo, estabelecia a obrigatoriedade do regime dotal nas hipóteses elencadas no artigo antecedente, que abarcava, por exemplo, a hipótese da nubente menor de 14 anos ou maior de 60 (art. 58, parágrafo 1º), ou dos conjuges parentes em 3º grau (art. 58, parágrafo 3º). 10D. Gozzo, Pacto cit. (nota 5 supra), p 47. 11J. Cretella Jr., Curso de Direito Romano, Rio de Janeiro, Forense, 1998, p. 247. 12E. Betti, Teoria generale delle obbligazioni, v. III, Milano, Giuffre, 1954, p. 7. 13F. C. Pontes de Miranda, Tratado cit. (nota 1 supra), p. 313. 14D. Gozzo, Pacto cit. (nota 5 supra), p 42. 15F. C. Pontes de Miranda, Tratado cit. (nota 1 supra), p. 310
terça-feira, 9 de dezembro de 2014

A natureza jurídica da alienação fiduciária

Na coluna passada destacamos a entrada em vigor da lei 13.043 no último 14 de novembro, que modificou uma série de leis anteriores, levando à necessidade de análise pormenorizada de cada instituto alterado. Começamos pela breve análise da alienação fiduciária em garantia dos bens móveis, explicando as alterações no Código Civil e no procedimento do decreto lei 911 de 1° de outubro de 1969. Hoje nossa discussão se resumirá ao artigo 1.386-B, incluído pela nova lei no Código Civil brasileiro. Segundo o artigo 1.386-B "A alienação fiduciária em garantia de bem móvel ou imóvel confere direito real de aquisição ao fiduciante, seu cessionário ou sucessor". A lei é clara e expressa, quanto à aptidão do instituto em conferir o direito real de aquisição ao fiduciante. Será então essa a nova natureza da Alienação Fiduciária: um direito real de aquisição? Fica a pergunta que não quer calar, retumbando em nossas mentes: qual a natureza jurídica da alienação fiduciária? Discute-se as seguintes hipóteses: (i) se direito real de garantia, (ii) se Propriedade Resolúvel, (iii) se Patrimônio de Afetação ou ainda (iv) se Direito Real de Aquisição, posição muito pouco discutida na doutrina brasileira. De gênese romana, o instituto é oriundo da antiga fidúcia cum amico, um contrato de confiança que possibilitava o acautelamento de bens no intuito de evitar riscos e proteger o devedor fiduciante de circunstâncias aleatórias, que poderiam ocasionar o perdimento de bens. O credor fiduciário (amigo) ficava responsável pela restituição dos bens em caso de perda, por exemplo, em uma guerra, por parte do tido devedor. Não havia negócio jurídico subjacente, o objetivo era a proteção contra penas severas, impostas pelo império romano. Posteriormente, essa modalidade se transformou na fidúcia contraída cum creditore pignoris iure, uma garantia real, pela qual o credor de uma obrigação preexistente se tornava proprietário de uma coisa do devedor, obrigando-se aquele, pelo pactum fiduciae, a restituí-la a este, após o pagamento da dívida1. Nesta oportunidade, nasce efetivamente o vínculo principal, o vínculo acessório e as figuras efetivas do credor e do devedor. A alienação fiduciária também está presente em países da common Law, correspondendo ao trust receipt, por meio do qual o devedor transfere fiduciariamente o domínio da coisa como garantia2. Observando a historicidade, é possível conjecturar que o instituto configurava a efetiva propriedade resolúvel, já que o bem, em virtude de garantia era transferido para propriedade do credor e com o pagamento integral voltava ao domínio efetivo do devedor. Dada a contextualização histórica, passemos à análise da possibilidade da natureza de direito real de garantia do instituto. Aqui é bom lembrar que as garantias são relações jurídicas, voluntárias e eventuais, que se ajuntam a uma obrigação com a finalidade de lhe assegurar o cumprimento. Melhor explicando, a sua existência é subordinada à de uma obrigação, cujo cumprimento lhe compete garantir, por isso é geralmente acessória. O direito real de garantia, além de ter por bem jurídico fundamental acautelar o crédito, tem como principais características a circulabilidade, a acessoriedade e a taxatividade. Os intérpretes do direito romano distinguiram duas espécies de garantias: (i) as garantias reais, que garantem o cumprimento de uma obrigação por meio da constituição de direito real sobre coisa do devedor, em favor do credor, enquanto que (ii) as garantias pessoais nascem para fomentar o cumprimento de uma obrigação, ou seja, outra relação jurídica obrigacional. No direito romano, contrariamente à realidade presente, as garantias pessoais tinham um uso mais efetivo que as garantias reais3. Um dos fatores que gerava maior efetividade para as garantias pessoais em relação às garantias reais está no fato da ausência de um sistema formal e registral de controle, que hoje torna a garantia real mais efetiva que a garantia pessoal. Há sensíveis diferenças entre o sistema moderno de garantias reais e o romano. Lá as garantias reais eram a fidúcia cum creditore, o penhor (pignus datum) e a hipoteca (pignus obligatum, hypotheca). A fidúcia cum creditore era a mais antiga e a forma mais primitiva de garantia real. Ademais, não se tratava de um direito real sobre coisa a alheia. Era um negócio jurídico em que o devedor transferia a propriedade de uma coisa infungível ao credor, por meio da mancipatio ou da in iure cessio4, com a finalidade de lhe garantir o cumprimento de uma obrigação. Para tanto, o devedor convencionava um pacto com o credor, o pactum fiduciae, que determinava a restituição da coisa quando a relação obrigacional era extinta. Justamente por isso, não se tratava de um direito real sobre coisa alheia. Embora a coisa dada em garantia do cumprimento da obrigação passasse para a propriedade do credor, extinta a obrigação, caberia a este a restituição ao devedor em cumprimento do pactum fiduciae. Tínhamos então um contrato real, bilateral imperfeito (gera sempre obrigações para o fiduciário e eventualmente para o fiduciante) e de boa-fé. Com o pandectismo, os códigos modernos e o próprio código civil brasileiro de 1916 deixaram obviamente de arrolar a alienação fiduciária em garantia entre os direitos em garantia, posto que para o sistema romano, conforme verificado acima, não tinha essa natureza, além do fato de a hipoteca, na época, desempenhar um papel mais moderno de garantia. Continuando no direito romano, quanto aos inconvenientes dessa garantia, tínhamos: (i) o devedor tinha que transferir a propriedade da coisa ao credor, não estando habilitado a fruí-la enquanto o débito não se extinguisse. Na maioria das vezes o devedor também era obrigado a transferir a propriedade de bem de valor muito superior ao do débito, não lhe sendo permitido utilizar-se dela para a obtenção de outros créditos. Além disso, para reaver a coisa o devedor ficava na dependência da vontade do credor, uma vez que não dispunha contra este de uma actio (ação) que o compelisse à restituição da coisa (nudum pactum) - o fiduciante tinha de confiar apenas na fides do fiduciário. De fato, posteriormente o pretor sancionou este pacto com a actio in factum, sendo que nos fins da república surgiria ainda duas ações in ius: uma era actio fiduciae direta (cabia ao fiduciante quando o fiduciário não restituía a coisa ou não lhe dava o destino acordado) e a outra (b) contraria (cabia ao fiduciário caso o fiduciante se negasse ao cumprimento das obrigações eventualmente surgidas). O surgimento das ações denota o reconhecimento pelo ius civile da fidúcia como um contractus5. No que toca ao credor (ii), mesmo que perfeitamente garantido por meio da transferência da posse, caso esta recaísse nas mãos do devedor, este passado apenas um ano (mesmo no caso de imóveis), recuperaria a propriedade sobre ela mediante a usureceptio6. Evidente que tal falhas poderiam ser supridas caso acordado que a coisa persistiria na posse do devedor a título precário ou de locação. Mesmo com a criação da hipoteca, a fidúcia cum creditore remanesceu no ordenamento romano como garantia real, porém, caiu em desuso no decorrer dos séculos IV e V d.C., tendo em vista que o tráfego negocial e a circulação passaram a exigir celeridade incompatível com o ritualismo da mancipatio e da in iure cessio, e, logo, da própria fidúcia. Importante ter em mente que a fidúcia, quer no período pré-clássico quer no clássico ou pós-clássico, era empregada com diferentes objetivos, patrimoniais ou não. Além da fidúcia cum creditore pignoris iure, dissecada até agora, havia a fidúcia contraída cum amico, quo tutius mostra res apud eum sint, que como o próprio nome diz, colocava uma coisa em segurança junto a um amigo, que se comprometia a restituí-la, conforme pactum fiduciae quando solicitado7. É bom esclarecer que no direito romano tanto na fidúcia como no penhor, o dono perdia a posse da coisa em favor do credor, o que, economicamente, representava grave ônus para o dono, logo desinteressante para fins econômicos. A hipoteca, por sua vez, a terceira e mais recente forma de garantia real no direito romano, eliminava tais inconvenientes, gerando um atrativo comercial. Era uma garantia real, mediante simples acordo, sem que a respectiva propriedade ou posse da coisa passasse ao credor. A coisa em garantia se vinculava unicamente pelo acordo, sendo que cabia ainda ao credor um direito oponível contra todos para a satisfação do seu crédito, se não liquidado pelo devedor. Embora o nome hypotheca seja grego, o instituto é originariamente romano, sendo que a denominação floresceu no período pós-clássico. Muito embora, exista divergência, uma das teses mais aceitas é de que o instituto deriva do arrendamento de terras e do penhor. O arrendatário penhorava os utensílios e materiais para o trabalho agrícola junto ao proprietário para fins de concessão de crédito, porém sem ser desapossado dos bens. Para fins de proteção do credor foi criado uma ação denominada pignus obligatum que no período de Justiniano passou a se chamar hipoteca8. Contudo, é possível desde já observar que o direito romano "evoluíu" da então alienação fiduciária para a hipoteca enquanto hodiernamente "evoluímos" da hipoteca para a alienação fiduciária, o que contradiz, em certa medida, o tão decantado ciclo histórico. Antigamente no Brasil, a inexistência da Alienação Fiduciária em garantia dificultava a retomada do bem no mercado, como já mencionado acima, por isso é uma eficiente ferramenta a favor do sistema de recuperação do imóvel, além de auxiliar na recolocação mais rápida do mesmo no mercado9. Assim, no caso da Lei 9.514 de 1997, o objetivo claro e inequívoco do legislador foi o de facilitar e tornar mais segura a concessão de financiamentos para a compra e venda de imóveis, mormente diante dos inúmeros obstáculos vinculados à hipoteca, principal instrumento até então para o nascimento da garantia. A hipoteca é de execução lenta, ao sabor da delonga dos processos judiciais10, ademais nem sempre possui o privilégio de sobrepujar os demais credores, mesmo os trabalhistas e os fiscais, como garante a alienação fiduciária em caso de falência do devedor. Na hipoteca também não ocorre a transferência da propriedade do bem hipotecado ao credor, sendo que o devedor poderá inclusive hipotecá-la novamente, não obstante conste na matrícula imobiliária o registro da garantia hipotecária anterior. Esta última situação é bastante discutível no que concerne a alienação fiduciária em garantia. Desse modo, o instituto milenar da hipoteca acaba por perder a sua força diante da agilidade e eficiência da alienação fiduciária no contexto imobiliário. A súmula 308 do STJ enterrou a alienação fiduciária ao determinar que "a hipoteca firmada entre a construtora e o agente financeiro, anterior ou posterior à celebração da promessa de compra e venda, não tem eficácia perante os adquirentes do imóvel". Com isso, as instituições financeiras perderam completamente o interesse na hipoteca e passaram a focar na alienação fiduciária. No caso dos outros institutos, o penhor dificulta as negociações mercantis ao exigir a tradição da coisa apenhada, enquanto a anticrese caiu em desuso, dada a complexidade das relações socioeconômicas modernas. Arrematando, a alienação fiduciária não é direito de garantia pela ausência de circulabilidade ou ambulatoriabilidade inerente aos direitos de garantia, e precária na alienação fiduciária , além do fato do bem, em certa medida já ter sido expropriado do devedor, sendo que nos direito de garantia, o bem remanesce na titularidade do devedor até eventual excussão na hipoteca e no penhor. São sistemáticas diferentes, decorrentes da historicidade já mencionada. Passemos à discussão da alienação fiduciária como forma de propriedade resolúvel e, na sequência, patrimônio de afetação. Até a atual mudança legislativa, ora sob análise, vinha o legislador entendendo a alienação fiduciária como propriedade resolúvel de forma expressa nos artigos 1.361 do CC/02, quanto no artigo 22 da lei 9.514/97. Em ambos os diplomas legais, o legislador salienta que o devedor fiduciante, ao celebrar o negócio transfere ao credor fiduciário a propriedade resolúvel do bem móvel ou imóvel. Desde já, é bom salientar que a efetiva transferência só ocorrerá com o inadimplemento da obrigação, chamada de consolidação, não se confundindo, portanto, de forma nenhuma com a propriedade resolúvel. Tanto que os exemplos típicos de propriedade resolúvel são o pacto de retrovenda e o fideicomisso, considerando apenas as propriedades resolúveis por causa antecedente ou concomitante (art. 1.359 do CC/02). No Brasil, a Alienação Fiduciária em Garantia, foi introduzida no ordenamento pela Lei de Mercado de Capitais, 4.728 de 10.07.1965, que também referiu-se ao instituto como um domínio resolúvel, iniciando então a confusão onomástica e técnica. Em 1993, com a Lei dos Fundos de Investimento Imobiliário, N. 8.668, legislador pareceu compreender a inadequação do tratamento como propriedade resolúvel, optando por denominá-lo "propriedade fiduciária", conforme art. 7º da referida lei. Em 1997, pela Lei de Financiamento Imobiliário, n. 9.514, retoma-se o nomen juris "propriedade resolúvel", ao regular a alienação fiduciária de coisa imóvel, tendo, paradoxalmente, a mesma lei facultado a constituição de um regime fiduciário à operação de securitização de recebíveis imobiliários. No Código Civil de 2002, o legislador retoma novamente a ideia da propriedade fiduciária, diferenciando-a da propriedade resolúvel. Entretanto, seus artigos referem-se apenas à alienação fiduciária em garantia de bem móvel, tratada na lei 4.728/1965 e no decreto lei 911/69, parcialmente revogado (derrogado) pelo códex civil. Por fim em 2004, a lei 10.931, ao tratar da afetação patrimonial esbarra novamente na mesma problemática, sem, contudo, resolvê-la. Aliás, este último diploma modifica o decreto 911, o Código Civil e a lei 9.514/97, tendo esta última sido ainda reformulada pela lei 11.481/07. Para esclarecer o assunto, cabe distinguir os conceitos de propriedade resolúvel e propriedade fiduciária. Parte da doutrina entende que em ambas as figuras tem-se a limitação aos plenos poderes de propriedade (absoluto, exclusivo, aderente, perpétuo e limitado). Na propriedade resolúvel alguns autores entendem que a referida limitação decorre da própria autonomia privada, enquanto na propriedade fiduciária, decorre de imposição legal11. Ainda sob este raciocínio, a propriedade resolúvel ocorre quando existente no título formal que originou o direito de propriedade, uma condição resolutiva (eventos futuros e incertos) ou um termo (eventos futuros e certos), cujas ocorrências implicam a extinção do domínio sobre o bem. Desse modo, o proprietário resolúvel age como proprietário legítimo para todos os fins, seja para a prática de atos de administração, seja para a disposição sobre a coisa até o momento de implemento da condição ou do advento do termo. A partir daí, resolvem-se os direitos reais concedidos durante a pendência, de modo que o bem em questão deve retornar ao proprietário anterior (reivindicante), em favor do qual se operou a resolução. Por outro lado, caducada a condição, o proprietário resolúvel se torna o legítimo proprietário do objeto, em função do desaparecimento da restrição sobre a propriedade (opera a perpetuidade). Cabe ressaltar que o proprietário reivindicante, durante a pendência da condição ou do termo, não é verdadeiro proprietário do bem, possuindo apenas a expectativa de direito reivindicatório. Implementada a condição ou o termo, o art. 1.359 do Código Civil faculta ao proprietário reivindicante a coisa em poder de quem quer que a possua ou detenha. Para simplificar um pouco mais a questão, na propriedade resolúvel, independentemente de sua origem tem-se a transmissão dominial do antigo titular para o proprietário resolúvel, podendo o titular reivindicante trazer de volta a coisa, uma vez operada a resolubilidade (art. 1.359 CC). Numa ideia mais simples é isso que se verifica na retrovenda. O proprietário aliena um bem ao proprietário resolúvel e pode reivindicar o bem no prazo máximo prorrogável por três anos, restituindo e reembolsando tudo o que pagou (art. 505 do CC/02). Tal fenômeno não acontece de forma alguma na alienação fiduciária, pois não é propriedade resolúvel, não porque a lei ou a vontade estejam envolvidas; não é propriedade resolúvel porque ao celebrar o negócio o credor fiduciário não se torna proprietário do bem resolúvel e nem o devedor fiduciante se torna titular reivindicante. Ao estabelecer o negócio, o bem deixa de ser de titularidade do devedor, mas também não ingressa no patrimônio do credor. O bem fica afetado, ou seja, sem titular certo. Ocorre como se o bem tivesse sido abandonado ou renunciado, fica num limbo jurídico, fora do comercio, por arbítrio de qualquer das partes. O credor fiduciário, na vigência do contrato não pode usar fruir ou dispor do bem, tem um mero crédito abstrato e insuscetível de ser resgatado na vigência do contrato. Já o devedor fiduciante pode usar e fruir, mas não pode dispor sem a anuência do credor (art. 28 da lei 9.514/07). Obviamente, o devedor fiduciante é muito mais titular da coisa que o credor fiduciário, tem a posse direta, o uso e a fruição. Já o credor como já dito não tem nada, a não ser aguardar a mora e o inadimplemento para aí sim consolidar a propriedade em si. A propriedade, portanto, permanece no limbo até a ocorrência do pagamento ou quitação, ocasião em que o antigo titular (devedor fiduciante) retoma a integralidade de poderes (art. 25, parágrafos 1º e 2º) ou opera-se a mora e o inadimplemento com efetiva consolidação de domínio pelo credor ocasião em que passa a estar obrigado a recolher o ITBI e eventual laudêmio sob o bem (art. 22, § 1º combinado com o art. 26 da lei 9.514/97). KVotamos à pergunta que não quer calar: é a alienação fiduciária em garantia um direito real de aquisição? Muito Embora o art. 1.368-B do Código Civil afirme que sim, a sistemática do instituto não sofreu qualquer alteração de todo acima narrado. Porém para fazer uma análise mais acertada é imprescindível relacionar com um único direito real de aquisição existente no sistema brasileiro que é o compromisso irretratável de compra e venda, disciplinado no artigo 1.417 do Código Civil nos seguintes termos "mediante promessa de compra e venda, em que se não pactuou arrependimento celebrada por instrumento público ou particular e registrada no cartório de registro de imóveis, adquire o promitente comprador direito real à aquisição do imóvel". O dispositivo transcrito estratifica um instituto datado de 1937, por força do decreto lei 58. O compromissário comprador adquire daí o nome direito de aquisição um imóvel porém paulatinamente no tempo, na medida em que paga as prestações periódicas, aos poucos consolida um bem que nunca foi seu para si, esvaziando os poderes do então promitente vendedor, que não pode se arrepender e nem deixar de informar a terceiros na medida em que a publicidade está no fólio real. Ora, o que a alienação fiduciária tem a ver com um direito real de aquisição? No direito de aquisição existe uma única relação jurídica, não há acessoriedade da alienação fiduciária. O objetivo também não é garantir um determinado negócio e sim a aquisição de um bem. Os institutos se aproximam na medida em que o bem dado em alienação fiduciária é o próprio que está sob vias de aquisição, porém o instituto da alienação fiduciária existe para garantir mútuos e outros negócios jurídicos não relacionados ao bem e nesses casos não guardar qualquer relação com o direito real de aquisição. Longe de tentarmos esgotar o assunto o objetivo aqui é apenas fomentar o debate tão necessário para o direito do século XXI. Nosso desejo é de boas festas a todos, um lindo natal e um 2015 repleto de Deus na vida de todos! __________ 1Moreira Alves, J. C, Direito Romano, Rio de Janeiro, Forense, 2010, p. 363.   2Santos, S. C, Risco Legal nas Instituições Financeiras: o impacto da jurisprudência sobre o crédito bancário, Dissertação de Mestrado, Universidade de São Paulo, Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade, São Paulo, 2007. 3Moreira Alves, J. C, Direito Romano, Rio de Janeiro, Forense, 2010, p. 361 4A fidúcia era acessível apenas aos cidadãos romano, justamente porque se constituía por meio da mancipatio ou da in iure cessio (Gaio, Institutas, II, 65). Moreira Alves, J. C, Direito Romano, Rio de Janeiro, Forense, 2010, p. 361. 5Moreira Alves, J. C, Direito Romano, Rio de Janeiro, Forense, 2010, pp. 362-363. 6È, nel diritto romano antico e classico, una sorta di usucapione (v. prescrizione) che per particolari circostanze ha luogo nonostante che il possessore della cosa sia conscio della sua appartenenza ad altri (clique aqui) acessado em 8/12/2014. 7Moreira Alves, J. C, Direito Romano, Rio de Janeiro, Forense, 2010, p 487. 8Moreira Alves, J. C, Direito Romano, Rio de Janeiro, Forense, 2010, p 364 9Virgilio, L. M., Financiamento para Habitações populares no Brasil e no México: uma análise comparada, Dissertação de mestrado, Universidade de São Paulo, Escola Politécnica, São Paulo, 2007. 10Dantzger, A. C. C., Alienação Fiduciária de Bens Imóveis, São Paulo, Método, 2005. 11Martins, R. M, A propriedade fiduciária no direito brasileiro, Revista da EMERJ, v. 13, n.51, 2010 __________ *O artigo foi escrito em coautoria com Ana Paula Ribeiro Ferreira da Costa, graduanda da Faculdade de Direito da USP e pesquisadora jurídica.
Em 13 de novembro último entrou em vigor a lei 13.043 com 114 artigos, todos eles modificando uma série de leis anteriores, trazendo para a comunidade jurídica a necessidade de um estudo pormenorizado de uma série de institutos jurídicos. No nosso caso, a analise recairá sobre o procedimento da alienação fiduciária em garantia de bem móvel, ou seja, o decreto lei 911 de 1° de outubro de 1969. Durante muito tempo, o referido decreto era tido como um ranço do regime miliar, até porque subscrito pelos ministros da marinha de guerra, do exército e da aeronáutica militar. Porém, passados 45 anos, o decreto lei 911 de 1° de outubro de 1969 passou por duas grandes reformas, uma promovida pela lei 10.931 de 2004 e outra, dez anos mais tarde, em 2014, pela lei 13.043, vigente há poucos dias, e que, de certa forma, moderniza o procedimento, coadunando-o à nova realidade social. Contudo, não há como negar que o instituto continua a gerar ainda grandes discussões, tanto em órbita material como processual. Na prática, a Alienação Fiduciária de bens móveis é comum quando um comprador adquire um bem, normalmente um automóvel, a crédito e permanece como possuidor direto e depositário do mesmo, respondendo por todos os encargos civis e penais a ele relacionados. O credor, por sua vez, toma o próprio bem em garantia e a propriedade consolida em suas mãos com o inadimplemento da obrigação. O instituto é amplamente utilizado no Brasil, sobretudo, na compra de automóveis, como já dito. Neste caso, a alienação é registrada no documento de transferência do veículo (DUT) a fim de certificar (súmula 92 do STJ). Em 2004, a lei 10.931 ampliou sobremaneira o instituto da alienação fiduciária no âmbito das empresas financeiras. Permitiu-se a alienação fiduciária em garantia de bens fungíveis, bem como a cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis, tais como os títulos de crédito, além de importantes modificações no procedimento de busca e apreensão de bens móveis, o que repercutiu no mecanismo de purgação da mora, conferindo à consolidação da propriedade tratamento mais compatível com as exigências do mercado. Dentre os destaques da alteração legislativa de 2004, temos o procedimento de busca e apreensão do bem móvel em caso de inadimplemento parcial, ou seja, de mora. O procedimento foi introduzido pelo decreto lei 911/69 e em 2004 a lei 10.931 reduziu para cinco dias o prazo de purgar da mora ou para a consolidação da propriedade fiduciária nas mãos do credor. Melhor explicando, o STJ passou a entender que os §§ 1° e 2° do art. 3° não diziam respeito à purgação da mora, mas sim à necessidade do pagamento integral da dívida pendente - "nos contratos firmados na vigência da lei 10.931/2004, que alterou o art. 3º, §§ 1º e 2º, do decreto-lei 911/1969, compete ao devedor, no prazo de cinco dias após a execução da liminar na ação de busca e apreensão, pagar a integralidade da dívida - entendida esta como os valores apresentados e comprovados pelo credor na inicial -, sob pena de consolidação da propriedade do bem móvel objeto de alienação fiduciária". Com isso o devedor nos 5 dias após a concessão da liminar passou a ter a obrigação de quitar a dívida sob pena de consolidação da propriedade em nome do credor. Pelo Decreto 911/69, despachada a inicial e executada a liminar, o réu era citado para em três dias apresentar contestação e/ou se já tivesse pago 40% do preço financiado, purgar a mora. No caso da contestação, o devedor poderia somente alegar ou o pagamento do débito ou o cumprimento das obrigações contratuais. Para a purgação da mora, o juiz, tempestivamente agendava prazo final não superior a dez dias. Se, mesmo assim, a mora não fosse purgada (independentemente da contestação), cinco dias após o decurso do prazo de defesa o juiz proferiria a sentença, consolidando a propriedade plena e exclusiva nas mãos do proprietário fiduciário (art. 3º, §§). Tínhamos, dessa forma, um procedimento que garantia um prazo de quinze dias para a purgação da mora e direito de contestação anterior à consolidação da propriedade. Embora não tão ágil o sistema seguramente alicerçava-se nos princípios do devido processo legal, ampla defesa e contraditório, garantindo assim, tanto o devedor fiduciante, como o credo fiduciário. Mencionadas as alterações de 2004, dez anos depois, óbvio que o intuito do legislador com a lei 13.041, foi agilizar ainda mais a venda dos bens retomados, conferindo fluidez e mais dinâmica ao mercado, bem como celeridade ao sistema processual. Aliás, esse tem sido o foco das legislações mais recentes. Dentre as principais características da nova lei 13.043 de novembro de 2014 na regulamentação da alienação fiduciária de bem imóveis citamos: (i) alteração na caracterização da mora ex re (prescinde-se de notificação formal); (ii) permanência da proibição ao pacto comissório; (iii) inserção do RENAJUD no procedimento; (iv) precatória simplificada; (v) retirada do bem do depósito em até 48 horas; (vi) agilização na venda direta do bem a terceiros; (vi) possibilidade de apelação da sentença apenas quanto ao seu efeito devolutivo; (vii) possibilidade de requisição pelo próprio credor do pedido de busca e apreensão em ação executiva para a entrega da coisa (art. 4° do decreto lei 911 de 1969, com redação dada pela lei 13.043 de 2014). Vejamos algumas das alterações mais detalhadamente. O contrato que se converte em direito real de alienação fiduciária em garantia bens móveis continua a ser lavrado por instrumento público ou particular, sendo imprescindível para eficácia "erga omnes" o seu registro no ofício de títulos e documentos do domicilio do vedor (art. 129, 5º item da LRP). A especialização do contrato continua com as mesmas bases do art. 1° do decreto lei em questão. Pela recente alteração, a primeira grande novidade está no fato de que em caso de inadimplemento ou mora nas obrigações contratuais passa-se ser imprescindível a prestação de contas do contrato para que o devedor saiba exatamente o valor da dívida e o saldo apurado. Uma vez prestada contas a mora (imperfeição no pagamento) ocorre de forma automática prescindindo-se de notificação via TD ou protesto do título, bastando a carta registrada com aviso de recebimento, não sendo inclusive exigido que a assinatura no documento seja a do próprio destinatário, o que vem a confirmar a solução aplicada pelo STJ2. Trata-se de uma simples notificação extrajudicial, indispensável para o ajuizamento da ação de busca e apreensão (sumula 72 do STJ). O legislador renuncia a segurança em nome da celeridade e da redução de custos. Uma vez comprovada a mora, passa o proprietário credor a ter condição de procedibilidade para a ação de busca e apreensão com direito a tutela liminar, que inclusive pode ser apreciada em plantão judicial. Com a nova redação o direito a liminar passou a ser ininterrupto, garantindo ao credor o direito de buscar o judiciário aos sábados, domingos e feriados, inclusive em recesso. Como já mencionado, a lei 10.931 já havia alterado o sistema anterior que garantia direito a purgação da mora caso houvesse ocorrido o pagamento com pelo menos 40% do preço financiado, ocasião em que o devedor teria dez dias para a referida purgação. Com a mudança de 2004 cinco dias após executada a liminar consolidava a propriedade em nome do credor fiduciário que podia até o prazo de cinco dias quitar integralmente a dívida pendente e com isso se livrar da consolidação sem o pagamento de outro ônus decorrente da mora. Com a nova legislação ao decretar a busca e apreensão do veículo, o juiz passa a inserir diretamente a restrição judicial na base de dados do RENAVAM via RENAJUD, um sistema eletrônico de inserção de constrição. Com tal medida, o bem automaticamente se torna inalienável até a retirada da constrição após a apreensão do veículo e a efetividade formal da liminar já está garantida no sistema, remanescendo o bem fora do comercio, até que o oficial de justiça consiga cumprir a liminar liberando o automóvel para o credor, situação que muitas vezes perdura por meses. Com o fim de agilizar o cumprimento da busca e apreensão, pode o credor, agora, deprecar o pedido para o juízo de outra comarca automaticamente, bastando juntar cópia da petição inicial e do despacho concessivo da liminar. Outra medida agilizadora, está no fato que uma vez apreendido o veículo será intimada a instituição financeira para a retirada do mesmo do local em que se encontra no prazo de 48h. Outra grande mudança está na adaptação do procedimento à decisão do Supremo Tribunal Federal que passou a entender não ser mais possível prisão por dívida decorrente de depósito ou mesmo por depósito puro, revogando, por conseguinte, o art. 4º do decreto 911 que admitia a conversão de busca e apreensão em ação de depósito (STF, Res 349.703 e 466.343, com a publicação da súmula vinculante 25). Pela nova sistemática, caso o bem não seja encontrado, haverá a conversão do pedido de busca e apreensão em ação executiva direta ou convertida e serão penhorados, nos próprios autos bens do devedor quanto bastem para assegurar a execução. Por fim, é bom mencionar que o terceiro interessado fiador ou avalista que pagar a dívida se subrroga na qualidade de credor fiduciário para todos os fins (art.6º). Muito embora discutíveis algumas modificações sob o ponto de vista do devedor e suas garantias, são também louváveis as mudanças na proteção da afetividade do crédito, bem como quanto à agilização do procedimento que em última análise implicará em redução de custo, estimulando ainda mais a indústria automobilística no Brasil. Discussão, que remanecerá para outro registralhas está no artigo 102 da lei em debate que criou o artigo 1.368-B e que entende a alienação fiduciária como um direito real de aquisição. Contudo, esse é assunto para outra hora, até o próximo Registralhas! __________ 1STJ, 2ª Seção. REsp 1.418.593-MS, rel. min. Luis Felipe Salomão, julgado em 14/5/2014 (recurso repetitivo) 2STJ, 4ª Turma. AgRg no AREsp 419.667/MS, rel. min. Luis Felipe Salomão, julgado em 6/5/2014. __________ *O artigo foi escrito em coautoria com Ana Paula Ribeiro Ferreira da Costa, graduanda da Faculdade de Direito da USP e pesquisadora jurídica.
quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Averbação premonitória

Em outras oportunidades destacamos a importância da atividade extrajudicial no Estado Democrático de Direito, inclusive no que toca à dejudicialização sendo neste contexto a averbação premonitória um instrumento seguro que gera cientificação geral de oneração até porque está sob o princípio da publicidade registral e imobiliária e que confere ao operador do direito, tanto exequente, quanto terceiro consulente, absoluta segurança na constrição e cientificação dos terceiros de boa fé de que o bem em questão está sob penhora processual, independentemente de despacho ou decisão judicial. Até o final de 2006 muita confusão havia sobre o exato momento da fraude à execução. Tanto que parte da doutrina entendia que a mesma ocorria a partir do mero ajuizamento da ação executória e outros com base na jurisprudência entendiam que era necessária citação para caracterizar a referida fraude1. Com o advento da averbação premonitória, a súmula 375 do STJ de março de 2009 passou a entender que só a averbação da penhora configura fraude à execução, súmula que deixa claro a força do sistema registral e da sua segurança. A averbação nada mais é do que o ato pelo qual se anota à margem de um assento ou documento - averbar significa lançar à margem de - fatos que alteraram o seu conteúdo. Quando realizada em assento ou documento anteriormente registrado, muito mais do que publicidade, a averbação visa garantir veracidade ao assento retificado. O objetivo é manter o assento atualizado e conforme os ditames do princípio da veracidade. Já a terminologia premonitória, por sua vez, indica, em linguagem jurídica, algo que é prévio ou anterior, antecedente da ação principal2. Premonitório advém de premonição, que nada mais é do que uma antecipação daquilo que pode acontecer, tendo ainda o sentido de pressentimento. Outro sentido mais próprio ainda é o de advertência, já que em latim temos praemonitio onis. A averbação premonitória foi introduzida no Código de Processo Civil Brasileiro pelo art. 615-A, criação da lei 11.382 de 06.12.2006, com a chamada reforma da Execução Extrajudicial. O art. 615-A instituiu mais uma hipótese de averbação, junto às previstas pelo inciso II do art. 167 da LRP, que regula a prática deste ato junto ao Registro Imobiliário. O instituto também serve aos órgãos de registro de veículos, como os Detrans e de outros bens sujeitos à penhora ou ao arresto, como as CVMs para as ações das sociedades anônimas de capital aberto e debentures, os quais foram igualmente obrigados a realizar averbações por meio de certidão comprobatória do ajuizamento de execução, conforme requerimento do exequente (inciso II do art.13 da lei .015/73)3. Como já esperado de uma averbação, o objetivo claro da introdução do instituto foi a publicidade e veracidade pela via dos registros públicos, especificamente dos atos de ajuizamento de execuções por quantia certa contra devedor solvente - é bom deixar claro a inexistência de diferença entre a execução por quantia certa e a execução para a entrega da coisa certa4. Logo, a intenção do legislador, como se pode perceber, foi ampliar a proteção institucional do processo ou fase executiva contra a fraude à execução (parágrafo 3º, art. 615-A). Uma das discussões mais acirradas que se tinha na época (2006) era se a averbação era ato de registro ou de averbação. Pela lei 6.015, é fácil verificar que a penhora é ato de registro conforme o comando que (art. 167, I, 5) já que penhoras, arrestos e sequestros pela lei implicam em registro. Já o Código de Processo Civil passou a determinar a penhora como ato de averbação, conforme determina o próprio artigo 615, A. A questão pacificou-se pela averbação de penhoras, arrestos e sequestros, por força de ser lei posterior e mais benéfica ao destinatário, já que a averbação por regra é menos onerosa do que o registro. De fato, a novidade é digna de elogios, na medida em que viabiliza uma barreira jurídica à alienação ou à oneração fraudulenta de bens do executado, de modo que confere a terceiros o conhecimento do aforamento de ação de execução contra o titular do bem possivelmente alienado ou onerado5. Isso porque inimaginável a aquisição ou a prática de um ato junto a um determinado imóvel sem uma consulta atualizada à sua matrícula, sendo exatamente a linha divisória entre o terceiro de boa ou de má-fé. Portanto, é também mais uma ferramenta com o escopo de prestigiar o princípio da boa-fé objetiva, previsto no art. 113 do Código Civil, além de reforçar os princípios da segurança e eficácia dos atos jurídicos levados ao Registro de Imóveis, à luz do art. 1º da lei 6.015/73 e da lei 8.935/94. Para compreender o instituto é importante saber que a lei não impõe qualquer dever ou ônus ao exequente, este possui apenas a faculdade processual para requerer uma certidão de distribuição da ação. O requerimento e a obtenção da certidão comprobatória são atos praticados após a distribuição da causa, conforme arts. 251 a 254 e 256 do Código Civil. Ademais, as serventias são obrigadas a estarem preparadas material e tecnologicamente para atenderem a demanda dos exequentes6. É importante deixar claro que a averbação é completamente sujeita à vontade e iniciativa do exequente, a quem caberá a diligência quando se tratar de constrição imobiliária junto ao Oficio de Registro de Imóveis, quando de automóveis junto ao DETRAN ou ainda no que se refere a outros bens no órgão de seu controle. O texto da lei não estabelece qualquer prazo para que o exequente encaminhe a certidão comprobatória à averbação, apenas exige que o juízo seja comunicado sobre a realização da averbação, neste caso, no prazo de dez dias (art. 615-A, parágrafo 1º). Isso porque é do ato averbatório que surtem efeitos junto a terceiro e que deve gera comunicação ao magistrado. O dispositivo materializou, na verdade, uma ampliação do campo de incidência do fenômeno da fraude à execução (art. 593 do CC/02). Melhor explicando, quando da entrada em vigor da lei 11.382/2006, instituiu-se no CPC mais uma hipótese diferenciada de fraude à execução, que se enquadra no inciso III do art. 593, "demais casos previstos em lei". Para compreender a importância do instituto, é imperioso ter em mente que o mais comum no passado era a prova de que o executado possuía o conhecimento da demanda capaz de lhe reduzir à insolvência (art. 593, II), apenas por meio da citação no processo executivo para a caracterização da fraude, conforme já mencionada. Hoje, contudo, prescinde-se da citação para a caracterização da fraude, pois basta a averbação da certidão comprobatória do ajuizamento da execução para que a alienação seja tida como fraudulenta, por força da publicidade erga omnes gerada. Na prática o que ocorreu foi a antecipação do momento em que o executado fica impedido de realizar alienações inadvertidas, o que significa uma grande conquista na efetividade do processo de execução. Amplia-se, então, ainda mais a importância da comunicação efetuada pelo exequente ao juízo a respeito das averbações efetivadas7. Logo, o enfoque ao instituto diz respeito à dupla garantia que lhe cabe: (i) elabora a favor do exequente a presunção de que os que adquirirem aquele determinado bem imóvel após a averbação da distribuição da ação executiva à margem da matrícula, foram advertidos dos riscos do negócio sob enfoque (ato de má fé). Portanto, os adquirentes jamais poderão alegar diligência sem certidão da matricula atualizada, sendo presumida a fraude à execução, pois a consulta ao fólio imobiliário é obrigatória em qualquer alienação (Princípio da fé); (ii) garante a ciência do adquirente de que aquele imóvel poderá se tornar objeto de alienação judicial em ação executiva, tornando pública a situação de risco que recai sobre o bem, atingido, dessa forma, tanto a fase "pré" quanto "pós" contratual, nos termos do art. 422 do CC/02. Nesse sentido, a averbação premonitória impõe a assunção de riscos aos terceiros adquirentes do imóvel, uma vez que resulta na presunção da inexistência de diligência, zelo, e por que não falar em boa fé objetiva, com a inversão do ônus processual da prova em desfavor do terceiro, tendo em vista a presunção de fraude. Trata-se de prova diabólica, o que torna difícil falar que a presunção é meramente relativa conforme a boa doutrina. Ademais, o parágrafo 4º do art. 615-A busca um ambiente ético para a utilização do instituto, equiparando a "averbação manifestamente indevida" à litigância de má-fé para fins de indenização (embora não incida a aplicação de multa prevista no art. 18 do CPC, para não gerar um bis in idem). A averbação indevida é equiparada à litigância de má-fé ao invés de ato atentatório à justiça, pelo fato que (i) o ato atentatório se limita às condutas antijurídicas do sujeito passivo, quer dizer do executado, ao tempo que a litigância de má-fé envolve tanto o sujeito ativo quanto o passivo; (II) como consequência da litigância de má-fé existe previsão de indenização, inexistente no caso do ato atentatório; (iii) a averbação indevida não precisa ter relação com processo executivo8. Cabe lembrar a "genealogia" do instituto da Averbação Premonitória. Há 121 anos, já se reconhecia a importância da publicidade a terceiros sobre atos que recaíssem sobre imóveis, tendo em vista o princípio da ambulatoriedade. Prova disto é o decreto 177-A de 1893, que ao regular a "emissão de empréstimos em obrigações ao portador (debêntures) das companhias ou sociedades anônimas", obrigava os diretores das sociedades a requerer imediatamente a inscrição dos bens hipotecados a benefício da comunhão dos futuros portadores de títulos; caso contrário, por perdas e danos perante os prejudicados pela inércia. Em 1973, a lei 6.015 previu que a averbação da penhora faz prova quanto à fraude de qualquer transação posterior. Ademais, os artigos 167, I, 21, e 169 combinados preveem a obrigatoriedade do registro das citações de ações reais ou pessoais reipersecutórias, no que toca aos imóveis. Mais recentemente, antes da publicação da lei 11.382/2006, o STJ confirmou a possibilidade de se averbar o protesto contra alienação de bens no registro imobiliário, em vista do poder de cautela do juiz (art. 798 do CPC). Destarte, há muito o Registro de Imóveis possui a responsabilidade de garantir aos interessados prévia avaliação e cientificação sobre os riscos de determinada transação imobiliária. Por fim, importa deixar claro que a operacionalização do instituto é extremamente simples, basta a diligência ao Registro de Imóveis, com o requerimento do interessado e a instrução documental, com firma reconhecida, além do documento comprobatório da execução, geralmente, materializado pela certidão do distribuidor. Destaca-se a possibilidade da averbação premonitória, com o objetivo de conferir publicidade ao ato de constrição, conforme decisão da 1 VRPSP, julgado em 25/2/2010, processo 100.09336887-8/SP. Em ambos os projetos do novo Código de Processo Civil se mantém o reconhecimento da presunção de fraude à execução, no caso da alienação ou oneração de bens quando existente a averbação seja, de ação, hipoteca judiciária ou de ato de constrição judicial originário do processo. Destarte, a fraude continua passível de reconhecimento antes da citação ou, quando no caso, da penhora, caso o gravame conste no registro público. A única diferença no novo Código de Processo diz respeito à hipótese de inexistência de registro e, por conseguinte, à problemática da prova da boa ou da má-fé do terceiro adquirente. Contudo, abordaremos a questão em momento mais oportuno, sendo que por hoje ficamos por aqui! Até o próximo Registralhas! *O artigo foi escrito em coautoria com Ana Paula Ribeiro Ferreira da Costa, graduanda da Faculdade de Direito da USP e pesquisadora jurídica. _________ 1GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil 1: esquematizado. 1ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011, pp. 345. 2R. L. FRANÇA (coord.), Enciclopédia Saraiva do Direito - Tomo 9, São Paulo, Saraiva, 1978, p. 482 3A. C. da C. MACHADO, Código de Processo Civil Interpretado e Anotado, Barueri -SP, Manole, 2013, p. 1127 4TJ/PR, 14ª Câm. Cível, AI n. 0.418.337-5 / Curitiba, rel. Dês. Celso Seikiti Saito, j. 5/9/2007, DJ 7.455 5A. C. da C. MACHADO, Código de Processo Civil Interpretado e Anotado, Barueri -SP, Manole, 2013, p. 1126 6A. C. da C. MACHADO, Código, cit (nota supra 3), p. 1126 7A. C. da C. MACHADO, Código, cit (nota supra 3), p. 1127 8A. C. da C. MACHADO, Código, cit (nota supra 3), p. 1127
O Direito Marítimo é o ramo do Direito responsável pela organização jurídica e administrativa de relações advindas das atividades intrínsecas à exploração do transporte marítimo, de cargas e de passageiros. Fez-se absolutamente necessária referida regulamentação, empregada, desde os primórdios desenvolvimentistas das sociedades, pelos fenícios, egípcios, romanos, ou seja, pelas primeiras grandes civilizações, de que se tem registro. Foi imprescindível a regulamentação da mencionada ocupação por essas primevas civilizações, seguidas pelas civilizações posteriores, dado o caráter comercial e expansionista dessa ocupação, que forneceu a base econômica e a estrutura de algumas nações. O exemplo marcante da atividade de navegação foi o desenvolvimento Português advindo do comércio marítimo. A navegação portuguesa teve seus primeiros registros nos séculos XIV e XV, com as finalidade de buscar, recursos minerais, vegetais, dentre outras riqueza, do continente africano, em função da proximidade geográfica com aquele. Contudo, foi a partir dos séculos XV e XVI que a navegação passou a ser de fato tratada como um empreendimento, com investimentos inclusive da Coroa, tendo em vista a alta rentabilidade. O Comércio em localizações diversas e a exploração para dominação territorial eram atividades absolutamente lucrativas, que compensavam inclusive os riscos do negócio, dado o fracasso de muitas expedições em meio à falta de tecnologia - desenvolvida gradativamente - e do desconhecimento geográfico-temporal1. Não à toa houve, portanto, desenvolvimento do aparato marítimo, tanto no âmbito do ordenamento jurídico como no campo tecnológico, realizado pelos portugueses. Dentre as conquistas portuguesas, destaca-se a chegada da frota portuguesa ao Brasil em 1500. Comandada por Pedro Álvares Cabral as naus portuguesas, supostamente, desviaram-se de sua rota, que era a de alcançar as Índias, para aquisição de especiarias, este comércio permitia a Portugal apresentar um destacado poder econômico, no cenário mundial. O "desvio", designando de modo ingênuo esse deslocamento das naus, fora programado pela Coroa como forma de garantir a ocupação da já conhecida América do Sul frente as outras nações que seguiam o promissor caminho marítimo português, a exemplo da espanhola2. Assim, Portugal iniciava seu domínio sobre o Brasil, cuja colonização de fato teria seu começo em 1534, com a divisão, do território brasileiro em doze capitanias hereditárias, por D. João III. Natural, portanto, que o Direito Marítimo tivesse por origem basilar a legislação portuguesa. E exatamente assim ocorreu, sendo consubstanciado, por muitos anos, o ordenamento jurídico oriundo das Ordenações do Reino de Portugal, tais como as Ordenações Afonsinas, Manoelinas e Filipinas, respectivamente, dos Reis de Portugal. O período colonial brasileiro, durante bastante tempo, foi regido pelas Ordenações Filipinas. Foi assim até 1822, ano em que houve a proclamação da independência brasileira do jugo português. Os setores do citado código permaneceriam em vigor até que as leis nacionais os substituíssem. Permaneceram vigentes até a alteração de alguns dispositivos: pela outorga da Constituição Imperial de 1824, pelos Códigos Criminal e de Processo, de 1830 e 1832, e finalmente pelo Código Comercial de 1850. A regulação brasileira de fato viria a ocorrer com a promulgação da lei 556, de 25 de junho de 1850, em que o principal ordenamento jurídico regulador da atividade marítima, o Código Comercial, vigoraria. Compreender sua relevância para o Direito Marítimo - inclusive na atualidade - basta examinar-se a Segunda Parte do mesmo que fora destinada integralmente ao comércio marítimo, sendo mantida pelo Código Civil de 2002, no seu artigo 2.045, conjuntamente com a grande parte da legislação marítima brasileira que é composta por leis esparsas. Atualmente, permanece a regulamentação proveniente do Código Comercial Brasileiro de 1850, que fora mantido pelo Código Civil de 2002, em especial nos artigos 457 a 7963. Contudo, a legislação destinada ao comércio marítimo necessitava de fiscalização. A mera ocupação territorial sujeitava-se a invasões e, devido à extensão do território brasileiro, com larga faixa de mar territorial no Oceano Atlântico, do extremo norte ao sul, houve a necessidade dos chamados Órgãos de Controle. Em 1813, D. João VI, o Príncipe Regente, criou as Divisões Navais nas costas do Brasil, de onde surgiu uma ideia efetiva da criação das Capitanias dos Portos, inspirada na atuação dos Arsenais da Marinha e Administrações Navais, cuja função era de defesa em casos de ataques e guerras. Assim, por meio do Decreto de número 358, de 14 de agosto de 1845, foi criada a Capitania do Porto pelo Governo Imperial. Todas as Capitanias que possuíssem portos teriam uma Capitania do Porto, tendo por escopo não somente a defesa militar, mas também a regulação do crescente movimento das embarcações nos portos marítimos e fluviais, auxiliando os portos e a circulação dos bens neles existentes. Foram diversos os Decretos regulando as Capitanias, sua localização, denominação e até sujeição a outros órgãos, atingindo apenas em 1934 o que é hoje, uma seção da Marinha formada por pequenas guarnições fiscalizadoras de rios, lagoas, lagos e costas. Dentre as atribuições das mesmas, há o lavramento de autos de infrações e apreensões por meio da emissão regular de "avisos à navegação", informações locais sobre a segurança da navegação. Além disso, supervisão de operações de ajudas à navegação dentro do porto, coordenação de operações de busca e salvamento, inspeção das embarcações e, eventualmente, supervisão do serviço de pilotagem do porto, funções essas realizadas pelo Capitão do Porto - Oficial da Marinha, contando com experiência náutica, representante da guarda costeira, que tem poder de polícia. Importante salientar serem seus agentes, responsáveis, por exemplo, por inquéritos de determinadas ocorrências4. Há ainda atividades como: cadastro de embarcações, transferências de jurisdição de embarcações, emissão de segunda via de documentos de embarcações, venda de publicações náuticas (cartas náuticas, tábua de marés, por exemplo), habilitação de navegantes (amadores e aquaviários), licenciamento de obras (sob, sobre e as margens das águas), avaliação de segurança para realização de eventos náuticos, avaliação de segurança para realização de mergulho, vistorias e inspeções em embarcações, busca e salvamento, despacho de embarcações e manutenção e fiscalização da sinalização náutica. Além das Capitanias, foi criado o Tribunal Marítimo, órgão cujas competências o tornam único. Até a edição do Decreto no 22.900, de 6 de julho de 1933, os Tribunais Marítimos estavam sob a jurisdição da Marinha Mercante5. No ano de 1954 foi editada a lei 2.180, abarcando toda a matéria acerca do Tribunal Marítimo, que ainda vigora, embora já tenha recebido algumas alterações6. Assim, o Tribunal Marítimo é por lei órgão autônomo, com jurisdição em todo o território nacional, tendo como principais atribuições: julgar os acidentes e os fatos relativos às navegações marítima, fluvial e lacustre, contudo dotado apenas de caráter administrativo posto que suas decisões são pareceres técnicos, sujeitos à revisão jurisdicional, sem a possibilidade de ser vinculada à decisão do magistrado. Outra função absolutamente importante é a de manter o registro da propriedade marítima, especificamente das embarcações com arqueação bruta superior a cem toneladas. Por fim, tem-se a Autoridade Marítima, autoridade exercida pelo Ministério da Marinha7, tendo por incumbência promover a implementação e execução de toda segurança de navegação, nas águas de jurisdição nacional. O objetivo da Autoridade Marítima é salvaguardar a vida humana e garantir a segurança da navegação nas áreas já mencionadas, bem como evitar quaisquer tipos de poluição ambiental, por parte das embarcações, das plataformas, bem como das instalações de apoio, por meio da inspeção naval e vistorias, podendo inspecionar até mesmo embarcações estrangeiras, dotada de autoridade para tomar todas as medidas necessárias à prevenção do dano ambiental, à tripulação e à segurança do tráfego aquaviário, inclusive por meio de sanções. Compete à mesma, ainda, normatizar e regulamentar o serviço de praticagem, determinar a tripulação de segurança e os equipamentos, estabelecer limites da navegação anterior, dotação mínima de equipamentos e definir áreas para refúgios provisórios. Os órgãos de controle do Direito Marítimo estão intrinsecamente ligados à atividade de navegação. Desde os primórdios a regulamentação da atividade e da fiscalização, por meio dos órgãos de controle, foi imprescindível para o sucesso e continuidade das mesmas até os dias atuais. São diversas as funções atribuídas aos mesmos, regulando e fornecendo auxílio a esse vasto e imprescindível ramo do Direito, cuja história e desenvolvimento seguem permeando e fomentando diversas áreas, como a econômica, importantíssima ao país. É bom observar que todos esses órgãos do Direito Marítimo, a saber, o Tribunal Marítimo, a Capitania dos Portos e a Autoridade Marítima não excluem as atribuições do Tabelionato e do Ofício de Registro dos Contratos Marítimos. Observe-se que o Tribunal Marítimo mantém o registro geral da propriedade naval, enquanto o Tabelionato e o Ofício de Registro de Contratos Marítimos têm por objetivo escriturar e assentar os contratos ligados ao Direito Marítimo, cuja operabilidade será analisada em artigo próximo. Até lá! __________ 1BARROS, João de. Ásia. Dos feitos que os portugueses fizeram no descobrimento e conquista dos mares e terras do Oriente. Lisboa: imprensa nacional-casa da moeda, 1988, pp. 367 a 368. 2ANDRADE, António Alberto Banha de. Op. cit., p.69. O autor não se refere à tradução alemã que ganhou vida em 1565, pp. 139. 3O Título IX - Do naufrágio e salvados - arts. 731 a 739, foi revogado pela lei 7.542, de 26 de setembro de 1986. 4BRASIL, decreto 24.288 de 1934 5Conforme regulação até referido Decreto, o Tribunal Marítimo era tratado por meio do Decreto 20829/31, "Art.5º Os Tribunais Marítimos Administrativos, que ora ficam criados pelo presente decreto sob a jurisdição do Ministério da Marinha, terão a organização e atribuições determinadas no regulamento a ser expedido para a Diretoria de Marinha Mercante". 6BRASIL, lei 2.180, de 5 de fevereiro de 1954. 7BRASIL, artigo 39, lei 9.537 de 11 de dezembro de 1997
terça-feira, 14 de outubro de 2014

Tabelionato e ofício de contratos marítimos

Se há um tema obscuro, com escasso material doutrinário e de raríssima reflexão, é o que diz respeito aos tabelionatos e ofícios de registros marítimos. Aliás, só foi possível perceber o grau de implicações e dificuldades ao debruçar-se sobre a matéria para compor um capítulo da obra sobre notas e registro. De início, já se constatou a enorme dificuldade para analisar a legislação que disciplina o assunto em questão. A única precisão legislativa está no artigo 10 da lei 8.935/94, que estabelece atribuição funcional aos tabelionatos na lavratura de contratos, atos e instrumentos relativos a transações de embarcação, bem como ao reconhecimento de firmas em documentos destinados aos fins de Direito Marítimo. Os ofícios de registro de contratos marítimos, por sua vez, assentam os documentos de mesma natureza além de expedir as referidas certidões. Por força do dispositivo acima mencionado, os ofícios de registro e tabelionato de contratos marítimos praticam atos estatuídos na parte II "Do Comércio Marítimo", ainda vigente na lei 556 de 25 de junho de 1850, conhecido como Código Comercial do império. Para simplificar: as Serventias ora sob análise escrituram e assentam contratos previstos há 164 anos pelo Código de D. Pedro II. Não bastasse a referida dificuldade, muito embora os manuais e os decretos mencionem apenas a existência de três ofícios de registro no Brasil, foi possível constatar a existência de quatro Serventias, a saber: Rio de Janeiro (Estado do Rio), Belém (Estado do Pará), Manaus (Estado do Amazonas) e em uma cidade, não capital do estado, Caucaia (Estado do Ceará). Aliás, difícil de entender a não existência da referida Serventia em Santos (Estado de São Paulo), a não ser conjecturando que na época em que a referida legislação iniciou sua vigência, o Estado de São Paulo era bem provincial em relação a alguns dos já mencionados. Outra questão a ser respondida é a da criação de apenas quatro Serventias, lembrando que a costa brasileira tem 9.198 km de litoral. Voltando à dificuldade de se encontrar legislação incidente sobre a matéria em pauta, foi possível constatar que o primeiro Decreto, a tratar do assunto foi o 15.778 de 8 de novembro de 1922, acabou sendo revogado pelo Decreto 11 de 1991, que mesmo disciplinando assunto totalmente estranho, revogou expressamente o decreto imperial mencionado. O outro decreto fundamental sobre o tema é o 15.809, também datado de 8 de novembro de 1922, que disciplina os Ofícios de Registro de Contratos Marítimos, sua competência, estrutura e livros, e que da mesma forma foi revogado pelo decreto 11/91. Outros decretos se seguiram, entre os quais o 5.372 B de 1927 e o 18.399 de setembro de 1928, ainda em vigor. Por incrível que possa parecer o decreto 22.826 de 1933 incorporou seu texto ao decreto 18.399 e ao decreto 5.372 B, de forma que mesmo revogados expressamente continuam a incidir em outro diploma, mostrando a colossal confusão que existe nessa seara. Por fim, cabe mencionar a li 9.764 de 1988 que não alterou os ofícios de registro mencionados, porém autorizou qualquer tabelionato de notas do país, nas localidades em que não haja o tabelionato privativo, a lavrar a escritura dos contratos marítimos. Afora as dificuldades já mencionadas, para que o leitor possa ter uma ideia do tamanho do problema, além do ofício de registro de contratos marítimos existem como órgãos de controle o Tribunal Marítimo e a Capitania dos Portos. O primeiro, com jurisdição em todo território nacional, é um órgão autônomo, vinculado ao comando da Marinha que, além da atribuição adjudicante, tem por atribuição registrar a propriedade marítima de embarcações, entre tantas outras definidas por Lei. Já a Capitania dos Portos é um órgão de autoridade restrita a cada um dos portos, sendo responsável pela segurança da navegação e por cumprir leis e regulamentos portuários. Portanto nesse primeiro artigo sobre o assunto foi possível verificar que os tabelionatos e ofícios de registro marítimos compõem, em última análise, o direito marítimo, ou seja, o conjunto de normas e regulamentos que disciplina todos os aspectos da navegação e exploração do mar e das águas interiores. Num próximo encontro abordaremos a operabilidade das referidas serventias.
O anteprojeto do Novo Código de Processo Civil foi proposto e elaborado por uma comissão de juristas, presidida pelo ministro Luiz Fux, então do Superior Tribunal de Justiça, hoje Ministro do STF, instituída pelo ato 379 do presidente do Senado Federal, ao final de setembro de 2009. Portanto, estamos diante de um projeto que já tramita por mais de cinco anos. Aqui já é bom esclarecer, que a tramitação se iniciou invertida, como mencionado, o processo legislativo teve início no Senado Federal, com o PL 166/2010, passou pela Câmara dos Deputados nela numerado PL 8046/2010 e retornou recentemente ao Senado, devendo salvo novas agruras, ser por esta Casa Legislativa finalizado. Estudando um pouquinho o tema, por incrível que pareça existem, atualmente, no mínimo, quatro versões do futuro Código de Processo Civil. Duas versões iniciais do Senado: - a redação original e seu substitutivo, oriundo do relatório geral apresentado pelo Senador Valter Pereira; a versão aprovada pela Câmara dos Deputados em Abril e a última versão que ainda se encontra, em andamento para aprovação, no Senado Federal. A importância do esclarecimento das diversas versões consiste no fato de que cada uma delas sofreu grandes alterações, em momentos diversos, e com diferentes disposições legais criadas, alteradas e removidas. Ademais, a Câmara dos Deputados realizou profundas mudanças na versão encaminhada pelo Senado, o que sugere, portanto, ainda futuras grandes modificações quando do retorno à Casa de origem. No Senado, o projeto foi elaborado pela comissão composta pelos professores: Luis Fux (presidente), Teresa Arruda Alvim Wambier (relatora), Adroaldo Furtado, Humberto Theodoro Júnior, Paulo Cesar Pinheiro Carneiro, José Roberto dos Santos Bedaque, José Miguel Garcia Medina, Bruno Dantas, Jansen Fialho de Almeida, Benedito Cerezzo Pereira Filho, Marcus Vinicius Furtado Coelho e Elpídio Donizetti Nunes. O objetivo do trabalho foi garantir um novo Código de Processo Civil que privilegiasse a simplicidade da linguagem, a ação processual, a celeridade do processo, bem como o estímulo à inovação e à modernização dos procedimentos, garantindo o respeito pleno ao devido processo legal1. Desse modo, inicialmente buscou-se detectar as barreiras para a prestação de uma Justiça rápida, no intuito de legitimar democraticamente soluções. A tramitação no Senado durou apenas seis meses, quando foram analisados os problemas processuais, particularmente o excesso de formalismo, fomentando, para tanto, pretensas soluções, apesar de muitas delas inspiradas em sistemas judiciais diversos, notadamente nas famílias da civil law e da cammon Law.. Durante a formulação foram ouvidas a sociedade e as comunidades jurídica e científica, em geral, por meio de audiências públicas em todo o país (foram recebidas 260 sugestões e manifestações acadêmicas de todos os segmentos judiciais, desde a Associação Nacional dos Magistrados à Ordem dos Advogados do Brasil, passando ainda pelos institutos científicos e faculdades de direito). Em 2011, o projeto foi para a câmara. Na câmara, os dois relatores da formulação do novo Código, foram os deputados Sérgio Barradas Carneiro e Paulo Teixeira, o projeto foi finalmente aprovado em abril de 2014, retornando ao Senado Federal. A Tramitação na câmara durou três anos, quando houve outro intenso debate entre a sociedade e a comissão especial, além da participação do plenário, envolvendo todos os partidos. O Projeto foi dividido em cinco livros: Parte Geral (Livro I); Do processo de Conhecimento (Livro II); Do Processo de Execução (Livro III); Dos Processos nos Tribunais e Meios de Impugnação das Decisões Judiciais (Livro IV); e Das Disposições Finais e Transitórias (Livro V). Segundo o deputado Paulo Teixeira, o Novo Código foi fundado em oito linhas mestras2. O primeiro grande eixo de inovação envolve a instituição das tentativas de mediação e conciliação, como primeiro passo do cidadão que leva seu conflito à justiça. Para tanto, foi proposta a formação de centros públicos de mediação e conciliação, organizados por comarca e compostos de mediadores e conciliadores com formação especifica e remuneração apropriada. O foco é, antes de tudo, a busca pela solução consensual do conflito. Nesse aspecto, a influência parte do direito estrangeiro, mais precisamente do americano, em que a experiência dos meios consensuais de solução de conflitos se mostra muito bem sucedida. Ademais, também no Brasil as tímidas experiências tanto de mediação como de conciliação, judicial ou extrajudicial, têm se mostrado positivas. O objetivo é tornar a sociedade menos conflituosa. O novo Código abre, dessa forma, espaço para a reformulação da atual cultura jurídica de litigância permanente e interminável, direcionando a solução dos conflitos à negociação e composição pelas próprias partes, em detrimento da cultura jurídica do litígio e da jurisdição. Não à toa a alta composição institucionalizada do novo CPC ensejará outros enfoques formal e acadêmico, e uma nova postura dos profissionais do direito. No mesmo sentido, embora não abordada do Projeto do Novo Código de Processo Civil, cabe aqui lembrar e traçar um paralelo com a iniciativa elogiável da Gestão Nalini, que estendeu às Serventias Extrajudiciais a prática de atos conciliatórios. Tratava-se do provimento 17, que autorizava as 1.535 serventias de todas as modalidades, ou seja, Registro Civil, Registro de Imóveis, Registro de Títulos e Documentos e Tabelionato de Notas ou Protestos, a buscar a via alternativa de solução de conflitos. No entanto, a OAB ingressou com pedido de providências junto ao Conselho Nacional de Justiça, solicitando a suspensão do provimento. Embora em um primeiro momento o conselheiro Jorge Hélio Chaves de Oliveira tenha rejeitado a liminar, entendendo não estar presente o requisito periculum in mora, a OAB requereu nova apreciação e a conselheira Gisela Godin Ramos reconsiderou a decisão, sob o argumento de que a matéria seria de competência exclusiva da União Federal, impossibilitando, portanto, aos "Cartórios" Extrajudiciais de São Paulo a prática dos atos conciliatórios. Segundo o argumento do próprio dr. Renato Nalini, a regulamentação dos atos conciliatórios pelas Serventias Extrajudiciais apenas autorizaria a formalização de acordos, que na prática muitas vezes já são realizados pelas Serventias, principalmente o Registro Civil que goza grande proximidade das pessoas em pequenas cidades, realizando conciliações informais e esclarecendo às partes seus direitos. Contribui, para autorizar notários e registradores a celebrar acordos, o ótimo preparo dos profissionais desta área submetidos a concursos públicos de provas e títulos rigorosíssimos, tanto para provimento quanto para remoção. Sem sombra de dúvida, a auto composição nestes casos gera solução rápida, menos onerosa e, em muitos casos, mais apropriada e satisfatória. O serviço prima pela confidencialidade, informação, competência, neutralidade, celeridade, autonomia, empoderamento (estimulo à cultura de resolução de litígios futuros e à auto composição), validação (estímulo à percepção reciproca como seres humanos) e pelo respeito à ordem pública. Desse modo, com o futuro novo enfoque do direito processual civil brasileiro, por que não a extrajudicialização via serventias extrajudiciais na aplicação dos métodos alternativos de resolução de conflitos? Assim, retomando a ideia do novo Código, além do enfoque nos meios mais adequados de resolução de conflitos, foi proposto ainda o estabelecimento de mais poderes às partes, que serão estimuladas à auto composição durante o próprio processo, notadamente em relação aos ritos, procedimentos e prazos. Para ilustrar, as partes poderão em conjunto escolher o perito e apresentá-lo ao juiz (art. 472, projeto da câmara). Por meio da composição das partes, facultar-se-á ainda a apresentação de propostas de redução de prazos ao juiz, em vista da celeridade no andamento processual. O novo Código possui um viés completamente diferente dos anteriores. Trata-se do primeiro Código de Processo Civil aprovado em regime democrático de governo. O código de 1939 foi outorgado pela ditadura Vargas, enquanto o de 1973 foi muito pouco discutido no regime ditatorial militar. Logo, por tratar-se do primeiro código aprovado em um regime democrático, possui o viés de fortalecimento das partes para a solução do conflito. São paradigmas do novo CPC: 1- A democratização do processo; 2- A menor duração do processo sem a perda das garantias constitucionais; 3- Prestígio ao contraditório em detrimento de decisões liminares inesperadas; 4- Solução de conflitos transindividuais; 5- Isonomia das partes na tramitação do processo; 6- Respeito à cronologia dos julgamentos; 7- Consolidação do processo eletrônico; Por que não criamos um novo paradigma, aproveitando as quatro versões diferentes do Projeto, tramitando há tantos anos no Congresso Nacional? Podemos propor de nossa parte uma maior desjudicialização de atos, fases e procedimentos, criando novas atribuições para os tabelionatos e ofícios de registro, remanescendo à jurisdição apenas questões complexas a fim de atender, com precisão, os anseios da sociedade pós-moderna. Fica aqui a sugestão; até o próximo Registralhas! __________ 1Código de Processo Civil, Anteprojeto, Comissão de Juristas Responsável pela Elaboração de Anteprojeto de Código de Processo Civil, Brasília, Senado Federal 2Palestra proferida em Seminário O Novo Código de Processo Civil no Largo São Francisco em 17/9/14.
Como abordado na coluna anterior, dentro de uma realidade cambiante, temos uma sociedade pós-moderna marcada pela tecnologia e pela extrema celeridade da informação, fontes legítimas dá a sensação de aceleração da passagem do tempo, fazendo inclusive muitos crerem tratar-se de um fenômeno físico, a redução de horas e minutos ao longo do dia. Daí uma das necessidades da criação de um novo Código de Processo Civil para substituir o atual Código da década de 70, que primava pela cognição em detrimento da efetivação dos direitos substantivos. O Projeto vem ao encontro do clamor pela celeridade e eficiência. É nesse sentido, que deveria ser inserida uma ampliação funcional da atividade notarial e registral em socorro ao Poder Judiciário. Geneticamente pautada pela eficiência e celeridade, as atividades extrajudiciais potencializaram-se, ao longo dos últimos anos recebendo, cada vez mais, novas atribuições recebendo, cada vez mais, novos encargos em atendimento à desjudicialização, em consonância com a EC 45/04. Nesse contexto, é impressionante como o usucapião, instituto de origem romana, já de grande relevância desde a Lei das XII Tábuas e do direito Justinianeu - momento da fusão em um único instituto da usucapio e da praescriptio (meio de defesa processual concedido ao possuidor contra quem lhe exigisse a coisa por meio de ação reivindicatória) - adaptou-se à mudança do tempo, passando hoje a proteger muito mais do que a simples tutela da posse, passou a ser meio de regularização formal dos imóveis dentro da tábula registral, que por si só apresenta uma série de exigências formais muitas vezes incontornáveis e o próprio processo de regularização fundiária. Sem sobra de dúvida, a usucapião passou a ser um dos mecanismos de regularização fundiária. Dentro dessa evolução, o novo Código de Processo Civil passou a regular o "usucapião administrativo", buscando efetivar a celeridade e a desjudicialização Por regularização fundiária, entendemos o processo conduzido em parceria pelo poder Público em conjunto com a população beneficiária, envolvendo sempre as dimensões jurídicas, físicas e social, tendo em mente a legalização da permanência dos moradores de áreas urbanas irregularmente ocupadas, para fins de moradia, com melhorias acessórias no ambiente urbano, bem como na qualidade de vida do assentamento, com grandes incentivos ainda no plano de exercício da cidadania pela comunidade, sujeito do projeto1. Dentro do fenômeno da desjudicialização, por sua vez, a ideia saudável é retirar da esfera exclusiva do judiciário a questão da regularização de posse e usucapião. É bom lembrar que o processo de desjudicialização de modo algum mitiga a importância do Poder Judiciário, muito pelo contrário, pois mantém apenas questões de alta indagação que devem, ser decididas pelo magistrado, passando questões burocráticas à Administração Pública. É bem verdade que o Usucapião Administrativo já foi implementado no ordenamento jurídico brasileiro desde 2009 com o Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV). Aliás, o histórico sequencial de leis oriundas da tendência da desjudicialização vem desde 2004, partindo da lei 10.931/04, com a Retificação Administrativa que alterou a LRP em seus artigos 212 e 213, passando pelas leis 11.441/2007 (Inventário, Partilha, Separação, Divórcio, Consensuais por via administrativa) e lei 11.481/2007 (Regularização Fundiária para Zonas especiais de interesse social), chegando por fim, à lei 11.977/2009, modificada pela lei 12.424/2011, com disposições sobre o PMCMV. Todavia, a implementação do Usucapião Administrativo pelo PMCMV teve efeitos bastante limitados, pois (i) foi prevista exclusivamente para regularização fundiária urbana, (ii) envolvendo procedimento administrativo bastante complexo, (iii) a contagem do prazo usucapional se atrela ao prévio registro do título de legitimação de posse (art. 60 lei 11.977/2009). Portanto, compete ao Registrador de Imóveis o reconhecimento extrajudicial do usucapião, a partir do registro da legitimação de posse convertida em propriedade após a passagem de um lustro de tempo (Cinco anos). Interessante lembrar que no Brasil o Registro de Imóveis surgiu justamente com a figura da legitimação de posse no direito brasileiro. Em 1850, a lei 601 (lei de Terras) e seu regulamento 1.318 de 1854 separaram posse privada e domínio público. Na época, foi determinado que todas as demais posses, que não fossem de domínio público, seriam registradas no livro da Paróquia Católica, o famoso registro do vigário. Pelo art. 91 do regulamento 1.318 de 1854, todos os possuidores de terras, qualquer que fosse o título de sua propriedade, ou possessão, ficaram obrigados a fazer registrar as terras que possuíam. Todos os possuidores de terras devolutas foram então obrigados a registrar suas posses nos livros dos vigários o que, por conseguinte, definiu a competência dos primeiros registradores brasileiros como atrelada à situação do imóvel. A competência dos registradores restringia-se à propriedade pública de posse do particular, na época esta era situação do imóvel que poderia ser levado ao registro. A função essencial do registro paroquial era a legitimação da posse para posterior prova do tempo para efeitos de usucapião. Desse modo, com o povoamento, após os latifúndios das sesmarias, surgiram os minifúndios das posses legitimadas. Para a legitimação bastava: (i) a cultura efetiva e (ii) a morada habitual. Com a legitimação prevista tanto na lei como no regulamento, o domínio privado se ampliou ainda mais, em detrimento do domínio público. O processo prosseguiu, desordenadamente, como consequência da insuficiência dos recursos oficiais providos para medição perimetral das terras e das irregularidades processuais, fatores estes que subsistiram em matéria imobiliária brasileira. Todo esse contexto impediu que a realidade fática dos imóveis correspondesse à realidade jurídica, causando além do apartheid social, a inefetividade do sistema registral, que deixou de atender à sua principal função: dar publicidade, a terceiros, dos titulares dos imóveis. A legitimação de posse funda-se no princípio da inviolabilidade da propriedade e da sua função social (art. 5º, inc. XXIII CF), operacionalizada nas diretrizes gerais de política urbana (arts. 182 e 183) e de política agrária (arts. 184 a 191 CF). Temos, portanto, na Legitimação de Posse um instituto verdadeiramente nacional, assim determinado no art. 5º da Lei de Terras "serão legitimadas as posses mansas e pacíficas adquiridas por ocupação primária, ou havidas de primeiro ocupante, que se acharem cultivadas ou com princípio de culturas, e moradia habitual do respectivo posseiro, ou de quem o represente (...)". Nesse sentido, podemos definir a legitimação de posse como "a outorga de título de domínio aos posseiros ou ocupantes de áreas devolutas, tanto em zona urbana quanto rural". Ainda antes da vigência da lei 601/50, a lei 514 de 28 outubro de 1848, reportava-se às legitimações sem mencionar a espécie ou forma, autorizando a cobrança tributária sobre imóveis então legitimados. A lei imperial de terras foi efetivamente a primeira que se preocupou com a regularização fundiária e com a invasão de terras, e autorizou a permanência nos imóveis decorrentes de concessões sesmariais. A circular 260 de 1863 mandou dar preferência aos posseiros, cujas posses tivessem sido anuladas, para adquirirem por compra as terras correspondentes, sendo esta a pedra basilar da estrutura jurídico-agrária implantada no Brasil. O tempo de posse necessário para a referida regularização era de cincos anos antes da medição, e, depois da mesma, pelo prazo de dez anos. Já na época, era indispensável a posse mansa e pacífica, a ocupação primária cultivada e a moradia habitual do posseiro ou preposto e, por fim, o não incurso em comisso (perda da propriedade pelo não cumprimento de exigências legais). Essas mesmas bases relacionais foram mantidas pela lei 6383/76 e pela Lei do PMCMV. Na atualidade, a Lei PMCMV introduziu a legitimação de posse apenas no Sistema Registral brasileiro, vez que a história do instituto remonta na verdade ao processo de ocupação de terras brasileiro. O instituto foi introduzido no artigo 167, inciso I, itens 41 e 42, da Lei de Registros Públicos. O Novo Código de Processo civil nada menciona sobre a legitimação. Prescindir-se-ia, então, da legitimação da posse e consequente conversão em propriedade, na esfera do usucapião extrajudicial? O projeto lograria abandono do instituto de gênese originária do processo de ocupação do território brasileiro? Provavelmente não. Retomando o usucapião administrativo do PMCMV, após a decorrência de cinco anos do registro da legitimação de posse do imóvel, o possuidor poderá requerer ao registrador imobiliário a conversão do título de legitimação em propriedade. Para tanto, basta a documentação apropriada: (i) certidões do Cartório Distribuidor demonstrando a inexistência de ações em andamento, que versem sobre a posse ou a propriedade do imóvel; (ii) Declaração de que não possui outro imóvel urbano ou rural; [assim como (i) deve ser relativa à totalidade da área e fornecida pelo poder público]; (iii) Declaração de que o imóvel é utilizado para sua moradia ou de sua família; (iv) Declaração de que não teve reconhecido anteriormente o direito à usucapião de imóveis em áreas urbanas; (v) área urbana com mais de 250m2, o prazo para requerimento da conversão do título de legitimação de posse em propriedade será o estabelecido na legislação pertinente sobre usucapião. No Novo Código de Processo Civil, o artigo 1.085 (versão mais recente aprovada pela câmara) prevê o reconhecimento extrajudicial do Usucapião também diretamente no Registro de Imóveis da Comarca em que se situa o imóvel usucapiendo. Para tanto, introduz o artigo 616-A na LRP, que exige: a) ata notarial: lavrada pelo Tabelião da Circunscrição de localização do Imóvel, contendo (i) o tempo de posse do requerente; (ii) a depender do caso, o tempo de posse dos antecessores e (iii) circunstâncias; b) Planta e Memorial descritivo do profissional legalmente habilitado, com reponsabilidade técnica e registro no respectivo Conselho de Fiscalização profissional, e pelos confinantes, titulares de domínio. c) Certidões Negativas dos Distribuidores da Comarca da Situação do Imóvel e do domicílio do requerente; d) Justo Título ou outra documentação que comprove: (i) origem da posse, (ii) continuidade, (iii) natureza e tempo; ex.: pagamento de impostos e taxas. Conferida a documentação, o pedido de usucapião será autuado pelo Registrador e o prazo para a prenotação do registro pode ser prorrogado até o acolhimento ou a rejeição deste pedido. O registrador deverá notificar os confinantes e titulares de domínio ou direito real que não assinaram a planta, que possuem prazo máximo de 15 dias para manifestação. A notificação poderá ser pessoal pelo próprio registrador ou por meio dos Correios com AR. O oficial dará ciência à União, ao Estado, DF e município para manifestação em 15 dias sobre o pedido, neste caso a comunicação poderá se dar pessoalmente, por meio do correio com AR ou ainda do Registro de Títulos e Documentos. Em seguida, proceder-se-á à publicação de Edital em Jornal de Grande Circulação e terceiros interessados poderão manifestar-se em 15 dias. O oficial poderá manter diligências para a elucidação de dúvidas e o registro do imóvel com suas descrições e a possibilidade de abertura de matrícula se dará após o prazo da última diligência. O interessado sempre poderá suscitar a dúvida registral, e em caso de problemas com a documentação o pedido de usucapião também poderá ser rejeitado pelo oficial. Neste caso, o requerente poderá ainda ajuizar a ação de usucapião. Do mesmo modo, em caso de qualquer impugnação do processo por terceiros, o oficial remeterá os autos ao juízo da comarca do imóvel e o requerente deverá emendar a inicial para adequá-la. O projeto, portanto só prevê a judicialização do procedimento se houver lide, ou seja, se o terceiro impugnar o ingresso do imóvel no fólio rela, passando então a seguir ao procedimento comum. Interessante ressaltar que, ao contrário do projeto do Novo Código, a lei do PMCMV, embora também tenha privilegiado a via extrajudicial de resolução de conflitos, em momento algum mencionou a participação da figura do Tabelião de Notas na regularização fundiária. O projeto de reforma do Código de Processo amplia a figura do usucapião, desjudicializa e insere o tabelião de notas, o qual deverá aferir o tempo de posse por meio de ata notarial, passando obviamente a gerar uma série de consectários, inclusive responsabilidade administrativa, além da responsabilidade civil e penal decorrentes do reconhecimento temporal. Inclusive, passará ao tabelião a missão de aferir a acessio temporis ou exceptio proprietatis, ou seja, a soma do tempo na contagem do lastro para fins de usucapião. Interessante traçar aqui breve paralelo com direito alienígena, dada a sua influência. Em Portugal, embora o procedimento como um todo também seja majoritariamente gerido na Conservatória Imobiliária pelo registador, o notário atua diretamente no usucapião administrativo por meio da lavratura da Escritura Pública de Justificação Notarial. A opção se justifica em torno da competência notarial para a recepção da vontade das partes, expressando-as em termos jurídicos para o aperfeiçoamento e a segurança do ato pretendido. De toda sorte, remanesce a discussão se o procedimento do novo CPC irá agilizar ou simplesmente criar uma fase prévia, preliminar á jurisdição. Por ora, só o tempo dirá. Após esse breve arrazoado, em que foi possível verificar que o usucapião é adaptação histórica antropológica da realidade social no sistema jurídico formal da propriedade imobiliária, é possível concluir que tanto o direito material quanto o processual vêm numa busca incessante em transformar a posse em propriedade, a fim de garantir uma inclusão social tão necessária para efetuar a dignidade em seu viés da propriedade. __________ 1B. Alfonsin, Direito à moradia: instrumentos e experiências de regularização fundiária nas cidades brasileiras, Rio de Janeiro, Observatório de Políticas Públicas, FASE, IPPUR, 1997
O atual Código de Processo Civil, reflexo da sociedade das décadas de 60 e 70, adotou um modelo pautado na cognição. A sociedade de então era extremamente burocrática, procedimentalista e clamava por um código garantista. A sociedade mudou. A tecnologia aliada a outros fatores trouxe, no mínimo, a sensação da rápida passagem do tempo, o que acabou gerando uma sociedade ávida pela rápida solução da mídia. A atividade notarial e registral apresenta, pelo princípio da eficiência, o DNA da celeridade, tanto isso é verdade que no atual estágio recebe novos encargos decorrentes da tão famigerada desjudicialização. Difícil a ambição do legislador do CPC projetado, pois se insere diante de uma sociedade que clama por celeridade (inimaginável um processo durar dez anos), porém, abrindo mão do devido processo legal e da segurança jurídica, preceitos dogmáticos da ciência processual, tendo por óbvio o substrato constitucional. É fácil perceber que as atividades notariais e registrais passam a ter a função ímpar de auxiliar o juiz na busca da verdade, e isto de maneira célere. Outro desafio a ser enfrentado pelo novo CPC é a crescente litigiosidade social. Estamos falando de mais de 100 milhões de processos para duzentos milhões de habitantes, ou seja, um processo para cada dois cidadãos, independentemente de qualquer faixa etária ou outra condição. Além de estarmos falando de uma sociedade extremamente complexa. Apresentada a questão, serão ressaltadas de forma breve algumas das novidades introduzidas nos projetos do novo Código de Processo Civil (a abordagem incide tanto no projeto do Senado quanto nas alterações providas pela Câmara). Abranger-se-ão algumas das interferências diretas na rotina dos notários e registradores. A nova redação do Código de Processo, de cara, em seu artigo 73, "o cônjuge necessitará do consentimento do outro para propor ação que verse sobre direito real imobiliário, salvo quando casados sob o regime de separação absoluta de bens", já traz o problema da expressão "separação absoluta": refere-se esta à separação total, convencional, abarcando ou não a separação total obrigatória. Haverá discussão na incidência da súmula 377 do Supremo Tribunal Federal, que faz comunicar os aquestos e que, portanto, exigirá, para a propositura das ações reais imobiliárias, o consentimento do outro cônjuge. Além da discussão processual propriamente dita, haverá discussão no âmbito civil ou seja, se o referido dispositivo legal poderia alterar a vênia conjugal nas alienações de bens particulares do outro cônjuge, no caso do regime de separação total obrigatória. Temas que necessitam de uma boa dose de reflexão. Ademais, convém notar que no Projeto do Senado a necessária participação de ambos os cônjuges nas ações reais imobiliárias, como autores ou réus, gerou uma equiparação, por força da adoção de um parágrafo 3º ao artigo 73, no que toca à união estável. Isso significa que os companheiros, homo ou hetero afetivos, terão os mesmos direitos dos cônjuges; porém exigiu comprovação documental da união estável. O parágrafo terceiro em si é louvável já que a isonomia é hoje um principio reinante na doutrina moderna ao tratar de entidades familiares. Porém, exigir prova documental da união estável vai um pouco ao desencontro de uma entidade familiar, que é nitidamente informal, mas que aos poucos vem sendo "formalizada" pelo direito. A redação em questão foi suprimida pela Câmara, passando a gerar outro problema que é o da aplicação, analógica ou não, do referido dispositivo. Outra novidade diz respeito à inserção da gratuidade da justiça estendida agora expressamente aos emolumentos extrajudiciais, inovação proposta pela Câmara dos Deputados. De modo geral, o projeto do Senado Federal seguiu os passos do Anteprojeto que trouxe timidamente poucas regras relativas à gratuidade da justiça. Esse se limitou em seu art. 1.008 a revogar expressamente o art. 17 da lei 1.060/50, que regula a concessão da assistência judiciária aos necessitados. Já o projeto da Câmara vai além e, embora não revogue completamente a lei em questão, considera as mudanças muito mais substanciais à temática. As alterações dizem respeito à concessão do benefício, bem como à sua abrangência (art.. 98), ao momento e forma do requerimento, ao contraditório dele oriundo (art. 99 e 100), aos recursos interponíveis da concessão ou do indeferimento do pedido (art. 101) e à sua cassação1. Todavia, o nosso foco se restringe, como dito, ao inciso IX do parágrafo 1º, pelo qual a gratuidade da justiça também compreenderá "os emolumentos devidos a notários ou registradores em decorrência da prática de registro, averbação ou qualquer outro ato notarial necessário à efetivação de decisão judicial ou à continuidade de processo judicial no qual o benefício tenha sido concedido". Ou seja, referendou o princípio da acessibilidade econômica, consolidando decisões administrativas e jurisdicionais no amplo acesso do cidadão ao sistema burocrático do Estado, dando real efetividade à jurisdição. A terceira novidade aqui enfocada envolve a introdução da "ata notarial" como meio de prova, inovação posta pelo Projeto do Senado, acolhida e aprimorada pela Câmara. A ata notarial se insere como um meio de prova ágil, no qual o tabelião eterniza fatos que estão descritos no livro de notas. É na ata notarial que o tabelião relata tudo aquilo que vê, ouve, verifica e conclui, com seus próprios sentidos e opiniões, sem interferências externas2. A ata adquire ainda maior relevância na medida em que acaba por se constituir como o próprio fim do instrumento, conferindo eficácia aos direitos e prevenindo litígios. Ela foi introduzida no Brasil pela lei 8.935/1994 em seu artigo 7º, inciso III, segundo o qual "aos tabeliães de notas compete com exclusividade: lavrar atas notariais". No entanto, a ata já era utilizada, há muito tempo, por alguns poucos tabeliães, embora ainda hoje, apesar da lei, sua utilização seja incipiente. E, justamente nesse contexto, o novo Código tende a potencializar a fruição deste precioso instituto como meio de prova. A ata notarial pode contemplar toda e qualquer constatação de fatos, abrangendo ainda o reconhecimento de firma, a autenticação de cópias, além da lavratura da ata notarial propriamente dita (art. 7º da lei 8935/94). Nesse sentido, temos a ata como um dos meios de provas mais eficazes do direito nacional, dada sua presunção legal de veracidade. Embora pouco conhecida por muitos operadores do direito, constitui-se instrumento de grande e eficiente utilidade3. Outras tantas modificações importantes foram introduzidas no novo Código de Processo Civil e serão oportunamente mencionadas nessa nossa coluna, não percam os próximos capítulos. Sejam felizes! __________ 1CASSIO SCARPINELLA BUENO, Projetos de Novo Código de Processo Civil - comparados e anotados. São Paulo, Saraiva, 2014, p.85. 2CARLOS FERNANDO BRASIL CHAVES; AFONSO CELSO F. REZANDE, Tabelionato de Notas e o Notário Perfeito, p. 172. 3PAULO ROBERTO GAIGER FERREIRA; FELIPE LEONARDO RODRIGUES, Ata Notarial, douutrina, prática e meio de prova, p. 17.
terça-feira, 19 de agosto de 2014

A corrida registral: foi dada a largada!

Recentemente o ministro Lewandowski suspendeu decisão do CNJ que afastou a aplicação do Estatuto do Idoso, concedendo a titularidade de Serventia a um senhor de 73 anos por meio da regra de desempate pelo critério de idade, determinada expressamente pelo Estatuto. A decisão nos trouxe à mente a recente discussão sobre a questão da prioridade da fila no Registro de Imóveis, tendo sido inclusive objeto de arguição em concurso público de outorga de delegação. As questões são polêmicas e no frigir dos ovos tudo diz respeito à efetividade do Estatuto do Idoso, quer como critério de desempate em concursos, quer no que toca à prioridade de atendimento a idosos, inclusive nas serventias registrais, notadamente no Registro de Imóveis. Reza o Estatuto do Idoso, no capítulo V "Do acesso à Justiça", prioridade de tramitação de processos estabelecendo no artigo 71, § 3º, extensão da prioridade a procedimentos administrativos bem como o atendimento em todos os órgãos da administração pública. O referido dispositivo passou a gerar discussão tanto na fila quanto na prenotação do Registro de Imóveis. Relembrando o princípio da prioridade ou privilégio registral, diante do princípio da obrigatoriedade, se determinado sujeito alienar um mesmo imóvel a diferentes compradores em negócios diversos o adquirente, que primeiro levar o título a registro no Ofício de Imóveis da circunscrição territorial, será considerado seu proprietário (art. 1.245, parágrafo 1º do CC), legitimando o velho jargão "quem não registra, não é dono". E, de fato, a lei acaba por premiar o mais "diligente", o que foi reafirmado em decisão do STJ relatada pelo ministro César Asfor Rocha (1996/0051568-9): "se duas distintas pessoas, por escrituras diversas, comprarem o mesmo imóvel, a que primeiro levar a sua escritura a registro é que adquirirá o seu domínio". Portanto, em havendo títulos contraditórios, a prenotação garante o direito ao que primeiro teve seu título protocolado. Aliás, a eficácia do registro ocorre exatamente quando este é prenotado no protocolo (art. 1246/CC). Na prática, a questão acabou gerando a discussão: se a fila por si só já faz incidir o princípio da prioridade ou o do privilégio registral? É importante frisar que a fila é um importante costume popular que integra o direito (art. 4º da LINDB) e, no caso, tem o objetivo bastante útil e necessário de proteger o mais diligente, ou seja, respeitar aquele que primeiro chegou à serventia registral ou imobiliária. Porém não vamos confundir as coisas, considerando não haver prioridade ou privilégio na fila, pois o princípio vem resguardado a partir do ato de prenotar. Aqui surge uma nova discussão quanto a pré-qualificação do título, ou seja, situação extrema em que o oficial registrador ou seu escrevente se nega a prenotar um título exatamente para proteger o seu titular, como por exemplo, um título de outra circunscrição imobiliária. No que toca à resolução de conflitos entre títulos com direitos incompatíveis, a lei determina o princípio da prioridade de títulos por ordem cronológica, como já mencionado (art. 186 LRP), de modo que o procedimento registral concluído seria apenas o daquele título prenotado em primeiro lugar, por ordem de protocolo (art. 182 LRP). Apresentado o título na serventia ele é protocolado, após a fila de acesso, por ordem de chegada. E com a concretização do primeiro registro, os demais relativos àquele mesmo objeto se veem prejudicados pelos princípios registrais atinentes, já mencionados. Nesse ponto, remanesce a questão: a preferência se dá com a fila ou com o ato de prenotação? Em situação regular, em que só há um escrevente ou oficial atendendo a referida fila é de bom tom que a mesma seja rigorosamente respeitada porque é um corolário da observância cronológica da futura prenotação dos títulos, porém em situação excepcional e como tudo se relativiza, é possível sim em situações diferenciadas uma mudança na ordem da fila sem que isso configure um privilégio desarrazoado, até porque o Estado elege vulneráveis, que têm tutela diferenciada. Por uma questão de equidade, o estado prevê tratamento diferenciado aos cidadãos com diferentes necessidades, no que toca à legitimação da igualdade de tratamento aos usuários. Assim, nos termos da lei 10.741/2003, art. 3º, I (Estatuto do Idoso), idosos, gestantes, lactantes e pessoas acompanhadas de crianças de colo possuem atendimento preferencial e imediato junto aos órgãos públicos e privados. Não há que se confundir tal direito, inclusive no que toca ao acesso à justiça já mencionado, com burla ao princípio da prioridade, pois uma vez prenotado o título, seguirá rigorosa ordem até a efetivação do ato. A efetividade do Estatuto do Idoso diz respeito à prioridade para a chegada ao protocolo, todavia, uma vez protocolado o título, não há qualquer preferência, pautando-se pelo princípio da prioridade registral, já decantado. Na realidade, é a prenotação que garante o direito real do usuário e a fila do protocolo não implica em qualquer prenotação, que na verdade se caracteriza pelo lançamento no livro de protocolo. É importante deixar claro, que a prenotação é o lançamento no livro protocolo de entrada dos títulos, e este observa rigorosa numeração crescente. Todavia, embora a fila seja indício da ordem de prenotação, a grande maioria dos cartórios possuem três ou quatro funcionários diferentes prenotando os títulos, o que leva à incongruência da noção que a prenotação e, por conseguinte, o direito de propriedade se legitime na esquina da Serventia. Felizmente ou infelizmente as Normas de Serviço de muitos estados procuram regular essa matéria. Por exemplo: as Normas da Bahia regulam de maneira adequada, garantindo no art. 28, inc. II, lugar privilegiado na fila a idosos entre outros vulneráveis. Da mesma forma estão as Normas do Distrito Federal e do Espírito Santo. Existem estados da federação, porém, que expressamente excluem preferência ao idoso na fila registral, sendo uma norma, portanto bastante controvertida. Outro fenômeno surgido com o "jeitinho brasileiro" foi a figura do "office-old", antítese do famoso "office-boy". É claro que essa figura, no mínimo simpática, é composta por idosos contratados por empresas para "agilizar" os serviços, e assim, utilizando filas preferenciais a serviços de pessoas jurídicas, abuso que obviamente deve ser rigorosamente coibido. Fica, portanto a questão: deve ou não o idoso e/ou outros vulneráveis ter prioridade no atendimento, nas serventias de Registro de Imóveis, ou devem aguardar junto aos demais para não ferirem a pré-prioridade registral decorrente da fila? Por hoje, ficamos por aqui! Até a próxima Registralhas. Só alegria!
O objetivo da coluna de hoje é discutir a aplicabilidade da Outorga Uxória no regime de separação convencional de bens, passando pelo direito intertemporal, em vista dos casamentos celebrados na vigência da codificação de 1916, chegando, por fim, à operabilidade e à funcionalidade do instituto na atualidade. O Código de 2002 introduziu a prescindibilidade da vênia conjugal no regime de separação convencional de bens. Agora, resta saber se a regra é aplicável aos casamentos celebrados na vigência da codificação anterior. Embora a discussão seja antiga, pautando-se desde os idos de 2003, mais precisamente 11 de janeiro, questiona-se além de tudo o limite interpretativo do tabelião de notas e do registrador imobiliário no exercício de suas atribuições, além de se propor um novo olhar à realidade em benefício da concatenação normativa e da adequação à complexificação social do ordenamento. É bom lembrar que a outorga ou vênia conjugal é a autorização que um cônjuge concede ao outro para alienação ou oneração de bens imóveis com a finalidade de controle, a fim de evitar prejuízo econômico para o cônjuge não titular do referido bem, lembrando ainda que nos regimes de comunhão os frutos, por exemplo, se comunicam, ainda que os bens sejam de titularidade exclusiva de apenas um dos consortes. Apesar de a dispensa da autorização conjugal, em regime de separação total convencional de bens, para alienação ou constituição de ônus reais sobre imóvel ser uma das grandes inovações da codificação de 2002, (art. 1.647, inciso I), na medida em que o Código anterior não dispensava vênia conjugal em nenhuma hipótese, a novidade gerou inúmeras discussões com diversos detalhes problemáticos, principalmente no que toca à atuação do notário no momento da instrumentalização da vontade jurídica de seus usuários e do registrador no momento do assentamento do título no fólio registral. O Código atual gerou uma diferenciação nos regimes de separação total convencional e obrigatória na medida em que a comunidade jurídica continuou a entender vigente a súmula 377 do Supremo Tribunal Federal, que determina vênia no regime de separação total obrigatória, questão que refoge à discussão deste artigo. Quando, de fato, caberia ao notário o controle da outorga conjugal? Em regime de separação total legal cabe o controle? Em casamentos celebrados sob o regime da separação convencional total antes da vigência do Código cabe o controle? Os casamentos realizados anteriormente a 2003 foram ou não abrangidos pelo novo dispositivo? O fato de o Código anterior tratar a matéria vênia conjugal como nulidade absoluta e o atual como anulabilidade gera alguma diferenciação no controle? As dúvidas são múltiplas e as tentativas de soluções ainda mais variáveis. Na prática, o que tem ocorrido é que, por prudência, o tabelião de notas e o registrador imobiliário acabam não dispensando o controle da outorga na separação total obrigatória. Já na separação total convencional, os notários e registradores dispensam a vênia independentemente da época do casamento, adotando, portanto, posição monolítica para ambas as hipóteses. Contudo, quais seriam os benefícios deste instituto na sociedade atual? Ele ainda é operável no que toca à proteção familiar? A reflexão é essencial em vista da complexidade social: graças à família mosaico, à isonomia social e jurídica entre o homem e a mulher, bem como consequência das concepções culturais cambiantes que tornam muitos institutos anacrônicos, principalmente os inseridos no direito de família, sujeitos a ebulições. No diploma de 1916, o artigo 235 previa a anuência recíproca entre os cônjuges como requisito de validade para a alienação ou oneração de bens imóveis, qualquer que fosse o regime conjugal. Anuência esta que se traduz em um consentimento, na verdade uma autorização, que de modo algum se confunde com a representação ou com a assistência. Na representação temos a prática de um ato por um terceiro em nome do representado, na assistência o ato é praticado em conjunto por assistido e assistente, prevalecendo a carga volitiva do assistido. Já na autorização, o sujeito pratica o ato por si só, sendo avalizado por terceiro expressamente imputado por lei. A carga volitiva compete exclusivamente ao praticante, e o outorgante apenas autoriza sua prática. Tanto que a representação e a assistência são hipóteses de validação em matéria de consentimento genérico negocial, enquanto a vênia é matéria de validação no que toca à capacidade específica ou legitimação negocial. São certamente institutos com naturezas jurídicas diversas. A outorga ou vênia é um ato pessoal manifestado, como já dito, por pessoa expressamente prevista em lei, com objetivo de controle dos atos de disposição imobiliária. Os atos de autorização são exigidos pelo artigo 1.647 do Código Civil de 2002 quando da venda, da doação, da troca, da alienação em geral, da cessão de direitos, da renúncia ou de qualquer oneração ou gravame imobiliário, como usufruto, servidão, superfície, hipoteca ou alienação fiduciária, em vista da importância que o sistema confere ao bem de raiz e à sua proteção. Entretanto, qual o motivo da imprescindibilidade da autorização conjugal, evidentemente quando tratamos de um bem particular de um único cônjuge não sujeito à meação? A existência legal da outorga conjugal encontra razão nos regimes de comunhão, também chamado de condomínio germânico, onde não há cota ou fração sobre a coisa na vigência da sociedade conjugal, muito embora os bens, ora em discussão, não estejam sujeitos à referida comunhão. São bens particulares e assim conservam essa qualidade. Porém, os efeitos reflexos é que implicam no referido controle. Como já mencionado, entram na comunhão as benfeitorias em bens particulares (art. 1.660, inc. IV) e os frutos dos bens particulares (art. 1.660, inc. V), logo, uma edícula construída por um cônjuge no imóvel do outro gera comunhão na referida edícula. Por isso todo ato que tenda a onerar ou desfalcar o patrimônio, reduzindo a sua capacidade de utilização, carece do assentimento do cônjuge1 não titular, no caso de bens imóveis ou de direitos a eles relativos. A outorga que se diz uxória, adjetivo correspondente a uxoria, feminino de uxorius, do latim uxor, uxoris, ou seja, referente à mulher casada1, espelha, na verdade, a realidade da primeira metade do século XIX, em que a mulher não estava inserida no mercado de trabalho de forma plena e era financeiramente dependente do marido para sobrevivência. Por isso, o instituto sempre foi utilizado como forma de evitar a dilapidação patrimonial do casal pelo marido, ou seja, a ideia da proteção à mulher casada. Nesse sentido temos o artigo 235 do Código Civil de 1916 (o marido nunca prescindia da outorga uxória em qualquer que fosse o regime de bens estabelecido), bem como o art. 259, que dispunha sobre a comunicação dos aquestos mesmo na ausência da comunhão de bens. Existia tanto a outorga uxória quando a marital. Ao marido conferia-se a condição de chefe da sociedade conjugal, com a colaboração da mulher no interesse da família (Art. 233 do Código Civil de 1916). Assim, ele era responsável pela representação legal da família, com a administração tanto de bens comuns, quanto particulares da mulher, além do provimento da família e da manutenção do domicílio (Incisos I a V do diploma de 1916 mencionado). A justificativa para tanto era que o homem, por possuir maiores atividades profissionais, sociais e econômicas fora do lar, adquiria maior experiência de vida, por conseguinte, maiores condições para solucionar problemas e conduzir a família1. A abordagem que distinguia a outorga marital da uxória terminou com a implantação da moldura isonômica de direitos entre as figuras masculina e feminina pela Constituição Federal de 1988 (Art. 226, parágrafo 5º). Por isso diz-se que a expressão verdadeiramente técnica, a ser usada hoje, seria Outorga Conjugal, válida tanto para o homem quanto para a mulher. Atualmente a outorga é necessária aos atos elencados nos regimes da comunhão parcial de bens, da comunhão universal, bem como no regime de participação final nos aquestos, com exceção do previsto pelo art. 1.656 do CC, que faculta a livre disposição dos imóveis neste último regime, desde que expressamente previsto no pacto antenupcial. É sabido - e já foi reiterado aqui - que o Código Civil de 2002 dispensou a outorga conjugal no regime da separação total convencional, chamada de separação absoluta. No entanto, a dúvida começa pela própria nomenclatura adotada. Na codificação de Beviláqua, a separação podia ser tanto legal quanto convencional, no caso da separação convencional a dispensa da outorga é clara no artigo 1.687 Código de 2002, que dispõe sobre a livre alienação ou gravação dos bens incomunicáveis. A dúvida ocorre na separação obrigatória, se há a incidência ou não da antiga súmula 377 do STF, que determina a comunicação dos bens adquiridos durante o casamento pelo esforço comum (aquestos) no regime da separação convencional. Singular é a súmula ser complementação do artigo 259 do Código de 1916 e que hoje está expressamente revogado. Porém, para não causar mais polêmica ainda, aliamo-nos à jurisprudência que dita a permanência da súmula2, muito embora a mesma esteja com seus dias contados. A segunda dúvida nos remete ao direito intertemporal. A dispensa da outorga é aplicável apenas aos casamentos celebrados após 2003 ou também aos anteriores à vigência da codificação mais recente? A sociedade mudou e o Código atual diz exatamente o contrário do anterior na separação convencional. Agora se prescinde da vênia em regime de separação convencional. O problema, contudo, ocorreu com a uniformização das decisões administrativas, que desqualificaram a outorga para os casamentos sob a égide do regime de separação absoluta, na codificação de Beviláqua3. Observe: CSMSP- Apelação Cível 356-6/0 da Comarca de São José do Rio Preto. Ementa: REGISTRO DE IMÓVEIS - Escritura pública de venda e compra - Recusa com base no art. 235, I, do Código Civil de 1916, combinado com o art. 2.039 do Código Civil de 2002 - Ausência de outorga uxória - Dúvida improcedente - Formalidade legal não inerente o regime de bens adotado - Incidência do art. 1.647, I, do diploma atual, que não afeta ou modifica tal regime - Registro cabível - Recurso não provido." Entendeu-se pela dispensa da outorga em regime de separação na vigência do Código de 2002, qualquer que fosse o tempo da celebração do casamento. A outorga foi entendida como elemento de eficácia do negócio, interpretação, de modo geral, problemática, ignorando o direito adquirido, um ato jurídico perfeito, corroborando na contra mão do estabelecido pelo próprio Código de 2002 em seus artigos 2.039 e 2.035. Para deixar mais claro, foi entendido que a vênia incorporaria o negócio celebrado após a vigência do Código atual. Porém a outorga diz respeito à situação de casado e que segundo o art. 2.039 do CC, obviamente adota as regras do sistema anterior. Não bastasse isso, o art. 2.035 declara: tudo que diz respeito à validade dos negócios (nulidades e anulabilidades), constituídos antes da entrada em vigor do Código atual (casamento), obedece a legislação anterior, obviamente. Tanto que repisando o art. 2.039 da lei Federal 10.406/2002, as regras dos regimes de bens estabelecidas no Código de 1916 devem ser aplicadas aos casamentos celebrados sob sua égide, mesmo na vigência do diploma atual, o que não poderia ser diferente em respeito à garantia fundamental do direito adquirido e do ato jurídico perfeito. Ademais, no art. 6º da LINDB , "a lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada", sendo que o parágrafo primeiro caracteriza ainda o ato jurídico perfeito como o "o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou". Segundo Alexandre de Moraes, "ato jurídico perfeito é aquele que reuniu todos os seus elementos constitutivos exigidos pela lei" e o "princípio constitucional do respeito ao ato jurídico perfeito aplica-se a todas as leis e atos normativos, inclusive às leis de ordem pública"4. O respeito ao ato jurídico perfeito é garantido pela própria Lei Fundamental, art. 5º, inciso XXXVI. Por isso, a regra, de modo geral, é que os efeitos da nova lei apenas alcançam os fatos ocorridos posteriormente ao início da vigência da mesma, trocando em miúdos, trata-se do princípio da irretroatividade das leis. Assim, mesmo no caso da revogação de uma norma, ela não deixa de existir, apenas a sua validade e eficácia ficam prejudicadas, pois ainda permanecem em vigor no que toca ao direito adquirido e ao ato jurídico perfeito, ou seja, em situações que se prolongam no tempo por ultratividade. O direito adquirido se incorpora definitivamente ao patrimônio e à personalidade de seu titular, com efeitos latentes, pois nem a lei, nem o fato posterior podem alterá-lo. Desse modo a outorga em casamentos anteriores a 2003 deveria permanecer até mesmo na vigência do novo ordenamento, mesmo por uma questão de segurança do sistema. Como afirma Maria Helena Diniz, "a segurança do ato jurídico perfeito é um modo de garantir o direito adquirido pela proteção que se concede ao seu elemento gerador, pois se a nova norma considerasse como inexistente, ou inadequado, ato já consumado sob o amparo da norma precedente, o direito adquirido dele decorrente desapareceria por falta de fundamento"5. Logo, se o casamento ocorreu em tempo hábil, na vigência da lei que contempla o direito, e obedeceu aos requisitos de validade do negócio, tais como agente capaz, objeto lícito e forma prevista ou não proibida em lei (art. 82, CC 1916 e art. 104 do atual), além dos requisitos próprios do casamento, gerou direito adquirido, que irradia efeitos. A todo direito corresponde uma ação, de forma que não existe direito sem ação que o assegure ou o faça valer, tornando-o exigível. Direito sem ação não é direito. É bem possível, que os cônjuges, casados sob o regime da separação de bens pelo código anterior, já esperassem ser sua autorização indispensável à venda ou à oneração de imóveis por seu consorte, lembrando ainda que a vênia gerava nulidade absoluta e não a mera anulabilidade do Código atual. Por isso, se um consorte vende um imóvel do seu patrimônio particular sem a outorga ou o suprimento judicial do outro, nasce para o cônjuge ignorado o direito de invalidar a alienação, ou seja, um direito de ação consectário do direito subjetivo. Explicada a questão retomemos o artigo 2.039 CC/02. Para melhor compreender a questão, vale pequena incursão histórica. Conforme exposto nos comentários ao Novo Código Civil sob coordenação do relator Deputado Ricardo Fiuza, o texto original do projeto proposto na Câmara estabelecia que "O regime de bens nos casamentos celebrados na vigência do Código Civil de 1916 é o por ele estabelecido, mas se rege pelas disposições do presente código" Após a passagem pelo Senado com a emenda do senador Josaphat Marinho, o dispositivo ganhou a redação atual, sob a seguinte justificativa: "houve necessidade de se promover a modificação porque se, como dito na parte inicial do dispositivo, 'o regime de bens nos casamentos celebrados na vigência do Código Civil de 1916 é o por este estabelecido', não se regerá pelo novo"6 (grifos nossos). Ora, se o próprio legislador suprimiu a expressão "mas se rege pelas disposições do presente código" foi exatamente para fazer permanecer as disposições de 1916 para os casamentos anteriores a 2003. Trocando em miúdos, o notário ao lavrar qualquer escritura de situação ou de matrimônio anterior a 2003 deve aplicar os artigos do Código de 1916 e jamais os do atual. Ainda no que diz respeito às disposições transitórias do Código de 2002, em uma interpretação sistemática, combinando o artigo 2.039 com o 2.035, que diz que a validade dos negócios e demais atos jurídicos, constituídos antes da entrada em vigor do Código de 2002, obedece ao disposto nas leis anteriores, referidas no art. 2.045, mas os seus efeitos, produzidos após a vigência deste Código, aos preceitos dele se subordinam, salvo se houver sido prevista pelas partes determinada forma de execução, ambas as normas conjugadas trazem à baila a regra do código anterior para os casamentos realizados em sua vigência, vez que a outorga conjugal se trata essencialmente de um elemento de validade, como já dito, nulificava o negócio no Código anterior e o torna anulável no atual. Elemento de eficácia é, por exemplo, condição, termo ou encargo, mas jamais algo invalidante. Anote-se ainda que pelo diploma anterior, a ausência da outorga era causa de nulidade absoluta do negócio (arts. 235, 242 e 252), conforme exaustivamente mencionado, portanto, as regras jurídicas concernentes à outorga marital do Código de 1916 são de ordem pública, não se subordinando às conveniências pessoais de um ou outro cônjuge, e não podendo ser dispensadas a qualquer pretexto1. A nulidade é o estado do negócio que ingressou no mundo jurídico descumprindo requisitos de validade considerados essenciais ao interesse social e à ordem pública. Por isso, em função de sua relevância e gravidade, em caso de infringência de nulidades, a ordem jurídica reage vigorosamente, imputando o grau máximo de invalidade ao negócio7. Todavia, admite-se que o Código de 1916 não era nada didático, pois previa as nulidades em geral, o que acabava gerando confusões e discussões e, por si só, já denotava a imprecisão e agramaticalidade do mesmo. Não obstante, o que concluímos, por se tratar de uma nulidade, é que no diploma anterior, a ausência da outorga era verdadeira afronta à ordem social, vez que de ordem pública. Por tal motivo é que jamais tabelião e registrador praticavam os atos em seu mister sem a vênia, porém autorizavam a alienação do pai para o filho sem anuência dos demais descendentes, pois a matéria sempre foi anulável, de ordem privada, portanto. No Código atual, por sua vez, a outorga é elemento de anulabilidade, neste caso a afronta envolve primariamente o interesse do particular, com tratamento diverso dos casos de nulidade. Destarte, nos casamentos posteriores a 2003, o controle da outorga é de ordem privada, pois o negócio é anulável, já se o casamento se deu antes da codificação atual e, nos dias atuais, haja uma dispensa do controle, o negócio é nulo, incidindo questão de ordem pública. Em qualquer hipótese, abordamos atos de legitimação, ou seja, da capacidade especial exigida por lei, que implica em elementos de validade (art. 104, inciso I) do ato. E a atitude da jurisprudência tem sido contra legem, dispensando a outorga para casamentos, sob fundamentos os mais variados e inusitados. E é aí que surge o nosso maior problema, pois embora pragmaticamente essa abordagem jurisprudencial realmente seja a opção mais simples, ela não é técnica, pois, como dito, tratamos de elemento de validade do negócio jurídico, não de eficácia como entendeu a jurisprudência mencionada. Diante de toda essa complexidade normativa, como ficam os tabeliães e registradores? Como atos administrativos, os atos dos oficiais extrajudiciais adstringem-se às regras do ordenamento jurídico, devendo sempre pautar-se pelo princípio da legalidade. Seus atos não são dotados de discricionariedade (conveniência e oportunidade). Ademais, a inobservância das prescrições normativas pelo oficial é motivo de infração disciplinar, conforme art. 31, inciso I, da lei Federal 8.935/1994. É nesse sentido que os oficiais de modo geral acabam exigindo a outorga conjugal em qualquer hipótese para o ingresso do negócio no fólio real. Porém, na prática dispensam, na separação total convencional, a outorga conjugal, qualquer que seja o período do casamento e gerando, como consequência, uma série de negócios nulos. Arrematando tudo o que foi dito, fica apenas a reflexão: O fenômeno jurídico é em sua essência multifacetado, e deve ser lido, entendido, examinado e interpretado apesar de sua complexidade. A sociedade atual tende a simplificar institutos como os ora analisados, apesar de sua alta complexidade. Como deve se pautar o notário e o registrador diante de situações como a ora analisada? Toda ação deve basear-se na análise e observação da jurisprudência e, então praticar o ato? Ou deve se pautar por um estudo e reflexão e negar a prática do ato, que em tese implica em nulidade absoluta, e, portanto vício insanável de ordem pública, e que na prática pode ocasionar sérios prejuízos ao cônjuge prejudicado. Fica a reflexão. __________ 1Enciclopédia Saraiva do Direito. Coordenação Prof. R. Limongi França. São Paulo. Saraiva. 1977. 2 STJ - REsp 1.163.074-PB. DJ 04.02.2010 3CSMSP - Apelação Cível 356-6/0. 4MORAES, Alexandre. Constituição do Brasil Interpretada, Atlas, São Paulo, 2002, p. 299 5DINIZ, Maria. Helena. Lei de Introdução do Código Civil Brasileiro Interpretado. Saraiva: São Paulo, 9ª edição, 2002, p. 185 6Novo Código Civil Comentado. Coordenador: Ricardo Fiuza. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 1858 7VELOSO, Zeno. Invalidade do Negócio Jurídico. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 35.
Na perspectiva do constitucionalismo social, que tem por base solidariedade e fraternidade, passa a pulsar valores como a verdade (as Constituições não contemplam promessas impossíveis nem consagram mentiras); consenso (a Constituição é fruto de uma construção social); solidariedade (são erradicadas todas as formas de discriminação); continuidade (a Constituição tem sempre por base a lógica dos antecedentes); integração (previsão expressa de órgãos supranacionais) e universalização (os direitos fundamentais internacionais estão previstos). Essa nova ordem constitucional decorre, entre outros fatores, da ideia da globalização permeada por uma mescla de culturas em contato dentro de uma unidade mundial, contexto este em que os Estados paulatinamente abandonam sua posição de centros de poder e ao ceder espaço aos mercados, colocando em choque enormes diferenças culturais, que acabam incorporadas aos respectivos ordenamentos jurídicos. Destarte, em vista do direito como elemento da cultura dos povos e da transformação deste com a crise da pós-modernidade, houve uma explosão legislativa em benefício da proteção aos valores e direitos humanos consagrados, a qual, por conseguinte, gerou a ampliação dos conflitos e dúvidas normativas, sob os riscos da desdiferenciação. Não à toa, motivado pelo contexto apontado, Erik Jayme, professor da Universidade de Heidelberg, desenvolveu a tese do Diálogo das Fontes na Alemanha, trazida, mais tarde, ao Brasil por Cláudia Lima Marques, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É bom mencionar um elemento paradoxal na medida em que o pós-positivismo surge como uma nova teoria concernente à normatividade dos princípios, de forma que a norma passa a ser constituída por princípio e regra, em tese deveria implicar numa redução do arcabouço legislativo, porém tal não ocorreu. Eduardo Bittar define a pós-modernidade como um estado reflexivo da sociedade ante suas próprias mazelas, apto a motivar um revisionismo completo de seu modus actuandi et faciendi. O que ocorre é um amadurecimento social, político, econômico e cultural, inaugurando antes de um encerramento com a modernidade, uma miscigenação entre passado e presente, com resquícios de antigas aquisições positivas e inovações exigidas diante das transformações geracionais1. É desse modo que se opera uma revisitação das premissas da razão pura, por meio da análise da realidade dos conceitos da dita modernidade2. Entre idas e vindas, com codificações, descodificações e microrrecodificações, surge então a discussão sobre o fenômeno da revogação de normas, que nada mais é que a supressão (perda de validade) da força obrigatória de uma lei, retirando-lhe em última análise sua eficácia. A revogação abrange um termo genérico, que indica a cessação da validade norma como já mencionado. Ela pode se dar por meio de ab-rogação (revogação total), derrogação (revogação parcial), bem como por declaração de inconstitucionalidade; pode ser expressa ou tácita, neste caso por uma incompatibilidade de normas mais recentes com as antigas. No positivismo era fácil entender o fenômeno da revogação na medida em que a supressão de validade era regra até para a manutenção da dita pureza ontológica do sistema. Tanto isso é verdade que resta até hoje consagrado o art. 2 º da LINDB. Com a mudança dos tempos a ruptura e a supressão permanente de uma norma vigente já não parecem mais ser tão indiscutível assim na medida em que uma norma possa incidir sem exatamente suprimir a outra incompatível, por força inclusive de uma força necessária entre as normas. Ainda em relação aos conflitos intertemporais, segundo o §2º, do artigo 2º da LINDB, a lei nova que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior, nesse sentido o próprio sistema dispõe sobre a possibilidade da coexistência das normas de caráter geral e especial, muito embora não seja a regra no modelo revogador. De fato, a incompatibilidade entre ambas apontaria no sentido de sua revogação. Contudo, pode ser que a norma especial apenas introduza uma exceção ao princípio geral, de modo que ambas coexistam. A lei é uma ordem dirigida à vontade geral, portanto, uma vez em vigor, ela se torna obrigatória para todos (art. 3º LINDB). Quando duas normas conflitantes incidem sobre um mesmo caso, aplicando soluções incompatíveis, temos as famosas antinomias, simples ou de segundo grau (incompatibilidade entre os critérios de aplicação). Para a resolução de antinomias aparentes, utilizam-se critérios pautados na cronologia, na especialidade e na hierarquia de normas e, caso estes não resolvam o problema, estaremos diante de uma antinomia real, para a qual os artigo 4º e 5º da LINDB preveem o uso de analogias, costumes, bem como dos princípios gerais do direito, em vista dos fins sociais aos quais a norma se dirige à exigência do bem comum. Estes são modos de explicitação da integridade ou plenitude lógica do sistema jurídico positivista. Por fim, importante não esquecer que o sistema de direito intertemporal funda-se no princípio da não repristinação das normas, o que significa que uma norma revogada jamais volta a viger. Dito isto, vamos ao problema. Com a evolução dos direitos fundamentais em sua primeira, segunda, terceira e, hoje, quarta e quinta gerações, com a garantia não apenas da liberdade, igualdade e fraternidade social, vindas das primeiras gerações, mas também do patrimônio genético com a intimidade biológica e do direito eletrônico no mundo digital ou cibernético, houve a chamada explosão normativa. Nesse contexto, há uma pluralidade de sujeitos a proteger, por vezes difusos. Na realidade extrajudicial notarial e registral, não é diferente a intensificação da valorização dos direitos humanos e das liberdades, bem como a tutela dos valores colocados à disposição da pessoa e sua qualidade de vida. Há uma abundância de gêneros e espécies normativas, dentro de uma pluralidade de sujeitos e de direitos, com um excesso de fatores que influenciam as relações jurídicas, o que incorre na eclosão sucessiva de leis, provimentos, decisões administrativas e jurisprudenciais, além de Consolidações Normativas díspares em cada Estado da Federação. Temos então um Big Bang legislativo3, que desnorteia o aplicador no que toca à incidência do tipo normativo, a dita fattispecie. A situação é de dúvida constante sobre qual norma jurídica incide no caso concreto. É nessa linha que Erik Jayme aponta como características da cultura pós-moderna o pluralismo, a comunicação, a narração, que chama de les retour des sentiments, enquanto que a valorização dos direitos humanos é o leitmotiv da pós-modernidade. Tudo isso resulta na multiplicidade de fontes a regular um mesmo fato, em meio à codificação e descodificação e à implosão de sistemas normativos genéricos (zerplieterung)4. Os valores e princípios passam a atuar com uma dupla função, trata-se do "double coding", com valores muitas vezes antinômicos. É justamente esse duplo sentido das coisas que se choca com a antiga visão maniqueísta do Direito. Como exemplo fático, pegamos o regime de separação absoluta de bens introduzido pelo Código Civil de 2002. Na realidade concreta do antigo direito positivado, ele enfoca o regime de separação convencional, o regime de separação obrigatória ou ambos? No caso do regime de separação obrigatória, incidiria ainda a súmula 377do STJ em vista da comunicabilidade dos bens? Destarte, neste contexto, deve o tabelião controlar ou não a outorga uxória em regime de separação de bens obrigatória ou convencional? Sem dúvida, a problemática do direito intertemporal é fator agravante diante da pluralidade normativa. Para solucionar a expressiva rigidez das regras, no contexto pós-positivista recorre-se aos princípios, hoje positivados na norma. Pelo princípio da juridicidade, o tabelião, como operador do direito, pautado pelas normas no ordenamento, exerce uma atividade tanto técnica quanto jurídica ao instrumentalizar a vontade das partes em uma atividade meio à concreção de negócios jurídicos. Nesse espectro, como deve ele se pautar na confecção de uma escritura pública? Apesar da técnica principiológica que permeia a atuação do operador do direito, deve o tabelião estar jungido à regulação normativa, não obstante a mesma sendo difusa. A proibição não é à toa. A hipertrofia dos princípios também se mostra desdiferenciante, pois possuem uma textura excessivamente aberta criando espaços para decisões com fundamentação moral, o que gera grandes problemas em uma sociedade na qual as perspectivas de observação do direito mais é a mais variável possíveil, com enquadramentos diverso, levando à fragilidade ou subcomplexidade da teoria dos princípios desenvolvidas por autores como Dworkin e Alexy. É por isso que hoje os princípios são utilizados mais diretamente para o balizamento e para a construção de regras5. Enquanto os princípios, como diria Marcelo Neves, são normas de normas, que abrem a cadeia argumentativa substantiva aos diálogos interdisciplinares - o que acaba deixando a relação entre antecedente e consequente normativo extremamente maleável e flexível -, as regras orientam-se por argumentos formais que fecham a cadeia normativa, apesar do modelo excessivamente formalista que tende à inflexibilidade6. Os problemas da rigidez de um ordenamento com base exclusivamente em regras gravitam em torno da presença de inconsistências normativas, de lacunas em sentido estrito e da indeterminação semântica em função de vaguezas e penumbras (lacunas semânticas). A lacuna ocorre quando não há qualquer norma regulamentando certo comportamento, ou quando a norma que existe não está em consonância com o próprio ordenamento (lacuna axiológica), gerando o vazio incômodo no sistema. Vejamos, por exemplo, o antigo instituto da Constituição de Renda sobre imóveis, de origem romanística, frequentemente utilizado no passado para a prevenção da usura. As rendas constituídas sobre imóveis eram regulamentadas pelo Código de Beviláqua em seus artigos 749 a 754 e constituíam direito de natureza real, portanto erga omnes, que gravava determinado bem em raiz, obrigando seu proprietário a pagar prestações periódicas. O instituto fora amplamente utilizado para a aplicação de capitais, em vista da frutificação do capital imobiliário, sem o risco de ser condenado como negócio usurário. Nele, o censuário ou rendeiro recebia o capital com o encargo de pagar certa renda, logo, era tanto o devedor da renda como o adquirente do capital; já o censuísta ou instituidor era o responsável pela entrega do capital, além de constituidor de renda em benefício próprio ou alheio, portanto o credor da renda. Hoje, contudo, com a estabilização econômica do país e a evolução jurídica ele caiu em desuso em benefício de institutos mais eficientes, de menor complexidade e com resultados equiparáveis. Nesse contexto, o atual Código acabou por não contemplá-lo no rol dos direitos reais do artigo 1.225, embora antigamente presente no artigo 674 do Código de 1916, em meio aos direitos reais. Hoje, o Código atual aborda o instituto da Constituição de Renda que pode ser sobre móveis ou imóveis, em seus artigos 803 a 813, isto é, no rol dos direitos contratuais, portando em uma relação específica entre privados, não mais erga omnes. Contudo, aqui insurge a problemática, na medida em que a antiga Constituição de Renda sobre imóveis ainda consta no rol de títulos registráveis do artigo 167 da Lei dos Registros Públicos. Daí a discussão: cabe registro? Os civilistas dirão que não, uma vez que não está presente no rol dos direitos reais do código. Os registradores, por sua vez, dirão que, uma vez presente no artigo 167 da lei vigente, o instituto ainda está em vigor, portanto entre os títulos registráveis. De fato, o que ocorre aqui é uma antinomia de segundo grau, ou seja, uma incompatibilidade da norma geral posterior com a norma especial anterior. À maneira do legislador racional, a deliberação civilista não é exaustiva ou exauriente, contudo as alternativas não são uniformes. Temos então um incômodo universal gerado pela exigência de uniformidade no ordenamento no que diz respeito à escolha do legislador racional. Para a averiguação do critério sintático caberia então avaliar todas as combinações possíveis de propriedades relevantes a serem consideradas. No entanto, o que notamos de fato é o double sense, em que duas normas incidem sobre um único contexto, gerando ao mesmo tempo uma antinomia quanto à registrabilidade do título. Diante da famosa tese da completude necessária do ordenamento, Kelsen diria: não pode haver incompletude! Mas, e agora, José? Caso o usuário se apresente com um título de Constituição de Renda sobre Imóveis a registro, qual a atitude deve ser adotada pelo oficial de imóveis operador do direito? A base da teoria do Diálogo das Fontes de Erik Jayme é de que as normas jurídicas não se excluem apenas porque supostamente pertencem a ramos jurídicos distintos, elas, na verdade, se completariam, integrando o sistema misto e interagindo entre si. Neste caso, do ponto de vista legal, a comunicação se dá entre o Código Civil e a LRP, como dito, especificamente entre o rol do artigo 167 da LRP e o art. 1.225 Código Civil, em vista da transmutação da Renda Constituída sobre Imóveis do lócus dos direitos reais aos contratos privados em espécie. Repise-se que, os títulos registráveis previstos na legislação civilista não obedecem a um rol taxativo exauriente, sendo apto a registros outros títulos não previstos. Assim, a solução para a aproximação entre o Código Civil e a LRP é principiológica, com a superação da interpretação insular do Direito, em benefício da funcionalidade do sistema. Com a multiplicação entrópica da pluralidade de normas, o diálogo das fontes direciona o operador em meio à tempestade normativa, em vista da necessidade de coordenação das leis dentro de um mesmo ordenamento jurídico. A monossolução é anacrônica. Requer-se a efetividade dentro de paradigmas éticos para solução de hipertrofias, pois em um sistema plural e hipercomplexo é vital que as soluções também sejam fluídas e flexíveis, com enfoques diferentes a situações diferentes, com mobilidade e fina distinção casuística7. Nesse contexto, a ruptura e quebra de determinados paradigmas em detrimento de outros é substituída pela convivência entre os mesmos, consubstanciado no princípio da tolerância. Por fim, o diálogo entre as normas ocorre diante de influências recíprocas, com a aplicação concomitante de normas em um sistema misto, seja de forma complementar ou subsidiária. Logo, temos uma solução flexível e aberta, com a interpenetração e a busca pela norma mais favorável ou vulnerável, sempre tendo por suporte máximo a eticidade.. Voltando ao nosso exemplo, é perfeitamente possível o registro do título de constituição de renda sobre imóvel sem prejudicar a coerência do sistema. Nessa linha, para que ocorra o diálogo, são possíveis três situações: (i) a aplicação simultânea de duas leis, sendo que uma é a base conceitual para a outra; (ii) a aplicação coordenada de duas leis quando uma norma completa a outra, de modo que pode ser direta no diálogo de complementariedade ou indireta no diálogo de subsidiariedade; e, por fim, (iii) o diálogo de influências recíprocas sistemáticas, em vista de conceitos estruturais interligados8. A constituição de renda sobre imóveis incidiria no item ii, em função da coordenação, complementariedade e até subsidiariedade existente entre o Código Civil e a LRP. O diálogo das fontes surge para substituir e superar os critérios clássicos das antinomias jurídicas. A comunicação normativa é perfeitamente harmonizável junto ao direito notarial e registral repleto de provimentos, decisões administrativas e jurisprudenciais, consolidações normativas, leis, codificações e princípios jurídicos a serviço do operador e do usuário das serventias. Conclui-se, dessa forma, que, ao adotar a ideia do diálogo, temos exatamente uma facilitação da operacionalização do sistema, pois, como no caso apontado, embora a renda constituída sobre imóvel não incida para o direito material como um direito real, é um título perfeitamente apresentável a registro. Cabe apenas ao tabelião a orientação ao usuário, prudencialmente, diante do instituto que melhor instrumentalizaria a vontade das partes para a concreção de atos perfeitos e seguros. Contudo, a escolha é do usuário, em vista da tolerância do ordenamento e da possibilidade de se aplicar uma norma em um caso e norma diversa em outro, em benefício da funcionalidade sistêmica. Nessa alinha de raciocínio, é bom concluir que em última análise o Big Bang legislativo está aí e compete em primeiro lugar ás Corregedorias da Justiça dos Estados sorver boa parte dos problemas notariais e registrais, bem como ao CNJ com seu poder normativo, porém em última análise cabe ao operador do direito sob o paradigma ético garantir efetividade ao usuário e cidadão. Referências Bibliográficas : Cláudia Lima Marques; Antonio Herman Benjamin; Leonardo Roscoe Bessa. Manual do Direito do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 3ª ed, 2010, p. 91 Daniel Amorim Assumpção Neves; Flávio Tartuce. Manual de Direito do Consumidor. São Paulo: Método. 3ª ed. 2014. P. 3-22 Eduardo Bianca Bittar. O direito na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Forense Universitária. 2005. P.97-100 Marcelo Neves. Entre Hidra e Hércules - Princípios e Regras Constitucionais. São Paulo: Martins Fontes. 2013 __________ 1Eduardo Bianca Bittar. O direito na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Forense Universitária. 2005. P.97-100 2Daniel Amorim Assumpção Neves; Flávio Tartuce. Manual de Direito do Consumidor. São Paulo: Método. 3ª ed. 2014. P. 3-22 3Expressão simbolizada pelo jurista argentino Ricardo Lorenzetti em sua obra Teoria da Decisão Judicial. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2ª ed. 2014. 4Daniel Amorim Assumpção Neves; Flávio Tartuce. Manual de Direito do Consumidor. São Paulo: Método. 3ª ed. 2014. P. 3-22 5Marcelo Neves. Entre Hidra e Hércules - Princípios e Regras Constitucionais. São Paulo: Martins Fontes. 2013 6Marcelo Neves. Entre Hidra e Hércules - Princípios e Regras Constitucionais. São Paulo: Martins Fontes. 2013 7Cláudia Lima Marques; Antonio Herman Benjamin; Leonardo Roscoe Bessa. Manual do Direito do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 3ª ed, 2010, p. 91 8Daniel Amorim Assumpção Neves; Flávio Tartuce. Manual de Direito do Consumidor. São Paulo: Método. 3ª ed. 2014. P. 3-22
Em recentíssima decisão, a quarta turma do Superior Tribunal de Justiça reconheceu o direito real de habitação à pretensa companheira supérstite que ajuizou ação de manutenção de posse antes mesmo do reconhecimento expresso de união estável. Embora a questão tenha provocado inúmeras discussões sobre a necessidade ou não de prévio reconhecimento de união estável, a problemática, na realidade não é esta. O direito real de habitação vidual foi acrescido ao Código Civil de 1916 a partir do Estatuto da Mulher Casada de 1962 e tinha por objetivo a proteção à mulher viúva. É bom lembrar, que o referido estatuto espelhava uma realidade da primeira metade do século XX, na qual a mulher tinha sua capacidade civil reduzida, não estava inserida no mercado de trabalho de forma plena e entre as várias medidas tomadas pelo estatuto estava a bipartição dominial, que transferia a nua propriedade para os então herdeiros necessários, descendentes e ascendentes, e a fruição plena ou restrita para a mulher supérstite, enquanto mantivesse em estado de viuvez. Hoje a realidade social é completamente diversa não só no que diz respeito à mulher que passou a ter total isonomia com o homem social e juridicamente (art. 226, parágrafo 5º da CF) bem como pelo fato em que as famílias passaram a ser em boa parte mosaico, de sorte que, não mais se justifica o anacrônico instituto do direito real de habitação legal. Para Beviláqua a habitação consiste em "um direito real temporário, limitado à ocupação da casa alheia, para a moradia do titular e de sua família"1. Limongi França considera a habitação como "um desmembramento da propriedade, cujo objeto é uma casa ou imóvel congênere, e que consiste na faculdade que tem o sujeito de utilizar a coisa para moradia sua e de sua família". Assim, temos a habitação como um Direito Real de fruição, guardando a mesma origem e estrutura do direito real de uso e do usufruto (usufructus domus), os três direitos implicam em fruição, sendo que o direito real de habitação é um usufruto restrito à moradia pessoal familiar. Justiniano já tratava do uso e da habitação em um único Título das Institutas (De usu et habitatione)2. Hoje, o artigo 1.414 do Código Civil de 2002 (antigo art. 746 do CC/16) considera a habitação espécie de uso "quando o uso consistir no direito de habitar". Desse modo, como já dito, o usufruto é o instituto mais amplo e sua principal característica consiste na possibilidade de se retirar da coisa todas as utilidades e vantagens dela resultantes; no uso, serve-se da coisa alheia sem, contudo, retirar-lhe as vantagens. Já habitação é um direito real de fruição destinado especificamente para assegurar moradia ao seu titular, logo, embora também tenha advindo do usufruto, é ainda mais restrito que o uso. Na prática, o usufruto garante ao titular fruição plena, podendo morar, locar ou arrendar, sem qualquer finalidade especifica. No direito de uso o titular também pode morar, locar ou arrendar, porém, tem que ser em benefício pessoal ou familiar (art. 1.412, caput). Já no direito real de habitação, o habitante está proibido de locar, arrendar ou emprestar, podendo simplesmente, ocupar a coisa com sua família. Enquanto o usufruto e o uso são divisíveis, o direito de habitação é indivisível, pois eventual coabitante, se não residir no local não poderá exigir-lhe aluguel, diverso do que ocorre no usufruto e no uso. Ademais, cabe esclarecer que o direito real de habitação é incompatível com outros jus in re aliena, ou seja, não se pode constituí-lo em favor de determinada pessoa e, ao mesmo tempo, atribuir a outra o usufruto do mesmo imóvel3. O fato mais gravoso que desde já é bom deixar consignado é que o usufruto ou habitação sucessórios para o código de 1916 eram temporários, vez que viduais, ou seja, trocando em miúdos, na medida em que a viúva passasse a ter outra união duradoura, casamento ou união estável, estava automaticamente extinto o direito real, voltando a propriedade a se concentrar integralmente no herdeiro até então nu proprietário. O direito real de habitação foi introduzido na pauta do Direito Sucessório, pelo Estatuto da Mulher Casada em 1962 (lei 4.121/1962). Como já dito, o referido estatuto capacitou plenamente a mulher, reservou-lhe bens (art. 246 de CC/16). Este inseriu no artigo 1.611 do Código Civil de seus parágrafos, dentre eles o parágrafo 2º, que conferiu ao cônjuge sobrevivente, enquanto viúvo casado sob o regime da comunhão universal de bens, o Direito Real de Habitação sobre o imóvel destinado à residência da família. É bem verdade que o referido Estatuto ao outorgar a plena capacidade à mulher, constituiu um marco na ruptura da hegemonia masculina. Todavia, como mencionado, hoje o Estatuto reflete a realidade da mulher da primeira metade do século XX que, com raras exceções, ainda não estava inserida nem no sistema educacional e nem no mercado de trabalho e, por isso, era dependente da figura masculina para sobrevivência, daí a necessidade do Direito Real de Habitação no contexto sucessório - tendo em vista a expectativa de vida maior da mulher, o objetivo do legislador foi não deixá-la desamparada quando do falecimento do marido. Logo, além de restringir-se ao casamento em comunhão universal, tal direito era vidual, ou seja, decorria e se mantinha na viuvez. Tentou-se à época manter um equilíbrio, quando a mulher era casada em comunhão universal, por já ter meação de todos os bens lhe era conferido o mero direito real de habitação, apenas na hipótese de haver um único imóvel domiciliar a inventariar. Caso a mulher fosse casada em regime diverso, por não ter uma meação considerável, passava a ser titular de usufruto, em 25% ou 50% do patrimônio sucessório enquanto se mantivesse viúva. O tempo passou, a união estável floresceu e se destacou do concubinato e surgiu a lei 9.278/1996, e com ela, o Direito Real de Habitação foi estendido ao companheiro (art. 7º, parágrafo único), em atendimento ao artigo 226, parágrafo 3º da Constituição Federal de 1988, que teria incumbido o legislador da criação de uma moldura isonômica entre a união estável e o casamento, bem como conduzido à interpretação no sentido da derrogação parcial do parágrafo 2º do artigo 1.611 do Código Civil de 1916, tendo em vista, mais uma vez, a equiparação da situação do cônjuge e do companheiro no que toca ao direito real de habitação, em antecipação ao Código Civil de 2002. O tempo passou mais um pouquinho e após mais de trinta anos de tramitação entrou em vigor o "novo" Código Civil de 2002. Aliás, ele nunca deveria ter sido chamado de novo, na medida em que nasceu velho, notadamente na parte de família e sucessões. Ignorou completamente a isonomia acima mencionada e estendeu o tal benefício, diga-se direito real de habitação vitalício, a todos os cônjuges sobreviventes, independentemente do regime de bens adotado no casamento (art. 1.831). Todavia, o que não percebeu o legislador, e jamais perceberia aliás, foi que ao conferir o direito em questão apenas aos cônjuges, incorreu em uma antinomia de segundo grau, em função da discussão da vigência ou não do artigo 7º, parágrafo único, da lei 9.278/96 que consagrara o direito de habitação vidual ao companheiro ou companheira. Tudo virou uma salada, já que o Código Civil incluiu um direito de habitação vitalício, enquanto a lei da união estável mantinha um direito vidual, independentemente de regime, bastando para tal ser o único imóvel domiciliar a inventariar. O mais grave de tudo é que além de vitalício, o habitante, cônjuge supérstite concorria com descendentes e ascendentes em propriedade. Desse modo, com o "novo" Código, o que ocorreu na prática, é que o Direito Real de Habitação foi consagrado ex lege e, por isso, temos hoje um direito de natureza não contratual, gratuito, conferido ao cônjuge ou ao companheiro sobrevivente, que nasce automaticamente com a abertura da sucessão. Lembrando que seu objeto é sempre o imóvel residencial em que o supérstite anteriormente residia junto ao hereditando. Assim, independentemente de ser titular de outros imóveis que não integrem o monte partilhável, o habitador torna-se possuidor direto do imóvel, com poderes erga omnes, ou seja, oponíveis contra todos inclusive contra os sucessores titulares da nua propriedade do imóvel, os quais só poderão residir quando devidamente autorizados pelo habitador ou por ocasião de extinção do direito real, que, por si só, como já dito, é vitalício. Logo, o que tem acontecido com certa frequência, é que o sujeito casa em mais de uma núpcia, geralmente tem filhos da primeira boda e, por ocasião de sua morte, deixa um problema quase insolúvel. Uma nova esposa, filhos da relação anterior e um único imóvel domiciliar a inventariar. Essa nova esposa ou companheira automaticamente se torna habitante e os filhos proprietários do nada, na medida em que são realmente nu proprietários4. O direito real de habitação é vitalício, erga omnes, o que conduz a uma situação completamente injusta e anacrônica, na medida em que a última núpcia, mesmo que de duração ínfima, é a que determina o destino do imóvel que o sujeito teria levado uma vida toda para construir em benefício dos filhos. De fato, na atualidade é muito comum que o sujeito se case em várias núpcias, por isso que dizemos injusto conferir o Direito Real de Habitação apenas ao último cônjuge ou companheiro em caráter vitalício. Não estamos dizendo que o direito deva desamparar o viúvo, preza-se, na verdade, pela análise casuística, vez que em muitas situações o que pode ocorrer é que o supérstite possua idade inferior à dos filhos do hereditando, de modo que, neste caso, os filhos poderiam nunca usufruir da única propriedade familiar oriunda do árduo esforço do pai falecido - considerando, é claro, que o supérstite vitalício, por ser mais jovem, tenha a expectativa de vida maior. Desse modo, preza-se pela avaliação casuística, tendo em vista a nova realidade sobre a qual se aplicam as normas. Ocorreu, porém, que em detrimento de uma análise mais pautada a jurisprudência estendeu o Direito Real de Habitação à companheira, o que não faz sentido se considerarmos a própria funcionalidade histórica do instituto a partir do Estatuto da Mulher Casada, que protegia a mulher desligada do mercado de trabalho - um direito vidual, portanto que se extinguia quando a mulher viesse a casar em novas núpcias. É por isso que, em meio à multiplicidade indescritível de situações familiares da atualidade, o instituto gera inúmeras injustiças, sinal de seu anacronismo. Como dito, o caráter erga omnes do instituto, ou seja, a sua oponibilidade generalizada, confere-lhe força tamanha que se incorretamente aplicado ou desfocado acaba por gerar problemas muito mais amplos, inclusive conforme jurisprudência geradoura da reflexão. De fato, na perspectiva do legislador racional, dentro de uma unidade codificadora de vontade, o legislador não está isento da tomada de posições ideológicas, tendo em vista o modo pelo qual se atribui relevância aos principais valores do sistema normativo. Por isso, temos a atividade do hermeneuta que direciona a melhor interpretação, por meio da valoração e da hierarquização de valores, ponderando, dessa forma, o velho dilema entre um ordenamento estático, seguro, certo e previsível ou um ordenamento dinâmico, com normas adaptadas à operacionalidade das prescrições, dentro da força argumentativa e ponderada dos princípios, no contexto pós positivista em adequação às necessidades do direito em uma sociedade plural com complexidade crescente. É este o dilema do instituto abordado, o qual oriundo a partir de carências ideológicas de realidade diversa, acabou anacrônico frente à nova realidade. __________ 1Clóvis Beviláqua, Código Comentado, v. 3, p. 248 2Rubens Limongi França, Enciclopédia Saraiva do Direito, v. 26, 1977, p.185 3Washington de Barros Monteiro, Direito das Coisas, 4. Ed., 1961, p. 306 4TJ/RJ - Apelação Cível 000 6966-77.2010.8.19.2010. rel. des. José Roberto P. Compasso - 12/11/2013
Na coluna de hoje analisaremos a alienação fiduciária de automóveis, com ênfase no procedimento da ação de busca e apreensão, introduzida pelo decreto 911/69, posteriormente modificado pela lei 10.931/2004. A ideia é, após breve conceituação do instituto, trabalhar o procedimento de busca e apreensão antes e depois das modificações introduzidas pela referida lei, bem como suas consequências no sistema como um todo. Segundo o artigo 1.361 do Código Civil, considera-se fiduciária a propriedade resolúvel de coisa móvel infungível que o devedor com o escopo de garantia, transfere ao credor. Sobre este conceito, não é demais ressaltar, conforme discutido em colunas anteriores, que a alienação fiduciária é um fenômeno distinto da propriedade resolúvel, embora o próprio Código faça a confusão. O credor fiduciário ao celebrar o negócio não se torna proprietário do bem, muito menos o devedor fiduciante, titular reivindicante. O fundamento, para tanto, consiste no fato que embora deixe de ser de titularidade do devedor, o bem não ingressa diretamente no patrimônio do credor, na verdade, o que temos é um patrimônio afetado, desprovido de titular certo. Com efeito, o bem permanece como se tivesse sido abandonado ou renunciado, conservando-se em um "limbo jurídico", assemelhando-se à coisa fora do comercio, porém, aqui é por livre arbítrio das partes. Portanto, a alienação fiduciária não se confunde com propriedade resolúvel e, muito menos, com direito de garantia, constituindo, na verdade, instituto sui generis no universo jurídico. Na prática, a alienação fiduciária de bens móveis é comum quando um comprador adquire um bem a crédito e permanece como possuidor direto e depositário do mesmo, respondendo por todos os encargos civis e penais a ele relacionados. O credor, por sua vez, toma o próprio bem em garantia e a propriedade somente é consolidada nas mãos do devedor fiduciante no momento da quitação integral da dívida. No caso dos automóveis, a alienação é registrada no documento de posse do veículo. Desse modo, temos um instituto amplamente utilizado no Brasil, sobretudo, na compra de automóveis. O que tem ocorrido é também a tendência da alienação fiduciária substituir as garantias reais clássicas como o penhor, a anticrese e a hipoteca, pois sua estrutura jurídica, principalmente no que toca ao direito obrigacional e ao direito das coisas, é mais vantajosa tanto para o credor quanto para o devedor, favorecendo, dessa forma, a expansão do crédito, e, por conseguinte, o mercado de automotores. Em contrapartida, não há como negar que o instituto também tem se tornado a discussão principal de diversos processos. Uma das discussões envolve o processo de busca e apreensão do bem móvel em caso de inadimplemento parcial, ou seja, de mora. Introduzido pelo Decreto lei 911/69, o procedimento foi alterado em 2004 pela lei 10.931, que, dentre as várias alterações, reduziu de quinze para cinco dias o prazo para purgação da mora pelo devedor fiduciante e para a consolidação da propriedade fiduciária nas mãos do credor. Vale breve análise da regulamentação em particular antes e após a lei de 2004. Pelo decreto 911/69, em seu formato anterior à lei 10.931/04, despachada a inicial e executada a liminar, o réu era citado para em três dias apresentar contestação e/ou se já tiver pago 40% do preço financiado, purgar a mora. No caso da contestação, o devedor poderia somente alegar ou o pagamento do débito ou o cumprimento das obrigações contratuais. Para a purgação da mora, o juiz, tempestivamente agendaria prazo final não superior a dez dias. Se, mesmo assim, a mora não fosse purgada (independentemente da contestação), cinco dias após o decurso do prazo de defesa o juiz proferiria a sentença, consolidando a propriedade plena e exclusiva nas mãos do proprietário fiduciário (art. 3º, parágrafos). Tínhamos, dessa forma, um procedimento que garantia um prazo de quinze dias para a purgação da mora e direito de contestação anterior à consolidação da propriedade. Dessa forma, o sistema seguramente alicerçava-se nos princípios do devido processo legal, ampla defesa e contraditório, garantindo assim, tanto o devedor fiduciante, como o credor fiduciário. Todavia, a lei 10.931/2004, pensada para o fomento do mercado, trouxe regras que alteraram o procedimento de busca e apreensão, em prejuízo do devedor fiduciante. O artigo 56 da lei conferiu nova redação aos parágrafos do artigo 3º do decreto-lei 911/69. Agora, cinco dias após o proferimento da liminar, a propriedade é consolidada nas mãos do credor fiduciário, que já poderá requerer a expedição de novo certificado de registro de propriedade em seu próprio nome ou de terceiro por ele indicado. Para tanto, os únicos requisitos são os atinentes à petição inicial (art. 282 CPC) que dá causa à liminar, destacando o valor da causa dado pelo saldo devedor em aberto1 e as provas indispensáveis, isto é, o contrato de alienação fiduciária e a notificação da mora do devedor, emitida pelo Ofício de Títulos e Documentos, com a assinatura do devedor fiduciante, para comprovar o recebimento2. Como proprietário, o credor pode inclusive proceder aos atos de alienação a terceiros do bem. Neste caso, aplicar-se-á o preço do seu crédito, bem como as despesas de cobrança, sendo que o saldo remanescente caberá ao devedor (art. 3º, parágrafo 1º, decreto lei 911, modificado pela lei 10.931/04). O devedor fiduciante é citado apenas após a efetivação da liminar de busca e apreensão, oportunidade em que poderá quitar a dívida e exigir a restituição do bem livre de qualquer ônus (art. 3º, parágrafo 2º). O réu também pode requerer a restituição do pagamento e, caso a Ação de Busca e Apreensão seja declarada improcedente, caberá também multa ao credor - novidade introduzida pela lei 10.931/04. Óbvio que, com as modificações, o intuito do legislador foi agilizar a venda dos bens retomados, conferindo fluidez e dinamicidade ao mercado, bem como celeridade ao sistema processual. Aliás, esse tem sido o foco das legislações mais recentes. No passado, trabalhávamos com um sistema mais lento, porém seguro, hoje pleiteámos um sistema ágil, porém mais sujeito a erros e insegurança. Ora, a redução considerável do prazo para purgação da mora e a consolidação da propriedade do credor anterior ao direito de defesa do réu, torna a situação muito mais gravosa para o devedor fiduciante. Agravamento este, que constitui verdadeira reformatio in pejus. Absurda é a reforma que piora a situação em prejuízo do devedor fiduciante, ao determinar a imediata execução da reprimenda. De fato, a quantidade de litígios cresceu exponencialmente, não sendo acompanhada pelo aparelhamento estrutural dos tribunais, cada vez mais abarrotados de processos. A solução mais fácil foi, então, mudar a lei para tornar os processos mais rápidos. Contudo, não há como negar o compromisso jurídico entre duas necessidades sociais: a necessidade de certas regras que podem, sobre grandes zonas de conduta, serem aplicadas com segurança jurídica, e a adaptação, isto é, a capacidade de se ajustar às realidades sociais concretas, bem como aos novos aspectos práticos da vida. Para tanto, requer-se uma cooperação entre legisladores, operadores do direito e cidadãos, em benefício de uma via prática, mas segura. De nada adianta a velocidade processual em prejuízo do direito de uma das partes, na prática, tal concepção significaria a falência do sistema. Apesar do instituto ora tratado ser pura relação de consumo, entre os muitos direitos do consumidor suprimidos, é possível destacar mais do que um direito, um princípio que não pode ser esquecido, que é o da vedação ao retrocesso social. Na medida em que os direitos do consumidor constituem garantia fundamental impera o princípio da vedação ao retrocesso social. Pelo referido princípio, todo consumidor que tiver pago mais de 40% do preço financiado não pode ver o prazo ser reduzido para cinco dias, ainda que a purgação da mora ocorra de forma simples, sem a incidência de encargos. É necessária a conjugação das duas regras jurídicas, o decreto 911 com a lei 10.931, abarcando o que há de melhor nos dois mundos para manter uma pequena paridade num modelo jurídico tão rígido com a figura do consumidor. Não se quer aqui, de forma alguma, estimular a inadimplência ou a mora, o que é necessário é que se flexibilizem as regras para garantir a solvência e a pacificação num sistema norteado pela nova figura do superendividado. O que se quer dizer, por todo o exposto, é que a reforma legislativa abordada pela lei 10.931/04 acabou por constituir verdadeira reformatio in pejus em prejuízo do réu, com grande falha do sistema que deixa de se preocupar com seus resultados e com a necessidade de cada parte, em prejuízo de seu objetivo fundamental, isto é, como diria Chiovenda, dar a quem tem razão, tudo aquilo e precisamente aquilo a que essa pessoa tem direito. __________ 1REsp n. 207.186/SP, 4º Turma, DJ 28.06.1999 2REsp n. 160.795/SP, 3ª Turma. DJ. 13.06.2005
Na coluna de hoje trabalharemos a modalidade de Usucapião Administrativa instituída pela lei 11.977/2009, que adotou o Programa Minha Casa Minha Vida, em benefício da regularização fundiária no Brasil. O intuito é desenvolver a potencialidade das atividades notarial e registral na perspectiva do fenômeno da desjudicialização, em atendimento à EC 45 de 2004 com a reforma do Judiciário. Somente na Justiça estadual paulista existem mais de 20 milhões de processos em andamento, em uma cultura de litigiosidade descontida e difusa. Frente a tal situação, as atividades Notarial e Registral surgem sob o viés da desjudicialização, bem como da jurisdição voluntária, na linha da prevenção de litígios e da administração pública dos interesses privados. Nesse sentido, o Programa Minha Casa Minha Vida, em busca da celeridade prometida pelos métodos adequados de resolução de conflitos (sistema multiportas - o melhor método em cada caso), instituiu o usucapião administrativo a fim de desafogar as prateleiras do Judiciário de milhares de ações de usucapião, consequência do histórico nacional de ocupação irregular de terras. Trata-se de modalidade única no ordenamento brasileiro, instituída exclusivamente pela referida lei (PMCMV). O programa estabeleceu, então, que o detentor do título de legitimação de posse, pode requerer ao oficial registrador de imóveis a conversão deste título em registro de propriedade por usucapião (usucapião especial), após a decorrência de cinco anos do registro da legitimação (art. 60). O propósito é regularizar a posse em assentamentos e facilitar a aquisição de unidades habitacionais pela população de baixa renda. Nesse sentido, a legitimação de posse e a usucapião atuam como instrumentos da concretização do direito social à moradia e do pleno desenvolvimento das funções sociais da propriedade urbana, além do direito ao ambiente ecologicamente equilibrado (art. 46). A legitimação de posse funda-se no princípio social da propriedade, bem como nas diretrizes gerais de política urbana (arts. 182 a 191 CF). Trata-se de questão extremamente complexa, que paira no cenário brasileiro desde a famosa Lei de Terras de D. Pedro II, lei 601 de 1850. Temos, portanto, na Legitimação de Posse um instituto verdadeiramente nacional, assim determinado no art. 5º da Lei de Terras "serão legitimadas as posses mansas e pacíficas adquiridas por ocupação primária, ou havidas de primeiro ocupante, que se acharem cultivadas ou com princípio de culturas, e moradia habitual do respectivo posseiro, ou de quem o represente (...)". Nesse sentido, podemos definir a legitimação de posse como a "exacração de ato administrativo, através do qual o poder público reconhece ao particular que trabalha na terra a sua condição de legitimidade; outorgando, ipso facto, o formal domínio pleno"1. Ainda antes da vigência da lei 601/50, a lei 514 de 28 outubro de 1948, reportava-se a legitimações sem mencionar a espécie ou forma, autorizando a cobrança tributária sobre imóveis então legitimados. A lei imperial de terras foi efetivamente a primeira que se preocupou com a regularização fundiária e com a invasão de terras e autorizou a permanência nos imóveis decorrentes de concessões sesmariais. A circular 260 de 1863 mandou dar preferência aos posseiros cujas posses tivessem sido anuladas para adquirirem por compra as terras correspondentes, sendo esta a pedra basilar da estrutura jurídico-agrária implantada no Brasil. O tempo de posse necessário para a referida regularização era de cincos anos antes da medição, e, depois da mesma, pelo prazo de dez anos. Já na época, era indispensável a posse mansa e pacífica, a ocupação primária cultivada e a moradia habitual do posseiro ou preposto e, por fim, o não incurso em comisso. Essas mesmas bases foram mantidas pela lei 6383/76 e pela Lei do PMCMV, todas mantendo a mesma base relacional. Assim, na atualidade, uma das grandes novidades da lei PMCMV foi a introdução da legitimação de posse no Sistema Registral brasileiro. O instituto foi introduzido no artigo 167, inciso I, itens 41 e 42, da Lei de Registros Públicos. Nessa linha, a lei 11.977/2009, é a primeira a regulamentar especificamente o assunto em âmbito extrajudicial. Em termos procedimentais, atribuiu ao registrador a capacidade para emissão do documento de Legitimação da Posse, por meio do qual o Poder Público confere ao cidadão um justo título, que constitui direito ao possuidor (art. 59), em benefício da segurança jurídica de milhares de pessoas. Para tanto, temos os requisitos da usucapião especial (art. 183 CF), além da necessidade do imóvel fazer parte do procedimento de regularização fundiária de interesse social e de que o título de legitimação de posse seja registrado a mais de cinco anos. Em 2011, a lei 12.424 alterou a lei 11.977 de 2009, estendendo a usucapião administrativa às áreas com mais de 250 m2 e facultando a conversão dos títulos em usucapião. Por conseguinte, os registros dos primeiro títulos de legitimação de posse são datados de 2011, logo, computado o prazo de cinco anos, os títulos poderão ser convertidos em domínio apenas em 2016. Entendemos, dessa forma, que o usucapião via extrajudicial já via plenamente existente no Brasil e se mostra ainda viável, devido à menor complexidade da prova documental. As circunstâncias fáticas quanto à existência ou inexistência da situação possessória podem ser verificadas e demonstradas amplamente, pois se trata de uma prova predominantemente objetiva. Na verdade, o que ocorre é uma justificação material que gera a conversibilidade da posse em uma relação dominial, por meio do usucapião em decorrência da prévia legitimação de posse. Temos, portanto, um procedimento menos complexo, que não exige a apreciação pelo magistrado. Contudo, o Judiciário não deixa de controlar, orientar e fiscalizar o procedimento do usucapião administrativo, tal como ocorre com a lei 11.441/2007. Contudo, embora a lei PMCMV tenha privilegiado a via extrajudicial de resolução de conflitos, em momento algum mencionou a participação da figura do Tabelião de Notas na regularização fundiária. As tarefas de notificação dos proprietários e confrontantes e de promoção da tentativa de acordo entre impugnante e o Poder Público, foram atribuídas apenas ao Registrador Imobiliário. No mesmo sentido, o novo Código de Processo Civil, prevê o pedido de reconhecimento extrajudicial do usucapião diretamente ao Ofício de Registro de Imóveis, bastando, para tanto, o requerimento do interessado, representado por advogado e instruído apenas de ata notarial que ateste o tempo de posse do requerente. No entanto, sob influência do exemplo português foi proposto no Brasil projeto de lei em que o procedimento é desenvolvido fundamentalmente pelo Tabelião de Notas. Em Portugal, o notário atua diretamente no usucapião administrativo por meio da lavratura da Escritura Pública de Justificação Notarial (embora o procedimento como um todo lá também seja gerido na Conservatória Imobiliária pelo registrador). A opção é justificada em torno da competência do tabelião para recepcionar a vontade das partes, expressando-as em termos jurídicos para o aperfeiçoamento e a segurança do ato pretendido. Ademais, como profissional do direito, o tabelião já é especializado na condução de atos de espécies semelhantes, como no caso, já exemplificado, dos inventários, partilhas, separações e divórcios consensuais. Sob tal projeto, caberia ao tabelião dar início à legitimação de Posse, tutelando as primeiras declarações, bem como a justificação da posse e a lavratura da escritura declaratória de usucapião, a qual seria apresentada posteriormente ao Registrador Imobiliário. Assim, o Tabelião de Notas lavra a escritura declaratória em nome dos requerentes do usucapião, após a conferência da inexistência de matrícula ou transcrição anterior no Registro de Imóveis, da documentação completa para o exame preliminar e da ausência de manifestação de oposição. Caso haja impugnação, também caberia ao Tabelião a audiência de conciliação entre os interessados, e, em caso de acordo, faculta-se a lavratura da Escritura Pública Declaratória em nome dos requerentes. Temos, portanto, uma liturgia notarial que instrumentalizaria a mediação entre os interesses jurídicos, finalizando com a lavratura do acordo, mediante escritura pública. Contudo, o projeto permaneceu estagnado, ganhando prestígio apenas a atuação registral para o procedimento do usucapião administrativo. Argumenta-se que o procedimento notarial atravancaria o processo. Todavia, dentre as inúmeras possibilidades e maneiras de intervenção extrajudicial na questão, a ideia saudável é retirar da esfera exclusiva do Judiciário a questão da regularização de posse e usucapião. O que ocorre é um processo de desjudicialização, que, de modo algum, reduz o prestígio do judiciário, muito pelo contrário, é ganho mútuo a operadores e usuários da Justiça, pois confere seletividade à atuação do magistrado dentro de suas funções típicas. Na verdade, em vista do sucesso do instituto, os esforços devem se deslocar ao aparelhamento das serventias extrajudiciais, com pessoal qualificado, tanto por meio do concurso de seleção dos oficiais, quanto pelo treinamento e capacitação dos profissionais. Nessa linha, reduziríamos ainda o subaproveitamento das atividades extrajudiciais, que são completamente aptas a atuar lado a lado do Judiciário, sob a hipótese da jurisdição voluntária. O usucapião administrativo, muito embora sem a vertente notarial, é, hoje, fato consolidado no ordenamento jurídico brasileiro, na medida em que a legislação de posse é conversível em propriedade em cumprimento à função socioeconômica ambiental. Ademais, o legislador foi arrojado ao autorizar à posse e à sua conversão o assento na tábula registral. É uma adaptação histórica antropológica da realidade social no sistema jurídico formal, em consonância com o fenômeno da inclusão social. __________ 1Luiz de Lima Stefanini, A propriedade do Direito Agrário, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1978.
terça-feira, 13 de maio de 2014

Extinção de condomínio

Um dos institutos mais usuais e, sem sombra de dúvidas, mais complexo do Código Civil, é o condomínio histórico ou tradicional, também conhecido por ordinário e que o Código atual resolveu denominá-lo voluntário. Dessa figura jurídica brota uma gama imensa de novos institutos destacando-se entre eles o condomínio edilício, posto estar sentado sobre um condomínio voluntário. Neste artigo, a preocupação maior não é nem com a Constituição e nem com o desenvolvimento do condomínio, aliás situações jurídicas extremamente complexas e que merecem uma análise detida. O intuito é trabalharmos com a extinção da relação condominial, na medida em que venha cessar a affectio entre os titulares que não objetivam mais remanescer vinculados em propriedade comum. Tem-se por condomínio ordinário ou voluntário a espécie de propriedade, comum a dois ou mais titulares, em que se atribui a cada um deles uma fração ou cota ideal sobre o todo, a base do modelo é o respeito ao princípio da exclusividade (art. 1.231). Segundo o princípio mencionado é impossível que dois ou mais titulares de um bem exerçam o mesmo direito real sobre o mesmo bem em concreto e no mesmo momento. O sistema só admite um único proprietário em concreto sobre determinado bem. Por tal motivo, surgiu a teoria da propriedade ideal, atribuindo uma fração ou cota pro indiviso sobre o todo. Os próprios romanos já diziam communio est mater discordiarum, ou seja, a comunhão de bens é mãe da discórdia. Todavia, dificilmente não existirá em alguma família uma co-propriedade advinda de relação contratual ou por determinação sucessória (art. 1.791, parágrafo único). Assim, tendo em vista a transitoriedade do condomínio, inclusive pela gama de problemas gerados, facilita-se a extinção do mesmo por meio de três hipóteses: (i) a imprescritibilidade da ação divisória (a todo tempo pode ser promovida a divisão - caput art. 1.320), (ii) a disposição em lei de que se a indivisão for condição estabelecida pelo doador, ou testador, vigerá por apenas cinco anos (art. 1.320, parágrafo 1º) e por fim, (iii) preceitua que se os condôminos fizerem um pacto de não divisão ou houver condição estabelecida pelo "doador ou pelo testador", a avença não excederá um quinquênio, cabendo prorrogação (art. 1.320, parágrafo 2º)1. O condomínio histórico ou tradicional é aquele de origem romanística que designa a comunhão pela qual os condôminos detêm uma fração (parte ideal) do objeto, mentalmente representada. Sabemos que é da essência da propriedade que ela seja definida, absoluta e exclusiva2, em vista disso, Celso, jurisconsulto romano, já enunciava a incompatibilidade entre o direito de propriedade e a existência do condomínio, in solidum dominium vel possessionem esse non posse, ou seja, não pode existir propriedade ou posse de duas ou mais pessoas, solidariamente, sobre a mesma coisa. Como forma de resolver o problema e compatibilizar o princípio fundamental da propriedade ou exclusividade, adotou-se a teoria em que os co-titulares do direito de propriedade exercem-no ao mesmo tempo em quotas ideais sobre o todo da propriedade indivisa, a divisão não é material, mas idealizada em cotas, que representam a medida da propriedade. Logo, como bem menciona o professor Silvio Rodrigues, é justamente de acordo com essa fração que são repartidos os ônus e benefícios, direitos e obrigações entre os comunheiros3. Temos ainda que, para a formação do condomínio tradicional, não basta apenas ter a coisa em comunhão se não interceder a sociedade4, ou seja, deve haver um intuito ou propósito de constitui-la materializado em uma relação de confiança, pressuposto básico da sociedade, denominado affectio societatis. Assim, formado o condomínio, requer-se a administração harmônica do imóvel, o que geralmente é causa de desavenças entre os titulares. São personalidades diferentes que, em vista ainda de um direito comum, resulta em situação forçosa e indefinida, gerando conflitos. Nesse sentido a volatilidade da relação de confiança incorre na efemeridade da relação condominial, por isso, pressupõe-se o ato de vontade como essencial para a permanência do condômino, ninguém é obrigado se manter na relação, dita voluntaria, com a possibilidade de ruptura a qualquer tempo. Portanto, a transitoriedade ou temporariedade é eixo central, gerando uma dubiedade, a manutenção condominial é fator de riqueza, e a extinção condominial é fator de pacificação. O condomínio ordinário ou tradicional pode ser instituído, pela aquisição conjunta de imóvel, por doação a dois ou mais titulares de um determinado próprio, por circunstâncias eventuais ou acidentais como a distribuição de herança, a doação de um mesmo bem realizada a duas ou mais pessoas, a adjudicação de parte de um imóvel por um credor, além da dissolução da sociedade conjugal, posto que desfeita a comunhão de bens, sobrevém o condomínio entre os ex-cônjuges até a efetiva partilha. Acresce-se ainda, o condomínio legal ou necessário imposto por lei (caso de paredes, cercas, muros e valas), art. 1.327 CC, na verdade muito mais uma relação de vizinhança do que um vínculo condominial. Todavia, impossível taxar todas as causas, em vista da mutabilidade temporal, que leva a situações cada vez mais originais. No que toca a ação divisória de coisa comum, muito embora seja situação jurídica mais desejável e a demais fácil solução, na sociedade contemporânea, é a menos usual e a que menos se verifica. Isso porque a ação divisória só é possível se o bem for divisível e hoje os bens são indivisíveis por natureza. Aqui é bom lembrar que a natureza indivisível dos bens, ocorre não só quando impossível seu fracionamento, mas também quando a referida divisão diminui consideravelmente o valor ou prejudica o uso a que se destina (Art. 87CC). Portanto, muito embora o sistema seja favorável à tutela divisória, na prática quer amigável (pela escritura pública, na presença exclusiva de condôminos maiores e capazes) quer judicial, por meio de mandado, na prática só é factível numa sociedade individual e agrária. Nesse sentido, buscam-se os preceitos legais que autorizarão ou não a extinção da comunhão, pela venda ou divisão. Para tanto, temos a ação de divisão à disposição do condômino que, se necessário, obriga os demais consortes a partilhar a coisa comum (art. 946,II, CPC), a ação possui natureza de ação de direito real5 e é imprescritível (art. 967). Estamos tratando de uma divisão simplesmente declaratória e não atributiva de propriedade (art. 980), com efeitos ex tunc. Tal ação, examinada pelo Desembargador Olavo Silveira, abrange duas fases: a primeira, de rito ordinário, analisa a titularidade dos quinhões, partes ou cotas. Em um segundo momento, avaliar-se-á se os imóveis comportam divisão cômoda, bem como o modo e a forma de realizá-la, sempre observando a garantia de adjudicação (se manifestada a preferência) ou se cabível a divisão cômoda, requer-se a venda com repartição do produto em sua devida proporção6 - análise válida tanto para o procedimento divisório quanto para a alienação judicial a seguir descrita. Passemos agora à análise das situações contemporâneas em que os bens são substancialmente constituídos de unidades e que, portanto, implicam em natural indivisibilidade, logo, se indivisível o condomínio somente poderá ser extinto por meio da venda judicial ou alienação da coisa comum (art. 1.322 CC) ou por meio da alienação das cotas de forma onerosa ou gratuita (art. 504 CC). Do mesmo modo, se a venda for do interesse de todos, será amigável, caso contrário temos o procedimento de jurisdição voluntária (art. 1.104 e 1.113 CPC). Após a avaliação, é realizada a alienação do bem em hasta pública - embora os tribunais tenham abrandado a exigência em vista de sua ineficiência· - pode o condômino manifestar-se sobre seu direito de preferência (art. 504, parágrafo único CC). A herança é um ótimo exemplo de indivisibilidade jurídica (art. 1.791, parágrafo único), além do contexto do módulo rural, com indivisibilidade prevista por questões econômicas. Assim, dada a indivisibilidade, como proceder, por exemplo, no caso corriqueiro de um imóvel edificado sobre terreno e transmitido, por herança, à comunhão de três filhos? A fonte mais copiosa do condomínio ordinário é, sem dúvida, a partilha, momento em que o imóvel é atribuído aos herdeiros em pagamento da herança. O Código Civil prevê a indivisibilidade da herança até o momento da partilha, pois o patrimônio, muitas vezes, pode se reduzir a nada caso o espólio seja insuficiente para o pagamento de dívidas preexistentes. O próprio meeiro, bem como qualquer herdeiro é impedido de dispor de sua parte ideal, que paira sobre toda a herança, assim cabe ao registrador se negar a admitir a especialização para a venda ou cessão indiscriminada, tanto é verdade que a cessão de cotas hereditárias só pode incidir sobre o quinhão e não sobre o bem individual (art. 1.793 CC) e não tem ingresso no registro de imóveis. No entanto, após a partilha, o estado de comunhão não é impeditivo da feitura de negócios pelos herdeiros, com possibilidade de venda até de partes indivisas. A venda de parte indivisa importa apenas a substituição de um condomínio por outro, o Oficial de Registros deve aceitá-la e inscrevê-la na matrícula, em benefício do exercício de direito de todos os condôminos de "alhear a respectiva parte indivisa ou gravá-la" (art. 1.314 CC). Vale lembrar, que inicialmente temos na matrícula original do imóvel a configuração física do mesmo que, por ocasião da abertura da sucessão não pode conter a ficção decorrente do fracionamento ideal dotado apenas de representação mental. Em substituição à titularidade única do dono primitivo, surge então a titularidade promíscua de condôminos múltiplos, cada um com alíquota do imóvel inteiro descrito na matrícula (parte ideal), fração desprovida de definição inicial concreta (em respeito ao princípio da exclusividade). Como sabido, somente pode ser aberta matrícula de imóvel inteiro que ocupe espaço determinado na superfície terrestre e sobre o qual alguém exerça o direito de propriedade, vez que, o fólio real deve ministrar a realidade de uma base física para a dominialidade particular. Contudo, após, a partilha, por exemplo, mesmo no caso do condomínio de bens indivisíveis, a movimentação jurídico-real não é paralisada. Ademias, o condomínio somente poderá ser extinto por meio de venda judicial da coisa comum (art. 1.322 CC). Aqui é bom lembrar que, muitas vezes, busca-se o parcelamento impróprio do solo urbano, atribuindo fração ideal de um lote imenso para o infindo número de pessoas, o que é vedado pelo sistema e pelo registro de imóveis. O procedimento é regulado pelo art. 967 e seguintes do CPC, sendo necessária a comprovação pelo promovente de seu jus in re (direito real), além de sua posse ou a de alguns comunheiros. A ação judicial cabível é a "Extinção de Condomínio", ou tecnicamente falando, a "Alienação Judicial de Coisa Comum Indivisível", nesse caso, temos a jurisdição voluntária (arts. 1.104 e 1.113 CPC), a partir da qual o magistrado desenvolve a atividade integrativa ao somar esforços às partes rumo ao melhor efeito jurídico. Trata-se de atividade tipicamente administrativa, por conseguinte, não jurisdicional, não pressupondo litígio ou lide prévia, além da não limitação do juiz pela legalidade estrita (arts. 1.107 e 1.109 CPC). A medida judicial concretizará a alienação forçada do imóvel em hasta pública, respeitadas as preferências gradativas que mencionaremos a seguir, o direito de preferência pode ser requerido a qualquer tempo, conforme procedimento prescrito pelos arts. 1.113 e seguintes do Código de Processo Civil. Materialmente falando, a transmissão da propriedade por meio de procedimento de alienação judicial, é modalidade de aquisição derivada. Logo, os ônus anteriores da coisa não são extintos e ela é recebida pelo adquirente com os atributos, as virtudes, os defeitos e as mazelas anteriores. Para ilustrar, se o bem alienado está hipotecado ou onerado com servidão ou usufruto, estes não serão extintos7. A alienação apenas substituirá o condômino alienante pelo adquirente, mantendo-se o condomínio. O art. 504 do Código Civil trata da preempção ao condômino na aquisição do bem indivisível quando da igualdade de oferta, ou seja, no caso da extinção do condomínio por adjudicação a um único proprietário. No caso da alienação de cotas, a vantagem cabe ao condômino responsável pela benfeitoria de maior valor, sendo que na ausência delas, reservar-se-á o direito ao proprietário do maior quinhão. Só é cabível a licitação perante os interessados na inexistência de padrão de preferência, vencendo, neste caso, o que propuser maior preço. O art. 1.314 garante ainda que cada condômino poderá reivindicar a coisa mesmo em poder de terceiro, hipótese também garantida aos herdeiros no caso de reivindicação da herança (art. 1.827). Com a alienação particular ou judicial, o título, o contrato ou a carta de adjudicação por preferência, deverão ser levados à matrícula do imóvel a fim de substituir o antigo detentor. Caso a parte ideal esteja gravada por hipoteca, consignar-se-á o gravame na folha da matrícula, sendo aquela cancelada por ocasião do pagamento da dívida. Outra questão interessante se dá quanto ao penhor da colheita obtida em imóvel rural em condomínio; dmite-se a emissão de cédula rural pignoratícia sobre a colheita em garantia ao banco. Para tanto, o condômino deverá mencionar a fração aritmética que lhe cabe (parte ideal), de onde sairá a colheita apenhada, recaindo o penhor exclusivamente sob aquela parte, o que elimina a necessidade de prestação de contas aos consortes. É bom observar, que adjudicação forçada quer para a venda do bem, quer para a transmissão de cotas gera, sem sombra de dúvidas, desgaste pessoal e econômico e que o modelo voluntário, preventivo, sem sombra de dúvidas, é o que melhor atende a função social da propriedade. Dessa forma, bem concluímos que a função socioeconômica e ambiental da propriedade seria a manutenção dos vínculos condominiais, harmonizando a boa convivência entre os coproprietário, caso reste impossível a extinção harmônica voluntária e restaurativa para gerar a menor litigiosidade possível e, sem sombra de dúvidas, facilitar a regularização inclusive sob o ponto de vista registral. __________ 1Celso Laet de Toledo Cesar. Venda e Divisão da Propriedade Comum - Doutrina e Jurisprudência. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001 2Hamilton de Moraes e Barros, Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1975. 3Sílvio Rodrigues. Reflexões sobre o Condomínio geral e em edifícios. São Paulo, 1951, p.19. 4Pontes de Miranda. Tratado de Direito Privado. Tomo XII, direito das coisas. Atualizado por Jefferson Carús Guedes e Otávio Luiz Rodrigues Junior. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. 5Afonso Fraga, Alienações Judiciais. Revista de Processo 21/14 6RJTJEP154/64 7TJ/RS - AG 595065103 - sexta câmara cível - Rel. Milton Carlos Loff. Julgado em 05/9/1995.
Recentíssima decisão da 3ª turma do Superior Tribunal de Justiça1 determinou a validade da doação efetuada pelo de cujus à sua consorte antes do casamento sob o regime de separação obrigatória de bens. O fundamento da decisão se deu sob o reconhecimento de união estável anterior ao casamento, a qual afastaria a norma insculpida no artigo 312 do Código Civil de 1916 que guarda relação com o artigo 1.647, inciso IV do Código atual, ou seja, absoluta incomunicabilidade de bens no regime de separação obrigatória nos casamentos de sexagenários, hoje septuagenários. A ministra Nancy Andrighi considerou o atualíssimo pensamento, que não vigorava por ocasião dos fatos, de que para o casal em questão o regime de separação obrigatória não precisaria incidir. Sob essa premissa fundamental, entendeu válida a doação porque o casal já convivia por ocasião das bodas, tendo, portanto, a faculdade de adotar regime diverso da separação obrigatória, conforme enunciado 261 da III jornada do Conselho da Justiça Federal. Contudo, o grande problema é que lido o extrato da decisão de forma simplista, poder-se-ia concluir que o STJ flexibilizou a doação em regime de separação obrigatória de bens, o que de fato não ocorreu. O tema envolvendo o regime de separação obrigatória, por si só, é extremamente complexo e tortuoso, sérias dúvidas pairam sobre a existência de um único regime de separação voluntário ou obrigatório, ou da existência de dois regimes que muito embora guardem em comum a não comunicação de bens, ainda sim são distintos por uma série de fatores, inclusive pela incidência da súmula 377 do STF. O que é bom que fique claro é que o regime de separação veda a existência de um condomínio germânico, porém, não a existência do condomínio romano à luz dos artigos 1.314 e seguintes. Bem é verdade, a discussão em torno da hipótese desarrazoada de determinação do regime de separação obrigatória de bens aos maiores de setenta (maiores de 60 até o advento da lei 10.406 de 2002) - o Código de 1916 previa a adoção da separação legal à mulher com mais de 50 anos e ao homem sexagenário. De fato, a obrigação acaba por impor mais uma sanção, que propriamente uma proteção aos cônjuges, afrontando também o próprio Estatuto do Idoso. É bom mencionar que a teleologia da norma visava evitar casamento por interesse econômico, gerando de toda a sorte um preconceito e um bloqueio, determinando uma situação, muitas vezes desarrazoada. Nesse contexto, a exceção à obrigatoriedade caberia exclusivamente ao casamento antecedido por união estável, situação em que os noivos poderiam escolher o regime que melhor lhes conviesse. Isso significa que se o casal já convivia em união informal antes de atingir a idade proibitiva em que não havia bem jurídico a tutelar (casamento por interesse), de forma a gerar plena liberdade na adoção do regime que melhor lhes aprouvesse. E é sobre este último ponto que se pautou a ministra Nancy Andrighi, reconhecendo que até mesmo a hipótese da imposição do regime matrimonial de bens seria questionada, quando da realização do casamento entre as partes, em razão de antecedente união estável, que vivenciavam há oito anos. É bom apenas mencionar, que a ministra fez uma interpretação atemporal, pois pegou uma situação do passado e aplicou regra do presente. Também se discutiu no caso em tela a incongruência da restrição da invalidade da doação no caso do superveniente matrimônio, posto que inexistente ou inválido o casamento não haveria qualquer óbice à doação, trata-se de silogismo complexo, mas considerando que o casal já coabitava há 8 anos e se encontrava em uma união estável em que reinava por presunção as regras da comunhão parcial, nada impediria a validade da referida doação. Dessa sorte, a norma estava obrando contra a sua que simplesmente se conhecessem para fins de casamento e diante da inexorável obrigação de se casar sobre o regime da separação obrigatória, passassem a burlar a norma, por meio de doações antenupciais ou anteriores ao casamento posto cientes de que durante a vigência nada comunicaria. No caso não é razoável imaginar que o arcabouço legislativo visava estabelecer maior tutela protetiva ao casal na ausência do matrimônio. É bem verdade que o enunciado sumular 377 surgiu por força do artigo 259 do código civil de 1916, não reproduzido no atual, o referido artigo determinava a comunicação dos aquestos no regime de separação total convencional, a fim de proteger a mulher vulnerável, alijada do mercado de trabalho. O Supremo Tribunal Federal na época entendeu que os efeitos do artigo 259 deveriam ser estendidos também para o regime da separação total obrigatória a fim de igualar os dois regimes na tutela em questão. Ocorre que com a revogação expressa do artigo 259 pelo atual código, a súmula 377 perdeu o seu sustentáculo que era a isonomia do regime de separação. Porém, o Conselho Superior da Magistratura de São Paulo, em sede de dúvida registral entendeu vigente a súmula 377, quer para os casamentos anteriores ou posteriores ao código civil atual, entendendo ser obrigatória a outorga uxória ou marital no regime de separação obrigatória, estabelecendo uma verdadeira distinção entre o regime da separação obrigatória e da separação convencional, não justificável sob qualquer prisma que se queira encarar hoje a questão. Não à toa, quando imposto o regime da separação obrigatória, surgem questionamentos sobre a possibilidade e por que não utilidade da firmação do pacto antenupcial entre os nubentes? Verdade é que se a finalidade do mesmo realmente for a simulação de negócio tendo em vista o afastamento do regime de separação absoluta, o pacto será inválido e ineficaz. Há que se considerar ainda a relevância do interesse social, melhor servido pela flexibilidade e mutabilidade a serviço do bem estar social. A nova sociedade carece de um direito de vanguarda, flexível e célere, por isso, o enfoque do direito de família deve sempre adaptar-se às novas exigências de uma realidade cambiante, pautado sob as égides da segurança jurídica. A vedação às doações antenupciais nas hipóteses de celebração de casamento pelo regime da separação obrigatória foi restrição que visou evitar a burla do regime, eventual pressão de um dos contraentes sobre o outro, com a possibilidade de comunicação imprópria de bens, principalmente na hipótese em questão que o objetivo maior é evitar o interesse econômico. No caso da doação embora a preocupação legal seja diversa, visto que não há a finalidade da proteção de descendência, sendo o mote maior a oportunidade do compartilhamento da fortuna entre os cônjuges, a preocupação com a preservação e permanência do regime estabelecido pelo código é essencial à proteção e dignidade da família, garantida pelo Estado (art. 226 CF). Embora, admita-se que por outro lado, a proibição absoluta da comunicação de bens também possa dar margem a graves injustiças e incovenientes2. A família passou por nítidas mudanças e o Código Civil de 2002 atrelado à Constituição Federal estabeleceu como valor primordial daquela a afetividade, tendo a em vista a dignidade da pessoa humana e seus princípios decorrentes que visam influenciar fortemente a aplicação nos negócios jurídicos adentrados nos ramos imobiliários, incluindo vetores hermenêuticos quando da qualificação dos títulos que versam sobre o direito de família. Por fim, visando sempre a operabilidade e melhor aplicação do direito, é essencial que se volte sempre ao exame das necessidades e particularidades que tocam a cada caso. O mote é evitar a repercussão e generalização de especificidades à espécie de um leading case, sob pena de criar hipóteses não contempladas pelo sistema. Como dito, no caso discutido, não houve a flexibilização do regime de separação obrigatória, que assim permaneceu com seus pesares e benesses. Logo, requer-se sempre a análise da razoabilidade e proporcionalidade, tendo por fim maior o equilíbrio entre o direito de família e as questões patrimoniais. Daí o desafio. __________ 1REsp 1.254.252 - SC (2011/0122717-2), Rel. ministra Nancy Andrighi, julgado em 15/4/2014   2Antônio Chaves. Casamento das quinquagenárias e dos sexagenários, RT, vol. 315, 1980, págs. 31 a 48
Nos últimos anos, muito se discutiu sobre a permanência e funcionalidade do Centro de Atendimento e Distribuição de Títulos e Documentos de São Paulo, pessoa jurídica responsável por orientar e dar suporte à instalação e operação de uma central própria para a recepção e distribuição dos serviços dos Registros de Títulos e Documentos e Civil de Pessoa Jurídica na Comarca da Capital. A central foi criada a partir de 09 de outubro de 2001, quando o então Corregedor Geral Luiz de Macedo, tendo por base o processo C.G. 2.686/01, a pedido dos titulares de Cartórios de Títulos e Documentos instituiu o provimento 29, alterando a redação do subitem 7.2. do capítulo XIX das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça de São Paulo. A partir daí, todos pedidos de registros foram centralizados e distribuídos de forma equânime entre as dez serventias de Títulos e Documentos da capital, a cada qual se garantia ainda um valor mínimo de 10% do montante capitalizado pela atividade no município. A sistemática perdurou por aproximadamente dez anos sem qualquer objeção oficial e pôs fim à concorrência entre as unidades. Somente em 2011, que, motivado pelo processo 2011/42965, o corregedor geral pôs fim à distribuição prévia dos registros, sem juízo, entretanto, da distribuição mantida em consenso unânime dos titulares das delegações (provimento 19). Contudo, foi facultada a livre escolha do registrador pelo usuário, que poderia apresentar o título na unidade escolhida, neste caso vedada obviamente a compensação. O próprio provimento ainda destacava que nas dependências da central, bem como no respectivo endereço eletrônico deveriam ser fixadas informações claras sobre a liberdade de escolha e a possibilidade de apresentação do título diretamente ao registrador. Desde então, entre idas e vindas, vários provimentos regulamentaram o assunto, instituindo ou destituindo a centralização obrigatória, em um infindável set de uma partida de tênis. Não satisfeita a questão, em 28/9/2011, os registradores de São Paulo solicitaram ao Conselho Nacional de Justiça o retorno da compensação dos valores. O CNJ acolheu o pedido e em 14/2/2012 suspendeu parte do Provimento 19/2011 da CGJ-SP. Desse modo, o então corregedor geral Renato Nalini editou os provimentos 03 e 04, conferindo nova redação ao subitem 7.2 do capítulo XIX das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça de São Paulo. Segundo o provimento 04, o usuário poderia até escolher o registrador, desde que apresentasse o título ao distribuidor, sem prejuízo da obrigatória compensação dos títulos livremente distribuídos. Em 12/6/2012, a Associação dos Advogados de São Paulo impetrou mandado de segurança questionando a última decisão do CNJ. Em abril de 2013, o ministro Ricardo Lewandowsi suspendeu a decisão, prejudicando os provimentos 03 e 04. Desse modo, o atual corregedor-geral da Justiça de São Paulo Hamilton Elliot Akel foi obrigado a revogar as normas editadas por Nalini. Na época, o presidente da Associação dos Advogados de São Paulo, Arystóbulo de Oliveira Freitas, defendeu o direito de escolha pelo cidadão do local de registro do documento, vez que existem "cartórios" mais eficientes e céleres. De qualquer modo, para quem defende a descentralização, o argumento é a busca por melhor qualidade no serviço, diferencial básico e elemento de competitividade entre as unidades. À maneira de Smith, diríamos que uma mão invisível regularia de maneira diretamente proporcional a procura em vista da qualidade do serviço oferecido. Ademais, sendo a procura regulada pela qualidade do atendimento, nada impediria, por exemplo, que os RTDs que se dispusessem a manter elevado quadro de funcionários e notificantes, a utilizar de técnicas hodiernas em benefício de seu mister ou desenvolver trabalho aliado aos escritórios advocatícios usufruíssem da preferência pela clientela contentada. Acrescendo-se ainda em defesa da descentralização o fato de que a manutenção da central como intermediadora entre cidadão e o "cartório" apenas atrasaria os serviços prestado e elevaria os custos do serviço, dada a estrutura bis in idem. Alguns chegam a responsabilizar a central pela redução no número de prepostos das serventias, com a perda de contratos que passaram a ser registrados inclusive em outras cidades, devido à queda na qualidade do atendimento e interrupção do desenvolvimento tecnológico apresentado pelo setor anteriormente ao surgimento da central. As más línguas chegam a apelidá-la "poupa trabalho" referindo-se aos delegatários ineficientes, que utilizam a central para transferir compulsoriamente parte da atividade prestada. Se traçarmos um paralelo com a visão de George Arkelof e sua obra "The Market for Lemons: Quality Uncertainty and the Market Mechanism" poderíamos mencionar aqui a problemática de uma assimetria de informações, vez que os prestadores do serviço detêm maior informação que os usuários, cuja preferência acaba subsumida pela uniformização e centralização, premiando unidades menos eficientes ao igualá-las às mais eficientes. Trata-se do famoso mercado de limões de Arkelof, que utiliza o termo em alusão aos carros com defeito no mercado de usados, em uma tradução, equivaleria ao nosso famoso "abacaxi"1. Haveria um nivelamento do serviço de má qualidade que obteria o salvo conduto diante de um sistema que imporia uma igualdade para ofícios qualitativamente distintos. Por outro lado, para quem defende a posição contrária, como Robson Alvarenga, titular do 4º Ofício de Títulos e Documentos, a descentralização completaria o sucateamento do sistema com piora no atendimento à população, pois a central garante a estabilidade necessária a um serviço com nível de excelência e independência fundamental à segurança jurídica do registro. Segurança esta incompatível com a captação de clientela em uma estrutura descentralizada, dada a possibilidade de oferecimento de vantagens ilegais. Nessa linha de raciocínio, uma das grandes preocupações éticas da atividade é evitar a concorrência formal na medida em que não pode haver captação de "clientela", o que certamente ocorre diante da liberdade de opção do usuário. Argumenta-se que a comunhão das dez unidades de títulos e documentos facilita a inserção tecnológica a longo prazo de todas as serventias envolvidas. Segundo o próprio CDT até janeiro de 2014, mais de 13 milhões de atos registrais já haviam sido praticados, e somente em 2013 o investimento na área teria superado R$ 1 milhão. Outro argumento favorável à permanência da unidade se põe em função de clientes do setor financeiro, como grandes bancos. Trata-se de clientes em potenciais que seriam priorizados, em detrimento do cidadão comum, pois para satisfazê-los cada serventia teria de arcar ainda com a contratação de profissionais especializados no mercado. Nesse sentido, a centralização também é elogiável, pois, na prática, ao longo da última década, o CDT moveu esforços para a capacitação dos seus funcionários, visando a melhoria dos serviços, oferecidos ao cidadão com celeridade e eficiência, por meio de estrutura apropriada e consistente, voltada à prontidão do atendimento. A centralização da recepção e distribuição dos títulos e documentos obra favoravelmente no que toca à logística para que as informações e providências ganhem uma uniformidade e a central passe a ser elemento potencializador do próprio serviço de Títulos e Documentos facilitando inclusive o controle. Contra o argumento da elevação dos custos da atividade, os defensores da Central pregam que os custos do CDT não são repassados aos usuários, vez que são financiados diretamente pelas serventias agregadas. Nesse contexto, prioriza-se compromisso dos delegatários com a eficiência, segurança, transparência e profissionalismo, em detrimento do valor de arrecadação das serventias. O art. 12 da lei 8.935/94, na sua interpretação gramatical torna óbvio que os registros de títulos e documentos independem de prévia distribuição. Walter Ceneviva ensina que a escolha é livre, desde que no ambito da rescpectiva comarca, de modo que a legitimidade do funcionamento de cada serviço fique restrita a um local único, vedando-se sucursais2. Todo o problema da análise do artigo 12 reside no fato de que a lei 8.935/94 subentende em funcionamento no estado, como o de São Paulo, o ofício de registro de distribuição, que não se trata de um mero distribuidor, mas sim uma serventia centralizadora dos atos praticados nos ofícios de registro, o que jamais foi implementado na maioria dos estados da federação. Independentemente do ponto de vista adotado, verdade é que a tecnologia informacional surge flexibilizando e inovando o serviço o que acaba, de certo, modo, por eliminar a problemática. Para ilustrar, temos o sistema adotado pelas CRCs, um gerenciamento de banco de dados alimentado por atos de competência dos oficiais dos Registros Civis das Pessoas Naturais interligados com um regimento administrativo próprio. Sem dúvida, a inclusão digital dos serviços extrajudiciais reflete um avanço considerável, tendo em vista a enorme redução de custos de transação. Por meio da virtualidade dos serviços, as despesas e tempo despendidos com o deslocamento à respectiva Serventia são substituídos pela faculdade do cidadão requerer e receber em seu endereço certidões instantaneamente atualizadas, sem ter de percorrer quilômetros de distância ou levar horas para se deslocar em uma cidade de infraestrutura deficitária. A adesão à tecnologia informacional é marco a favor do princípio da eficiência do serviço público, independente de qualquer distribuição ou equalização dos serviços de títulos e documentos. Aliás, a referida informatização põe em xeque o próprio ofício de distribuição. É sabido que a própria LNR confere organização técnica e administrativa aos serviços notariais e de registro, com preceitos fundados na economia taylorista, relativos ao ordenamento científico do trabalho com método, técnica e especialização, por meio de uma definição de tarefas. Nesse sentido, a inserção tecnológica e interligação dos serviços atende a problemática em benefício da eficiência. De fato, o CDT tornou-se ferramenta a favor da celeridade e eficiência dos serviços de Títulos e Documentos da capital, com o cognome de "poupa tempo" dos RTDs. Contudo, a tecnologia se põe à favor do final da partida de "ping pong" em benefício do cidadão usuário. Diante de todo o arrazoado o centro da discussão deve ser deslocado da existência ou não da central para o uso adequado da tecnologia como fator central na prestação do serviço em benefício da cidadania. Existindo ou não a central, a carência dos registros gira em torno da tecnologia como fator de produção. __________  1Akerlof, George A. (1970). "The Market for 'Lemons': Quality Uncertainty and the Market Mechanism". Quarterly Journal of Economics (The MIT Press) 84 (3): 488-500. doi:10.2307/1879431. 2W. Ceneviva. Lei dos Notários e dos Registradores Comentada. 9ª edição. São Paulo: Saraiva. p. 158.
terça-feira, 25 de março de 2014

Alienação Fiduciária em Garantia II

Na quinzena anterior destacamos a alienação fiduciária como fenômeno distinto da propriedade resolúvel. O mote maior foi explicar que o credor fiduciário ao celebrar o negócio não se torna proprietário resolúvel do bem, muito menos o devedor fiduciante, titular reivindicante. Esclarecemos o fato de que ao estabelecer o negócio, o bem, embora deixe de ser de titularidade do devedor, não ingressa diretamente no patrimônio do credor, constituindo, dessa maneira, um patrimônio afetado, ou seja, sem titular certo, como se o bem tivesse sido abandonado ou renunciado, permanecendo em um "limbo jurídico", fora do comércio, por arbítrio das partes. Arrematamos o assunto salientando ainda que a dita alienação fiduciária não se confunde, portanto, nem com propriedade resolúvel e nem com direito de garantia, sendo instituto sui generis no universo jurídico. Nesta semana, trabalharemos os requisitos para a consolidação da propriedade fiduciária, tópico de grande relevância no mercado imobiliário, notadamente no âmbito da habitação e da constituição de crédito, em que paira alta taxa de inadimplência, pelo excesso de garantismo às instituições financeiras, dentre outros consectários. Na Alienação fiduciária em garantia, o adimplemento da obrigação contratual enseja a consolidação da propriedade nas mãos do devedor (art. 25, da lei 9.514). Já sob a hipótese de inadimplemento, consolidar-se-á nas mãos do credor fiduciário, concomitante ao cumprimento de determinados requisitos procedimentais (art. 26). Como já dito, na vigência do contrato o bem está afetado, não sendo de titularidade de qualquer das partes, aguardando como mencionado a obrigatória incidência do art. 25 ou 26, tanto isso é verdade que se o devedor fiduciante quiser, neste período em que as prestações estão sendo pagas, alienar o bem, necessitará obrigatoriamente de expressa anuência do credor para ceder seus direitos sobre a coisa (art. 29). No caso do adimplemento, o credor fiduciário disponibilizará o termo de quitação ao devedor fiduciante para que seja averbada a extinção da propriedade fiduciária, cancelando seu registro. Não se faz necessária a entrega do termo ao devedor, basta deixá-lo à disposição do mesmo. Caso o credor não cumpra com sua obrigação de disponibilizar os termos de quitação, sofrerá a sanção do art. 25, parágrafo 1º, com incidência de multa de 0,5% ao mês ou fração, ambos sobre o valor do contrato. A lei é atécnica e confusa com relação ao vocábulo fração, embora interpretemos que esta corresponderia à proporcionalidade dos dias em atraso, não excluindo a possibilidade, em caso de tutela jurisdicional, do juiz estipular valor maior1. Essa é uma obrigação de fazer do fiduciário, passível de ação própria a compeli-lo e responsabilizá-lo por perdas e danos, além de multa. Cabe lembrar, porém, que o requisito fundamental para a retomada da propriedade é o pagamento da dívida e não o fornecimento da quitação pelo credor. No caso do retardamento da obrigação legal de outorgar a quitação, a sentença judicial apenas declarará a dívida e determinará ao oficial de Registro de Imóveis o cancelamento da propriedade registrada em nome do credor, condenando-o ao pagamento da multa a ser revertida em benefício do devedor fiduciante. No que tange ao inadimplemento, o primeiro detalhe a ser observado é o prazo de carência fixado no contrato. Por óbvio, quanto maior for o prazo de carência concedido pelo credor, mais difícil ficará para o devedor quitá-lo. Caso, por exemplo, sendo concedido um prazo de 90 dias, somente após o termo final é possível ao credor comparecer no ofício de registro de imóveis e requerer a intimação para fins de purgação da mora, que sempre tem que ocorrer de forma integral. Logo, para bens imóveis a lei 9.514/97 estabelece que purgada a mora no Registro de Imóveis, o contrato de alienação fiduciária convalescerá e o oficial do Registro de Imóveis, nos três dias seguintes à purgação da mora, deverá entregar ao fiduciário as importâncias recebidas, deduzidas obviamente as despesas de cobrança e intimação. No caso de inadimplemento, compete ao oficial do Registro de Imóveis escolher a forma de intimação do devedor, que poderá se dar: por ofício de títulos e documentos, por preposto seu ou por correio, com AR. O oficial do RI tem que ser muito diligente, pois sua certidão é o último momento de defesa antes de eventual ação de reintegração de posse e caso seja mal feita a referida intimação poderá ensejar prejuízos desmedidos ao devedor fiduciante. Conforme artigo 26 da lei 9.514/97 de alienação fiduciária em garantia de bens imóveis, o devedor deverá ser intimado pessoalmente, nas formas acima mencionadas, por edital caso não seja encontrado, por meio do oficial do Registro de Imóveis, para o adimplemento em quinze dias das prestações vencidas e vincendas até a data do pagamento. Observe-se que não existe intimação por hora certa. Em caso de pagamento, serão imputados os juros convencionados, a multa, em caso de cláusula penal, bem como os tributos, os condomínios, as despesas de intimação e de cobrança e mais o período de carência contratualmente estabelecido pelas partes. Com relação a este tópico as Normas de Serviço Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo, no capítulo XX, item 252, estabelecem a necessidade de intimação individual de todos os devedores ou cessionários, incluindo seus cônjuges. Na prática o contrato tem estabelecido uma cláusula mandato possibilitando a um dos cônjuges representar o outro, o que no caso é flagrantemente arbitrário e ilegal. Também é possível, conforme já dito, que a intimação seja delegada, pelo oficial do Registro de Imóveis, ao oficial de Registro de Títulos e Documentos, contudo trata-se de iniciativa cabível, única e exclusivamente, ao registrador imobiliário e não ao credor fiduciário. Depois de procurado o devedor e não encontrado, o oficial de Registro de Imóveis providenciará a publicação dos editais, durante três dias em pelo menos um dos jornais de maior circulação local ou da comarca próxima, em caso da inexistência de imprensa diária. Purgada a mora pelo fiador, junto ao oficial de Registro de Imóveis, o contrato de alienação fiduciária continuará em pleno vigor e o fiador sub-rogar-se-á nos direitos do credor fiduciário. Caso contrário, se a dívida não for paga dentro de 15 dias, o oficial de Registro de Imóveis providenciará, mediante requerimento com prova do pagamento do imposto de transmissão inter vivos, o registro de consolidação da propriedade em nome do credor fiduciário. A certidão do oficial do registro de imóveis, neste caso, é ato extremamente sério, pois ensejará a retomada forçada do bem, sem qualquer intervenção judicial até a propositura da competente ação de reintegração de posse. Em sequência, providenciará o fiduciário, no prazo de 30 dias, a partir do registro da consolidação e das intimações, o leilão público para a venda do imóvel. Aos leilões a lei não exige a necessidade de editais ou de intimação do fiduciante, que já deveria ter sido alertado, por ocasião de sua intimação, bem como, por ocasião da assinatura do contrato, pelos princípios da publicidade da relação consumo, normalmente presente. Poderão ser realizados, ao todo, até dois leilões. No primeiro leilão será oferecido valor, que pode suplantar ao do imóvel, constante no contrato devidamente corrigido, conforme índice estipulado. Entretanto, o que acaba por ocorrer na prática é uma supervalorização do valor imóvel, com valor em leilão acima do de mercado, obstáculo evidente à aquisição do imóvel em uma primeira praça. Neste primeiro leilão, o credor seria obrigado a devolver aquilo que foi pago pelo devedor, para não gerar bis in idem. Nesse contexto, como já esperado, em caso de não licitantes, haverá um segundo leilão em 15 dias, em que o imóvel será vendido pelo maior lance superior à dívida, contabilizando na mesma obviamente os juros, com correção e multa, o valor de prêmios de seguros, encargos, tributos, condomínios, além das despesas com o referido ato. O valor arrecadado superior às despesas caberá ao credor (antigo devedor), o que dificilmente ocorre na prática. Porém em segunda praça o imóvel é adquirido pelo valor da dívida, logo, embora a lei exija a restituição do valor excedente ao credor, acaba que ele nunca é restituído, chegando em grande parte das vezes, constituir até um confisco ao fiduciante que havia oferecido em garantia um bem de valor muito superior ao montante da dívida. Nessa situação específica se faz necessário verificar a existência ou não de ações judiciais, e se o credor foi realmente ressarcido, evitando que o fiduciário confisque o imóvel do fiduciante. Caso não ressarcido, como dito, além de pagar a dívida o devedor estaria na realidade sendo confiscado, vedando o sistema o enriquecimento sem causa. Caso, no segundo leilão o valor da arrematação seja inferior ao valor total da dívida, esta se dará por extinta, cabendo ao credor do mesmo modo a entrega do termo de quitação ao devedor (art.27, § 5º, lei 9.514). O mesmo ocorrerá na ausência de arrematantes, hipótese em que a propriedade se consolidará definitivamente, desprovida de qualquer limitação, nas mãos do credor fiduciário. Considerando este contexto, a arrematação se tornou um "ponto de estrangulamento para a fluidez do procedimento"2. Como já mencionado, dificilmente ocorre a arrematação em primeira praça, vez que os interessados optarão por esperar a segunda arrematação, quando poderão oferecer lanços inferiores, hipótese vedada no primeiro Leilão. Por fim, esta consecução de eventos acaba por provocar maior custo e demora, em prejuízo de ambos os envolvidos na arrematação. Como uma possível solução para o problema da arrematação, o emérito professor Bernardo Bissoto Queiroz de Moraes propõe uma alteração legislativa que valorize a celeridade e a economia processual, a partir da configuração do pacto de melhor comprador, no direito atual, e da verificação das relações existentes entre a in diem addictio e a auctio pública no direito Romano3. O "pacto de melhor comprador" é um instituto de criação romana, que foi utilizado no Brasil como cláusula especial ao contrato de compra e venda, impondo cláusula resolutiva ou suspensiva com a condição de que não surja, em um determinado prazo, outro comprador que ofereça proposta mais vantajosa. O instituto, entretanto, manteve-se durante muito tempo em desuso no país, durante praticamente os 80 anos de vigência do Código Civil de 1916, por isso foi muito pouco estudado no direito moderno. Nesse contexto requer-se socorro ao estudo de seu equivalente no Direito Romano, isto é, à in diem addictio, uma condição sujeita à adjudicação final em vendas públicas. O caminho do estudo proposto é valido, na medida em que se coloca a favor da celeridade e eficiência do sistema como um todo, tendo por objetivo o fim do estrangulamento do atual sistema. Na prática, o que tem acontecido muito é uma dação em pagamento do bem do devedor ao credor ou, em muito casos, a adjudicação do bem pelo credor, já que o sistema é dinâmico e rico em detalhes. Por fim, nos termos do art. 30 da lei 9.514/1997, considerando que tanto o credor fiduciário, seu sucessor ou cessionário dos direitos decorrentes da alienação fiduciária, quanto o adquirente no público leilão, poderão se valer de ação de reintegração de posse, com possibilidade de liminar para desocupação, em sessenta dias. Segundo o art. 37-A da lei 9.514/1997 o direito de o fiduciário ingressar com ação de reintegração de posse se dá a partir do dia da alienação no leilão público, termo inicial legal para contagem do aluguel-pena imposto ao devedor que não restituir a posse4. Entretanto, a ação de reintegração de posse pode anteceder a realização do leilão, tendo como pressuposto único a consolidação plena da propriedade na pessoa do credor fiduciário. Comprovada a consolidação, a problemática se insere na questão do imóvel estar locado, pois admitida a aplicação da Lei do Inquilinato, a locação deverá ser denunciada no prazo de trinta dias para a desocupação, tendo em vista a relatividade dos efeitos dos contratos. Tudo isso sem prejuízo da hipótese do fiduciário ter anuído, por escrito, com a locação, o que é muito raro na prática5. Em todo o caso, nesta hipótese, a denúncia se dará em 90 dias, a partir da data de consolidação da propriedade ao fiduciário, cláusula esta que deverá constar expressamente no contrato de alienação fiduciária. O locatário não possui qualquer direito de preferência para aquisição do imóvel no leilão extrajudicial, como consta no parágrafo único do art. 32, lei 8.245/1991, sem prejuízo dos contratos anteriores a 1º de outubro de 2001, aos quais é válido o direito de preferência no Leilão. Outro conflito apresenta-se na utilização pelo fiduciário, que teve a propriedade consolidada em seu nome, da ação de reintegração de posse, regramento previsto pelo art. 30 da lei 9.514 ou da ação de despejo, aplicável em virtude do art. 8º da lei 8.245/1991. Marcelo Terra entende que a melhor ação seria a de reintegração de posse, dada a expressa e específica disposição legal, ainda que diversa da lei do Inquilinato, para a denúncia pelo adquirente. Ademais a lei 9.514/1997 prevê prazos diferentes, bem como sistemática diversa à lei do inquilinato, como ressalta L. A. SCAVONE acresce-se ainda o fato de que a alienação fiduciária é pública, não podendo o locatário ignorar as consequências da consolidação nas mãos do fiduciário e do públicio leilão ante o registro imobiliário. A única exceção se daria na hipótese da alienação fiduciária suceder o contrato de locação, com permanência do locatário do fiduciante após a constituição da propriedade fiduciária, tendo em vista ainda o fato do art. 32 da lei 8.245/1991 não conceder ao locatário o direito de preferência, não exigindo sua comunicação ou anuência. De fato, a verificação das vantagens da aplicação da alienação fiduciária deve ser analisada realisticamente, em cada caso concreto. As possibilidades de vantagem, especialmente no mercado imobiliário, são potencialmente convincentes, a principal, sem dúvida, é a rapidez de recuperação do bem pelo credor-fiduciário, quando do inadimplemento do devedor-fiduciante. Os procedimentos de recuperação do crédito fiduciário, nos casos de inadimplemento do fiduciante, são passsíveis de realização extrajudicial, de forma rápida, simples e sem ferir qualquer preceito constitucional. Tudo em benefício da desburocratização do sistema de recuperação de créditos nacional, que se mostra ultrapassado, carecendo de evolução aos moldes de um mercado ativo, global e atrativo aos investidores internos e externos6. A matéria de toda sorte é bastante melindrosa e controvertida, sendo que a referida lei e o sistema brasileiro blindaram nosso mercado da crise de 2008. É inegável, porém, que as considerações sobre os princípios constitucionais ainda não chegaram a bom termo: quer pra estimular o crédito, quer na proteção das garantias fundamentais e sociais da pessoa humana. __________ 1L. A. Scavone Junior, Direito Imobiliário - Teoria e Prática. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 442. 2D. Armelin, O processo de execução e a reforma do código de processo civil, in Reforma do código de processo civil, São Paulo, Saraiva, 1996, p. 761 3O Pacto de melhor comprador e a "in diem addictio". Madrid: Dykinson, 2010, p. 5 4L. A. Scavone Junior, Direito Imobiliário - Teoria e Prática, Rio de Janeiro: Forense, 2014 , p. 455 5L. A. Scavone Junior, Direito Imobiliário - Teoria e Prática, Rio de Janeiro: Forense, 2014 , p. 457 6A. C. C. Dantzger, Alienação Fiduciária de Bens Imóveis, São Paulo: Método, 2005, p.123.
terça-feira, 11 de março de 2014

Alienação Fiduciária em Garantia I

Iniciaremos hoje uma quinzena de discussões sobre a Alienação Fiduciária em Garantia, instrumento cada vez mais utilizado para aquisição e oneração de bens duráveis e de alto valor no contexto da expansão econômica brasileira, hoje responsável pelo desuso da hipoteca no mercado imobiliário. O intuito do artigo é chamar algumas questões a discussão, sempre com o escopo de buscar uma melhor operabilidade, em detrimento de deficiências sistêmicas. A alienação fiduciária em garantia tem se mostrado um meio extremamente eficiente para o credor assegurar a recuperação do capital investido e não devolvido espontaneamente pelo devedor na data determinada, fruto da inoperabilidade dos demais meios de garantia notadamente a hipoteca e a anticrese no que toca a bens imóveis. De gênese romana, o instituto é oriundo da antiga fidúcia cum amico, um contrato de confiança que possibilitava o acautelamento de bens no intuito de evitar riscos e proteger o devedor fiduciante de circunstâncias aleatórias, que poderiam ocasionar o perdimento de bens. O credor fiduciário (amigo) ficava responsável pela restituição dos bens em caso de perda, por exemplo, em uma guerra, por parte do tido devedor. Não havia negócio jurídico subjacente, o objetivo era a proteção contra penas severas, impostas pelo império romano. Posteriormente, essa modalidade se transformou na fidúcia contraída cum creditore pignoris iure, uma garantia real, pela qual o credor de uma obrigação preexistente se tornava proprietário de uma coisa do devedor, obrigando-se aquele, pelo pactum fiduciae, a restituí-la a este, após o pagamento da dívida1. Nesta oportunidade, nasce efetivamente o vínculo principal, o vínculo acessório e as figuras efetivas do credor e do devedor. A alienação fiduciária também está presente em países de common Law, correspondendo ao trust receipt, por meio do qual o devedor transfere fiduciariamente o domínio da coisa como garantia2. Inicialmente, é fundamental deixar claro que a Alienação Fiduciária em Garantia é uma espécie do gênero propriedade fiduciária, e não uma propriedade resolúvel como muitos supõem, confundindo a natureza do instituto, incluindo o próprio legislador, tanto nos artigos 1.361 quanto do artigo 22 da lei 9.514/97. Em ambos os diplomas legais, o legislador salienta que o devedor fiduciante, ao celebrar o negócio transfere ao credor fiduciário a propriedade resolúvel do bem móvel ou imóvel. Desde já, é bom salientar que a efetiva transferência só ocorrerá com o inadimplemento da obrigação, chamada de consolidação, não se confundindo, portanto, de forma nenhuma com a propriedade resolúvel. No Brasil, a Alienação Fiduciária em Garantia, foi introduzida no ordenamento pela Lei de Mercado de Capitais, 4.728 de 10/7/1965, que, no entanto, referiu-se ao instituto como um domínio resolúvel, iniciando então a confusão onomástica e técnica. Em 1993, com a Lei dos Fundos de Investimento Imobiliário, n. 8.668, legislador pareceu compreender a inadequação do tratamento como propriedade resolúvel, optando por denominá-lo "propriedade fiduciária", conforme art. 7º da referida lei. Em 1997, pela lei de Financiamento Imobiliário 9.514, retoma-se o nomen juris "propriedade resolúvel", ao regular a alienação fiduciária de coisa imóvel, tendo, paradoxalmente, a mesma lei facultado a constituição de um regime fiduciário à operação de securitização de recebíveis imobiliários. No Código Civil de 2002, o legislador retoma novamente a ideia da propriedade fiduciária, diferenciando-a da propriedade resolúvel. Entretanto, seus artigos referem-se apenas à alienação fiduciária em garantia de bem móvel tratada na Lei 4.728/1965 e no decreto lei 911/69, parcialmente revogado (derrogado) pelo códex civil. Por fim em 2004, na lei 10.931, ao tratar da afetação patrimonial, o legislador esbarra novamente na mesma problemática, sem, contudo, resolvê-la. Aliás, este último diploma modifica o decreto 911, o Código Civil e a lei 9.514/97, tendo esta última sido ainda reformulada pela lei 11.481/07. Para esclarecer o assunto, cabe distinguir os conceitos de propriedade resolúvel e propriedade fiduciária. Parte da doutrina entende que em ambas as figuras tem-se a limitação aos plenos poderes de propriedade (absoluto, exclusivo, aderente, perpétuo e limitado). Na propriedade resolúvel alguns autores entendem que a referida limitação decorre da própria autonomia privada, enquanto na propriedade fiduciária, decorre de imposição legal3. Ainda sob este raciocínio, a propriedade resolúvel ocorre quando existente no título formal que originou o direito de propriedade, uma condição resolutiva (eventos futuros e incertos) ou um termo (eventos futuros e certos), cujas ocorrências implicam a extinção do domínio sobre o bem. Desse modo, o proprietário resolúvel age como proprietário legítimo para todos os fins, seja para a prática de atos de administração, seja para a disposição sobre a coisa até o momento de implemento da condição ou do advento do termo. A partir daí, resolvem-se os direitos reais concedidos durante a pendência, de modo que o bem em questão deve retornar ao proprietário anterior (diferido), em favor do qual se operou a resolução. Por outro lado, caducada a condição, o proprietário resolúvel se torna o legítimo proprietário do objeto, em função do desaparecimento da restrição sobre a propriedade. Cabe ressaltar que o proprietário diferido, durante a pendência da condição ou do termo, não é proprietário do bem, possuindo apenas a expectativa de direito. Implementada a condição ou o termo, o art. 1.359 do Código Civil faculta ao proprietário diferido a reivindicação da coisa em poder de quem quer que essa esteja. Importante destacar, que no caso da propriedade resolúvel, é a autonomia da vontade que opõe a limitação ao direito de propriedade, de modo, a subtrair-lhe parte de sua finalidade econômica, destinando-a a outro fim prático que não o estipulado em lei. Por outro lado, a propriedade fiduciária, embora limitada, não é por vontade das partes, mas sim por determinação legal. Nesse caso, há a celebração de um negócio jurídico que atribui ao bem ou ao conjunto de bens uma determinada finalidade específica. Segundo a classificação de Orlando Gomes, essa finalidade pode ser de garantia, de administração, ou de inversão. No caso da finalidade de administração, o bem é transferido para ser administrado por um terceiro e não pelo seu beneficiário, muitas vezes desprovido de capacidade ou competência; já no caso da inversão, certa soma de dinheiro é concedida ao fiduciário a fim de que a aplique, obrigando-se a pagar a renda estipulada, bem como à devolução do capital transferido. Para simplificar um pouco mais a questão, na propriedade resolúvel, independentemente de sua origem tem-se a transmissão dominial do antigo titular para o proprietário resolúvel, podendo o titular reivindicante trazer de volta a coisa, uma vez operada a resolubilidade (art. 1.359 CC). Numa ideia mais simples é isso que se verifica na retrovenda. O proprietário aliena um bem ao proprietário resolúvel e pode reivindicar o bem no prazo máximo prorrogável por três anos, restituindo e reembolsando tudo o que pagou (art. 505). Tal fenômeno não acontece de forma alguma na alienação fiduciária, pois não é propriedade resolúvel, não porque a lei ou a vontade estejam envolvidas, não é propriedade resolúvel porque ao celebrar o negócio o credor fiduciário não se torna proprietário do bem resolúvel e nem o devedor fiduciante se torna titular reivindicante. Ao estabelecer o negócio, o bem deixa de ser de titularidade do devedor, mas também não ingressa no patrimônio do credor. O bem fica afetado, ou seja, sem titular certo. Ocorre como se o bem tivesse sido abandonado ou renunciado, fica num limbo jurídico, fora do comercio, por arbítrio de qualquer das partes. O credor fiduciário, na vigência do contrato não pode usar fruir ou dispor do bem, tem um mero crédito abstrato e insuscetível de ser resgatado na vigência do contrato. Já o devedor fiduciante pode usar e fruir, mas não pode dispor sem a anuência do credor (art. 28 da lei 9.514). Obviamente, o devedor fiduciante é muito mais titular da coisa que o credor fiduciário, tem a posse direta o uso e a fruição. Já o credor como já dito não tem nada, a não ser aguardar a mora e o inadimplemento para ai sim consolidar a propriedade em si. A propriedade, portanto, permanece no limbo até a ocorrência do pagamento ou quitação, ocasião em que o antigo titular (devedor fiduciante) retoma a integralidade de poderes (art. 25, parágrafos 1º e 2º) ou opera-se a mora e o inadimplemento com efetiva consolidação de domínio pelo credor ocasião em que passa a estar obrigado a recolher o ITBI e eventual laudêmio (art. 22, parágrafo 1º combinado com o art. 26 da lei 9.514/97). Tem-se como objeto do presente artigo a propriedade fiduciária de garantia, dada pela Alienação fiduciária em garantia, tendente a substituir institutos tradicionais como o penhor e a hipoteca, que deixam a desejar no contexto da expansão do mercado econômico financeiro da atualidade. Antigamente no Brasil, a inexistência da Alienação Fiduciária em garantia dificultava a retomada do bem no mercado, como já mencionado acima, por isso é uma eficiente ferramenta a favor do sistema de recuperação do imóvel, além de auxiliar na recolocação mais rápida do mesmo no mercado4. Assim, no caso da lei 9.514 de 1997, o objetivo claro e inequívoco do legislador foi o de facilitar e tornar mais segura a concessão de financiamentos para a compra e venda de imóveis, mormente diante dos inúmeros obstáculos vinculados à hipoteca, principal instrumento até então para o nascimento da garantia5. A hipoteca é de execução lenta, ao sabor da delonga dos processos judiciais6, ademais nem sempre possui o privilégio de sobrepujar os demais credores, mesmo os trabalhistas e os fiscais, como garante a alienação fiduciária em caso de falência do devedor. Na hipoteca também não ocorre a transferência da propriedade do bem hipotecado ao credor, sendo que o devedor poderá inclusive hipotecá-la novamente, não obstante conste na matrícula imobiliária o registro da garantia hipotecária anterior. Esta última situação é bastante discutível no que concerne a alienação fiduciária em garantia. Desse modo, o instituto milenar da hipoteca acaba por perder a sua força diante da agilidade e eficiência da alienação fiduciária no contexto imobiliário. A súmula 308 do STJ enterrou a alienação fiduciária ao determinar que "a hipoteca firmada entre a construtora e o agente financeiro, anterior ou posterior à celebração da promessa de compra e venda, não tem eficácia perante os adquirentes do imóvel". Com isso, as instituições financeiras perderam completamente o interesse na hipoteca e passaram a focar na alienação fiduciária. No caso dos outros institutos, o penhor dificulta as negociações mercantis ao exigir a tradição da coisa apenhada, enquanto a anticrese caiu em desuso, dada a complexidade das relações socioeconômicas modernas. Na próxima quinzena, melhor trabalharemos os requisitos para a consolidação da propriedade fiduciária, entre outros consectários. Esperamos que tenha clareado a distinção entre os institutos da Propriedade Resolúvel e da Propriedade Fiduciária, tendo como espécie deste a Alienação Fiduciária, instrumento de garantia de extrema importância e utilidade para as relações econômicas atuais do país. __________ 1Moreira Alves, J. C. Direito Romano. São Paulo: Forense. 1999. 2Santos, S. C, Risco Legal nas Instituições Financeiras: o impacto da jurisprudência sobre o crédito bancário. Dissertação de Mestrado, Universidade de São Paulo, Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade, São Paulo, 2007. 3Martins, R. M. A propriedade fiduciária no direito brasileiro. Revista da EMERJ, v. 13, n.51, 2010. 4Virgilio, L. M. . Financiamento para Habitações populares no Brasil e no México: uma análise comparada. Dissertação de mestrado, Universidade de São Paulo, Escola Politécnica, São Paulo, 2007. 5Nygaard, R. Alienação Fiduciária de Imóveis. 2011. 6Dantzger, A. C. C. Alienação Fiduciária de Bens Imóveis. São Paulo: Método. 2005.
terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

A doação com reserva de usufruto

Hoje discutiremos a aplicabilidade de dois antigos, porém extremamente relevantes institutos, a saber: a doação e o usufruto, os quais quando aliados adquirem papel fundamental no ordenamento jurídico, tendo em vista o planejamento sucessório na perspectiva da prevenção dos litígios. A doação com reserva de usufruto se corretamente aplicada é de extrema valia para o direito e para a economia, além de ser via adequada e célere para a proteção tanto do patrimônio familiar quanto do cidadão herdeiro adquirente de boa-fé, além de primar pela segurança e estabilidade das relações socioeconômicas brasileiras. A figura jurídica em si da Doação com reserva de Usufruto é extremamente complexa, incidindo, inclusive, nas vendas bipartides, em que a pessoa já adquire doando e reservando o usufruto em um único negócio jurídico. Este, porém, não será tema de discussão neste artigo e nem o fenômeno da consolidação ou outras questões notariais e registrais complexas que afligem o profissional e o concursando. Na atualidade, muito mais importante do que criar um patrimônio é saber preservá-lo e transmiti-lo por entre as gerações com o menor gasto econômico possível para proteger a geração subsequente. É sabido que os inventários e partilhas são fontes de grande empobrecimento por parte de herdeiros legatários, na medida em que o ônus tributário precisa ser quitado em prazo exíguo de uma única vez. Se houver litígio, o processo se arrastará por anos com uma série infindável de gastos com peritos e outros profissionais, além do desgaste pessoal e deterioração dos vínculos humanos e familiares. Por meio da Adoção do instituto em questão é possível evitar litígios, preservar fortunas, reduzir despesas e garantir o bem estar sócio familiar, de modo que o patrimônio adquirido em toda uma vida não se dissipe em conjunto com seu patriarca. Trata-se de uma ferramenta apta a ajudar o empresário na organização patrimonial e profissionalização do seu negócio, visando a transparência, a segurança, bem como a credibilidade perante o mercado. Nessa linha de raciocínio, o Direito Material brasileiro (Direito Civil, Empresarial, Tributário e Legislação Extravagante) possui uma série de ferramentas que podem ser utilizados em favor do cidadão como instrumentos e parâmetros de manutenção perene, racional e governável do patrimônio adquirido, quer físico, quer por pessoa física ou jurídica, havendo forte preocupação nesta última, tendo em vista que um ou mais herdeiros podem não possuir o traquejo ideal para continuar os negócios. Por isso, é dever do titular original dos bens (normalmente genitores),como cidadãos, planejar a sua sucessão pós morten, primando pelo bem estar não só de sua família, mas da sociedade e do Estado como um todo. A sucessão se traduz como um fenômeno importante para a coletividade na medida em que um determinado patrimônio pode se tornar indispensável à satisfação de interesses sociais inerentes à atividade econômica. Dentro da perspectiva da função social da empresa, o patrimônio empresarial de determinado grupo envolve não apenas o lucro dos seus proprietários e familiares, mas o interesse da coletividade inserida naquele contexto sócio econômico, como, por exemplo na manutenção das relações de trabalho. Logo, como cidadão, é dever do indivíduo preocupar-se com os reflexos de suas decisões perante a realização social da coletividade. Nesse contexto, a doação com reserva de usufruto é uma estratégia importante para a transmissão do patrimônio aos herdeiros reduzindo o impacto tributário, além de outros consectários sociais e nos negócios de forma geral. A doação é disciplinada de forma meticulosa por nossa codificação civil e vem conceituada pelo artigo 533 do diploma mencionado como o contrato pelo qual uma pessoa, por liberalidade, transfere de seu patrimônio,bens ou vantagens para o de outra pessoa. O contrato de doação é essencialmente gratuito, inexistindo nele qualquer sinalagma à transferência dos bens do patrimônio do doador ao donatário. Apesar do Código utilizar o termo liberalidade, entende-se que o termo mais adequado seria gratuidade, uma vez que liberalidade pressupõe um interesse altruístico e na doação pouco importa a espécie de interesse que lhe deu nascimento ou se os motivos do doador eram de fato altruísticos ou totalmente egoísticos. Assim, a doação será formal e solene no caso de doação de imóvel com valor superior a 30 salários-mínimos( artigo 108 do Código Civil), se inferior será formal embora não solene, ou seja, não será necessária escritura pública, bastando o instrumento particular, para satisfação do requisito formal. Apenas para bens móveis de pequeno valor, o artigo 541 preceitua que a doação dispensa a forma escrita, podendo ser celebrada verbalmente desde que seguida pela tradição, isto é, a entrega da coisa, o que caracteriza a doação manual. Para a transmissão do bem imóvel incide um tributo denominado imposto de transmissão causa mortis e doação, um dos impostos mais antigos da história da tributação, havendo relatos de sua exigência em Roma sob a forma de vigésima sobre heranças e doações. O ITCMD (a sigla muda de Estado para Estado) é gerado pela transmissão da propriedade e de direitos (cessão) sobre quaisquer bens em caráter não oneroso, seja decorrente da morte ou da doação. Cabe ressaltar que deverá ser recolhido ao estado em que se localiza o bem. O artigo 155 da CF estabelece ser de competência dos Estados e do Distrito Federal a instituição do ITCMD, logo possui valor variável conforme o Estado, sendo por exemplo, em São Paulo e no Rio de Janeiro de 4%; em Minas Gerais pode chegar a 5%, existindo, portanto, alíquotas diferentes. Ao legislador estadual também é concedida a faculdade de eleger o responsável pelo tributo, no entanto se por ocasião da lavratura do instrumento público o tabelião não exigiu a prova de quitação do imposto de transmissão, ele responsabilizar-se-á pelo pagamento do tributo, uma vez que é obrigado por lei a exigir a prova de quitação. No caso de bens imóveis, o momento do fato gerador é o do registro da escritura de transmissão, pois é o momento em que a transmissão de domínio se opera em relação a terceiros perante o Sistema Civil Registral (artigo 1245 do Código Civil) . Há quem sustente que reconhecer o registro do imóvel como fato gerador é reconhecer uma atividade estatal como fato gerador, retirando da autonomia privada tal mister, o que seria impossível. Por isso, é mais adequado interpretar que toda a formalidade tendente à transmissão dos direitos da propriedade, desde a lavratura da escritura até o registro na respectiva circunscrição imobiliária é fato gerador1. A base de cálculo de cobrança do ITCMD é a parte transmitida em conformidade com os arts. 12, §2º, item 4, e art. 31, §3º, item 1, do decreto Estadual 46.655/02, que prevê como base de cálculo o recolhimento apenas sobre a nua-propriedade e facultativamente seria possível o recolhimento sobre a integralidade do imóvel. No entanto, como realizar a doação de um imóvel e manter o direito sobre o uso e fruição deste mesmo bem até a abertura da sucessão? Atualmente uma das formas mais frequentes e comuns de doações é a com reserva de usufruto, muito utilizada pelos pais visando evitar problemas futuros com a distribuição da herança, bem como com as despesas com inventário após o falecimento. Nesse contexto, alguns pais acabam doando seus bens ainda em vida a seus descendentes e para evitar qualquer ato de distribuição da nua-propriedade, impõe ainda a cláusula de inalienabilidade. É bom lembrar que caso ocorra a mera transmissão sucessória, o recolhimento tributário deverá ocorrer de uma só vez, o que poderá ser catastrófico para a transmissão sucessória. O usufruto de bens é muito discutido em práticas comerciais e imobiliárias, embora poucos o interpretem adequadamente. Trata-se de um direito real sobre coisa alheia e Sílvio Venosa ensina que o usufruto é um direito real transitório que concede a seu titular o poder de usar e gozar durante certo tempo, sob certa condição ou vitaliciamente de bens pertencentes a outra pessoa, a qual conserva a substância do bem2. É importante salientar que as relações de fruição do Código Civil sempre tiveram em desuso, lembrando a enfiteuse, a anticrese e a constituição de renda. O Usufruto só não foi para o mesmo caminho porque passou a ser uma cláusula acessória no Contrato translativo de doação. Desse modo, uma pessoa que doa um imóvel mas reserva a si o usufruto transmite a nua propriedade, ou seja, a propriedade despida dos poderes de usar e fruir, reservando a si tais poderes não conferidos, em observância ao princípio da exclusividade dominial. Também existe a possibilidade do proprietário restituir o usufruto a uma terceira pessoa, neste caso ele doará a propriedade despida para alguém e instituirá o usufruto a um terceiro. Trata-se do exemplo do pai que doa a propriedade nua para o filho, mas institui o usufruto para uma tia, por exemplo. Existem ainda outras figuras possíveis e que demonstram os vários poderes de oneração do titular dominial. Ademais, o doador poderá gravar o bem doado com uma serie de cláusulas a fim de proteger o patrimônio da prole ou por outro motivo de justa causa. Para tanto, temos: (i) a cláusula de incomunicabilidade, em que o bem doado é transmitido somente ao donatário, logo, qualquer que seja o seu regime de bens, o bem doado não se comunicará ao cônjuge atual ou futuro; (ii) a cláusula de impenhorabilidade, por meio da qual o bem doado não poderá ser penhorado para garantia de pagamento futuro aos credores, mesmo que o donatário tenha contraído dívidas anteriores à doação ou venha a contraí-las posteriormente à doação; (iii) cláusula de inalienabilidade, em que o bem não poderá ser alienado, ademais a inalienabilidade poderá ser vitalícia ou temporária e por fim, (iv) a cláusula de reversão, na qual se o donatário falecer antes do doador, o bem doado retorna ao patrimônio do doador. No caso concreto da escritura de doação com reserva de usufruto, incide o imposto de transmissão (ITCMD) somente sobre a doação da nua-propriedade, e não sobre o usufruto (reservado). Ao usufruto somente incidirá o imposto em determinados Estados quando de sua extinção. Neste caso, a escritura de doação com reserva de usufruto é cobrada como um ato principal e um ato acessório, sendo que este último terá a redução de 75% ou ¾ da tabela, nos termos do item 3.3. combinado com o item 3.5. das Notas Explicativas da Tabela de Emolumentos do Estado de São Paulo, ou seja, será cobrado um ato sobre a base de cálculo da nua-propriedade, e também 25% ou ¼ de ato da base de cálculo do usufruto. É bom lembrar que a maioria dos Estados adota modelo análogo. No caso paulista, com o advento da lei 10.705 de 2000, o Estado ampliou o exercício de sua competência, passando a tributar a transmissão de qualquer bem ou direitos ocorrida por sucessão legítima ou testamentária, excluindo, portanto, as transmissões decorrentes de falecimento do titular de bens e direitos que não pertençam ao acervo hereditário e que não possam ser transferidos por força de testamento. Com efeito, não pode ser tributada em São Paulo a extinção do usufruto por morte do usufrutuário, bem como não deve ser aplicada a regra do denominado direito de acrescer nas doações que caracterizam a transmissão de bens e direitos, vez que não ocorrem por sucessão legítima ou testamentária. Logo, apesar da ampliação da competência tributária paulista, não houve o seu exercício absoluto. Há que se admitir, no entanto, que talvez a não incidência do tributo no caso abordado não era a primeira opção do legislador, tendo em vista que a alínea "f" do inciso I, do art. 6º do RITCMD estabelece que fica isenta do imposto a transmissão "causa mortis", quando o nu-proprietário tiver sido o instituidor, permitindo, desse modo, a interpretação apriorística de que a isenção não incidirá quando o usufruto não tiver sido instituído pelo nu-proprietário. Entretanto, a alínea "f" da lista de isenções se torna letra morta, na medida em que pela regra geral, a hipótese de incidência do tributo se dá somente no caso de transmissões decorrentes da sucessão legítima e testamentária. Conclui-se, dessa forma, que a doação com reserva de usufruto é uma ferramenta extremamente útil aos titulares de bens por que desejam livrar os descendentes da necessidade do inventário e da obrigação de pagar custos excessivos e abusivos. A doação com reserva de usufruto garante ainda ao titular, a manutenção dos poderes de uso e fruição da coisa, de sorte que poderá transmitir todo seu patrimônio desde que respeite o artigo 2018 do Código Civil. Dessa sorte, restará descartada a necessidade de realização de inventário, exceto, é claro, o chamado inventário negativo, pelo qual simplesmente se declara que não há nenhum bem em nome dos falecidos. __________ 1SABBAG, Eduardo. Manual de Direito Tributário. 2011, p. 1036 2VENOSA, Sílvio de Salvo - Direito Civil: direitos reais. 8ª ed. - São Paulo: Atlas, 2008, p. 451.
terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Usucapião tabular familiar - III

Hoje, em nosso terceiro e último encontro referente à série Usucapião Tabular, abordaremos a modalidade do instituto introduzida pela lei 12.424, de 16 de junho de 2011, isto é, o usucapião tabular familiar. A começar pelo nome, não existe, de fato, um consenso sobre o mais adequado, o prof. Flávio Tartuce prefere denominar "usucapião especial urbana por abandono do lar", primando pela didática a distinguir o rural do urbano, já para destacar a origem do instituto, o Prof. José F. Simão se refere a "usucapião familiar", denominaremos Tabular, uma vez que seu grande objetivo é retificar a tábula registral. O usucapião tabular familiar é uma forma de aquisição da propriedade de imóvel em condomínio, por ex-cônjuge ou ex-companheiro que tenha sido abandonado pelo outro em seu lar. Para tanto, basta a concretização da posse exclusiva por um biênio ininterrupto e inconteste em imóvel nos padrões do usucapião constitucional urbano. Preenchido tais requisitos, é conferida a propriedade exclusiva ao ex-cônjuge ou ex-companheiro abandonado. Neste sentido o artigo 1.240-A estabelece que: "aquele que exercer, por dois anos ininterruptamente e sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m2 cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural". Resumindo, o instituto possui como requisitos fundamentais: (i) propriedade comum entre cônjuges ou companheiros, (ii) vínculo familiar, (iii) imóvel em zona urbana ou zona de expansão urbana, regularizado por transcrição ou por matrícula, com no máximo 250m2 de terreno ou área total de condomínio edilício, (iv) com o intuito de derelição do bem, (v) posse ininterrupta e inconteste por dois anos, (vi) moradia própria ou familiar, (vii) propriedade única e, por fim, (viii) única proposição de ação declaratória de usucapião tabular familiar, ou seja o beneficiário não pode se valer da tutela por mais de uma vez, pois, o instituto se dá apenas em condição especial e não resulta em regra com intuito econômico, como menciona o prof. Tartuce. Desse modo, ocorre a regularização da matrícula que consta em um condomínio entre cônjuges, companheiros hetero ou homoafetivos. Vale ressaltar que, como uma modalidade de usucapião tabular, estamos nos referindo aqui também ao usucapião de propriedade certa e conhecida, já previamente registrada no CRI. O objetivo da lei de 2011 foi modificar a lei 11.977 de 7 de julho de 2009, que disciplina o Programa Minha Casa, Minha Vida (PMCMV), inserindo, para tanto, o artigo 1.240-A ao Código Civil (lei 10.406, de janeiro de 2002), que aborda o usucapião tabular familiar. A nova modalidade visou proteger particularmente aquele que abandonado pelo cônjuge ou companheiro permaneceu no imóvel. Trata-se de hipótese pouco distinta do artigo 1.242 (aquisição a "non domino"), que, no entanto, tutela o mesmo bem jurídico, isto é, a veracidade da tábula registral. A modalidade é ainda familiar, vez que opera somente no seio da família (art. 226, CF). O usucapião familiar, tal como o usucapião tabular genérico, busca atender a questão da regularização fundiária. Porém, nos referimos aqui a instituto mais específico, pois se busca legalizar a permanência de famílias das áreas urbanas ocupadas irregularmente para fins de moradia, além da promoção de melhorias no ambiente urbano, bem como na qualidade de vida da comunidade. Logo, incentiva o exercício da cidadania pela comunidade, sujeito do projeto. Nesse sentido, o artigo 1.240-A somente atende a preceitos já constitucionalizados, como a função social da terra (art. 5º, XXIII CF, o exercício de moradia (art. 6º, CF) e a proteção conferida ao núcleo social familiar (art. 226, CF). Tudo em benefício do cidadão, portanto é digno de elogios. O instituto atende ainda à desburocratização dos procedimentos de composição de conflitos familiares, dentro da perspectiva de simplificação que o direito brasileiro adotou. Nesse sentido, como outros exemplos da facilitação visada pelo legislador, hoje se permite a separação extrajudicial, o divórcio direto e livre de prazos, desprovido da exigibilidade de imputação de culpa ou responsabilização pelo término do relacionamento. Cabe lembrar, que estas atualizações hoje consideradas um grande avanço também foram questionadas no passado. Logo, não é possível alegar, que o usucapião familiar se constitui forma de responsabilização pelo término da relação, ele não é causa, mas sim efeito. O requisito do abandono do lar não possui qualquer correlação com a discussão de culpa no divórcio ou na separação, como apontam. A culpa não está sendo ressuscitada e não importa o motivo do cônjuge ou companheiro que deixou o lar. Adotou-se o requisito abandono de lar tendo em vista apenas fins possessórios, o juiz cível ou registral fará uma aferição meramente possessória da questão. Caso, por exemplo, uma mulher sob violência doméstica seja obrigada a "fugir" do lar conjugal para evitar o agravamento do problema e tal situação seja verificável ainda que incidentalmente não ensejará abandono, dada a ausência do elemento subjetivo da derrelição, o que impedirá o usucapião. Ademais o exercício do direito de propriedade do ex-cônjuge ou companheiro não pode se estender infinitamente, uma vez que o tempo exerce grande influência no direito. Não parece situação normal, apesar de corriqueira, que alguém que tenha o domínio regular de um bem possa, levianamente, "deixar para lá" a propriedade, em uma verdadeira "supressio", sem descumprir a função social (art. 5º, XXIII, CF). O cônjuge que teve o seu lar abandonado também não pode aguardar indefinidamente em benefício do direito de propriedade daquele que se retirou, tal situação geraria instabilidade social, ademais o bem ficaria injustificadamente fora do comércio. O cônjuge residente jamais estaria seguro de seus direitos, para, por exemplo, poder negociar seu imóvel, por meio de doação, venda ou troca. A realidade cambiante possui influência efetiva na aquisição e na extinção de direitos. Por isso o decurso do tempo deve ser eficaz na eliminação da relação jurídica cujo direito não foi exercido, dentro da função sócio-econômica da propriedade como manda a Constituição Federal (art. 170, II, III, CF). Portanto, o instituto somente preza pela realização e operabilidade de direitos já positivados. À maneira de Jhering, é da essência do direito a sua realizabilidade, o direito é feito para ser executado e, o que não se executa é como chama que não aquece e luz que não ilumina1. Ademais, como meniona a doutrina, a diminuição do prazo é fruto da modernidade, já que é vetor constitucional a circulação de riquezas. Portanto, o instituto do usucapião familiar também se fundamenta na paz social e na tranquilidade da ordem jurídica. O usucapião familiar se mostra útil à estabilidade e à consolidação dos direitos do residente no imóvel. Ainda nesse contexto, se apresenta como meio para evitar que o ex-cônjuge ou o ex-companheiro desapareça e inviabilize a alienação do imóvel pelo remanescente, por exemplo. Como modalidade de usucapião, aqui também se aplica a teoria da aparência, recepcionada no código civil de 2002. A aparência deve coincidir com a realidade do registro, resguardando o princípio da dignidade humana no amplo limite da inserção social. Nesse sentido, temos que "se a dignidade da pessoa humana visa a estabelecer uma igualdade de direitos e obrigações para todos os homens, e se também visa a proteger os direitos inalienáveis do homem inclusive os de ordem privada, é da ordem do dia a proteção das relações aparentes"2. Assim, a tábula registral é retificada no intuito de que o condômino, possuidor exclusivo, possa extirpar o nome do ex-cônjuge ou ex-companheira que conste no registro, garantindo, a propriedade exclusiva, prevista pelo artigo 1.231 do código civil. Por todo o exposto, conclui-se que o instituto do usucapião tabular familiar é digno de elogios, vez que além de meio eficaz para garantir a propriedade do bem de família pelo cônjuge ou companheiro(a), funda-se nos princípios da função social da propriedade, da confiança e da segurança jurídica, inserido ainda no contexto brasileiro de reestruturação fundiária. Por fim, temos como sua decorrência uma maior circulação de bens e riquezas com segurança e celeridade. Desse modo, chegamos ao fim da série Usucapião Tabular, dentre sua origem, contexto histórico e delimitação prática. Esperamos que tenhamos contribuído para aplicação efetiva do Usucapião Tabular a fim de que não se torne letra morta no Código Civil. __________ 1REALE, M. O projeto do novo código civil: situação após a aprovação pelo Senado Federal. São Paulo: Saraiva. 1999 (2 ed. reform. e atual ed.). 2KÜMPEL, V. F. Teoria da aparência no Código Civil de 2002. São Paulo: Método. 2007. p. 92.
terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Usucapião Tabular e Segurança Jurídica - II

Dando prosseguimento à nossa discussão sobre o usucapião tabular, dentro de suas peculiaridades e benefícios concedidos ao cidadão, abordaremos hoje a sua função sócio econômica no ordenamento a partir do vetor da segurança jurídica até o primado da circulação de riqueza. A estrutura formal dos sistemas de registro, envolvendo a certeza, a absoluta previsibilidade, bem como a veracidade, vem ao longo do tempo impactando de forma particular a economia. Nesse sentido, dentro do cenário fundiário brasileiro, é fundamental o estudo de alternativas que priorizem a regularização dos imóveis e por via de consequências dos registros, diferenciando, por conseguinte, a posse da propriedade dentro de um Estado Democrático de Direito. Para tanto, tem papel peculiar o instituto do usucapião tabular, na medida em que o seu objeto é a regularização formal da propriedade, impactando, portanto, a vida econômica e social do cidadão. Conforme discutido no artigo anterior, o parágrafo único do art. 1.242 do CC, ao reduzir o prazo do usucapião ordinário de dez para cinco anos, se o imóvel foi adquirido onerosamente e registrado, mas, posteriormente, teve seu registro cancelado, atualiza o antigo instituto do usucapião na medida em que simplesmente visava tornar proprietário o possuidor esbulhador . O disposto acima mencionado passou objetivar regularizar uma situação de alguém que tinha um titulo dominial formalmente insubsistente. Desse modo, o instituto se adapta à nova realidade e passa a proteger muito mais do que a tutela da posse, uma vez que atua em benefício da regularização formal dos imóveis dentro da tábula registral. Ganha, portanto, novos contornos, o que, inclusive, justifica a redução considerável do prazo para o seu aperfeiçoamento. Nessa linha de raciocínio o prazo poderia ser inclusive inferior a cinco anos, já que houve uma aquisição onerosa, estando, portanto, em consonância com o consagrado princípio da vedação ao enriquecimento sem causa. O novo instituto, porém, não deixa de considerar os requisitos da boa-fé e do justo título do possuidor, em absoluta observância da função social por determinar investimentos de interesse social e econômico no imóvel, procedendo, portanto, ao cumprimento do consagrado artigo 5º, XXIII, da CF/88. Na perspectiva de regularização da propriedade e de resolver o problema daquele que não sabia, e não tinha como saber, do vício presente no título, o CC se valeu da teoria da aparência, recepcionada no ordenamento jurídico em diversos artigos, dentre os quais o aclamado artigo 1.817. Logo, para a caracterização da proteção dispensada à aparência do direito consideram-se os requisitos subjetivos da boa-fé e do erro escusável que devem atuar inseparavelmente conjugados com os seguintes requisitos objetivos: (i) situação de fato cercada de circunstâncias tais que manifestamente a apresentem como se fora uma situação de direito, (ii) situação de fato segundo a ordem geral e normal das coisas e (iii) que o titular aparente se apresente aos olhos de todos como o legítimo titular. Desse modo, aplica-se a teoria da aparência na venda a "non domino", em que embora o transmitente não seja o dono da coisa, o adquirente está na convicção de que trata com o proprietário, dado que o titulo é juridicamente perfeito e capaz de iludir qualquer indivíduo em semelhante situação. Desse modo, o elemento pretensamente racional, lógico, dá lugar àquilo que se apresenta como irracional, como é o caso da aparência, pela incidência de valores mais importantes no sistema jurídico, e da segurança das próprias relações jurídicas1. Assim, para a conversão em realidade do direito de propriedade, resta a demonstração de titularidade formalizada por meio do registro. Para tanto, a teoria da aparência aliar-se-á à presunção de veracidade dos registros públicos. Há duas correntes distintas e opostas quanto à presunção de veracidade do registro. Os defensores da presunção relativa se apoiam no fato de que determinados vícios do título podem gerar a invalidade do registro e, portanto, o seu cancelamento. Já quem defende a presunção absoluta, tem por base a complexidade da atividade, somada à publicidade passiva, de modo a privilegiar o adquirente cauteloso e a garantir que o registro possua maior eficiência, bem como a atividade registral em seu todo. A teoria da presunção absoluta de veracidade dos registros públicos é adotada pelo direito alemão, por exemplo, tendo o Brasil se afastado desta última teoria, na medida em que a grande dimensão territorial exige flexibilidade do modelo, o que em nada compromete a segurança. O ordenamento jurídico brasileiro, portanto, não prevê a presunção absoluta, como regra, podendo a veracidade do registro oscilar, quando houver nulidade ou anulabilidade do título que deu origem ao registro, ou mesmo defeito de inscrição ou fraude na execução - hipóteses previstas no artigo 216 da lei 6.015/73. Nesse sentido, dentro do contexto do importante papel dos registros públicos na fundamentação econômica dos direitos de propriedade, o registrador espanhol Fernando Méndez González destaca que "independente do sistema registral escolhido por um dado país, ele deve garantir os direitos do adquirente e dar segurança jurídica para que as transações ocorram com previsibilidade e certeza". Desse modo, afirma que um bom sistema de registro de direitos possui mecanismos que assimilam informações relevantes, como garantias reais que assegurem a titularidade do bem2. Nesse contexto, o grande objetivo do usucapião tabular é fazer com que a titularidade registral coincida com a verdade social, em consonância, ainda, com o artigo 1.247 do CC. Assim, prestigia, sobremaneira, o princípio da boa-fé e a lídima circulação de riquezas. A aparência deve coincidir com a realidade do registro, exatamente nas hipóteses em que a dignidade da pessoa humana resguarda-se no amplo limite da inserção social. Por esse motivo, o cancelamento do registro, requisito previsto para aplicação do instituto do usucapião tabular, deve ser sempre motivo de questionamento, a fim de que seja possível aferir com precisão o momento em que houve o erro e, tembém, quem deve ser responsabilizado. O questionamento adequado a respeito do cancelamento do registro permitirá que apenas o indivíduo que agiu de má-fé cubra os prejuízos sofridos pelos titulares de boa-fé. Em julgamento de recurso especial3, o STJ reconheceu a aplicação do usucapião tabular também para o caso no qual a matrícula não havia sido cancelada, embora estivesse bloqueada há mais de doze anos. Foi proferido o entendimento no sentido de que, mesmo a lei prevendo como pré-requisito para a aplicação do instituto o cancelamento do registro do imóvel, deve-se considerar o longo prazo durante o qual a matrícula esteve bloqueada, desse modo a situação pode ser equiparada ao cancelamento. O entendimento da Terceira Turma foi contrário à determinação proferida pelo magistrado de primeira instância, que havia indeferido a petição inicial dizendo ser indispensável o requisito de cancelamento do registro. No STJ o recurso foi interposto pelos compradores do imóvel que, tendo realizado o registro em 1996, viram este ser bloqueado posteriormente por decisão judicial. Interessante perceber que o STJ reconheceu o interesse de agir dos compradores/proprietários de usucapião tabular, priorizando assim o interesse e o direito do comprador, ao invés de seguir a letra fria da lei. A prioridade é, portanto, garantir um equilíbrio entre a estabilidade necessária para aplicação do instituto do usucapião, e a preservação do direito do adquirente de boa-fé que, por motivos alheios teve seu registro cancelado ou, como vimos, bloqueado por tempo indeterminado. Desse modo, o usucapião tabular esta apto a proporcionar grandes benesses à questão fundiária brasileira. Dado que, como afirmou Sérgio Jacomino, "a balburdia fundiária, tantas vezes denunciada é um elemento perturbador da economia e contribui para fragilizar as propriedades e as garantias de crédito já que os direitos podem se esfarelar de uma hora para a outra, em decorrência da anulação dos registros". Neste sentido, o usucapião tabular é um instituto de extrema valia para o direito e para economia brasileira, além de via adequada e célere para proteger o cidadão adquirente de boa-fé. O ordenamento lhe confere a segurança necessária dentro dos limites da teoria da aparência, aliada à presunção de veracidade dos registros públicos. E, a prática demonstra que a avaliação do preciso momento do cancelamento do registro garantirá a responsabilidade dos prejuízos ao empregador da má-fé. Tudo em um contexto de amplo fundamento social, primando pela estabilidade e segurança das relações fundiárias brasileiras, conforme previsto pela lei maior (art. 184, CF). Um bom sistema de registros públicos, que promova a segurança jurídica e a certeza, é de valia inestimável ao desenvolvimento econômico e social. ____________ 1 - KÜMPEL, V. F. Teoria da aparência no Código Civil de 2002. São Paulo: Método. p. 43. 2 - https://www.cnj.jus.br/noticias/noticias/cnj/16217:para-especialistas-registros-publicos-confiaveis-tem-impacto-na-economia. Acessado em 05.12.2013 3 - REsp nº 1133451. Julgada pela Terceira Turma. Ministra Relatora: Nancy Andrighi. Data do julgamento: 27.03.2012.
terça-feira, 10 de dezembro de 2013

A PEC da imoralidade

Sem sombra de dúvida se questionado, qualquer aplicador do Direito, quais os princípios reinantes num Estado Democrático de Direito, um dos vetores mais mencionado seria o da moralidade. A sociedade pós-moderna clama pela ética que tem sido falada e anunciada a exaustão, mas muito pouco vivida, gerando grandes paradoxos sociais e jurídicos. Hoje é sonho para muitos tornar-se "dono de cartório" e poder gerenciar alguma serventia lucrativa: notarial ou registral. A mencionada atividade, em algumas pouquíssimas serventias, se tornou altamente rentável e a disputa nos concursos cresce acirradamente, porque o candidato coloca como meta, muitas vezes, uma ou duas serventias entre centenas disponibilizadas no certame. A Constituição Federal de 1988 e o advento da lei 8.935/94 moralizaram, sobremaneira, a forma de recrutamento tornando-o meritocrático, por meio de concursos públicos de provas e títulos. É bom lembrar, que já houve defesa acirrada, por parte de alguns setores, para que o concurso de remoção fosse apenas avaliado por títulos, o que, felizmente, foi rechaçado pelos tribunais locais e pelo CNJ. Também deve ser destacado que alguns Estados vêm retardando a realização de concurso, desde 1988 até hoje. Parece incrível que um Estado não tenha realizado nenhum concurso nestes últimos 25 anos, lembrando que aqui no estado de São Paulo estamos indo para o nono concurso. Essa paralisia dos Estados obrigou, o ministro do STJ, Francisco Falcão a determinar a abertura de concurso, sob pena de responsabilidade administrativa. Nesta história toda, surgiu a PEC 471 no sentido de restabelecer uma situação inadequada que vigorou por muitos anos, mas se adotada seria uma verdadeira irrealidade jurídica, que é a hereditariedade cartorial. Faremos uma pequena incursão histórica. A atividade notarial e registral brasileira sofreu grande influência das ordenações filipinas, e foi instituída em consonância com o regime político e geográfico das capitanias herediárias. O "escrivão" (hoje titular notarial e registral) era visto como o terceiro nível na hierarquia burocrática da sociedade, juntamente com os oficiais da marinha e os fiscais.E, embora específica e de alto escalão,a atividade não tinha qualquer regulamentação própria, existindo, de fato, um descaso por parte das autoridades1. A transmissão hereditária das serventias ocorreu de forma livre até 1827. Naquela oportunidade foi editada uma lei que visava impedir a transmissão cartorial pai e filho, mas o sistema se adaptou e continuou a ser permitida, de forma não escorreita, a referida transmissão, como se fosse uma sucessão de posto ou de trono, porém com múnus absolutamente público. Logo, desde o passado, o manifesto descaso para com essas instituições, gerou prejuízos para a formação de um serviço eficiente,o que legitimou a qualificação do notariado brasileiro como de "evolução frustrada" ou de "atrasado" pela doutrina estrangeira. Foi somente em 1988 que a Constituição, em seu artigo 236, estabeleceu diretrizes para o ingresso na mencionada atividade, que deveria, a partir de então, se dar por meio de concurso de provas e títulos. Em 1994 a lei 8.935, regulamentou o ingresso na carreira, esmiuçada pela resolução 81 do Conselho Nacional de Justiça, de 9 de junho de 2009, que também teve por finalidade a unificação dos concursos públicos em todo o país, lembrando que é atribuição dos tribunais estaduais locais organizar e estabelecer o concurso. Não realidade, conforme dito acima, a inércia mencionada ainda se prolonga. Hoje, muitos Estados sequer regulamentaram qualquer possibilidade de concurso público de ingresso. E, conforme lista divulgada pelo Conselho Nacional de Justiça, existem no país mais de 4.700 serventias extrajudiciais vagas, isto é, irregulares, que deveriam ser objeto de concurso. Ademais, chega a ser grave a situação de muitos cartórios extrajudiciais. Sem delegatários, são dirigidos por pessoas não habilitadas e legitimadas, muitas vezes, sem a qualificação devida, o que compromete a eficiência da consecução dos serviços. Aqui é bom lembrar, que os princípios norteadores da atividade são: a publicidade, a autenticidade, a segurança e a eficácia dos atos jurídicos. Os oficiais exercem relevante função jurídica social, são responsáveis pela qualificação registral e notarial, pela instrumentação da segurança jurídica e pela prevenção de litígios. Os delegatários possuem, para tanto, um preparo específico até porque as novas leis têm conferido novas e muitas atribuições para a realização do seu mister. Nesse sentido a PEC 471, se aprovada implicaria na violação de inúmeros preceitos constitucionais. Afora a legitimidade albergada pelo concurso público há ainda a presunção de eficiência e, além de tudo, manter-se-iam interinos que foram alçados a essa condição por parentalidade ou por outros interesses locais, muito distantes do perfil democrático exigido pela sociedade contemporânea. Segundo a Constituição Federal de 1988, temos no art. 236, que os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Públicoe, no § 3ºque o ingresso na atividade notarial e de registro depende de concurso público de provas e títulos, não se permitindo que qualquer serventia fique vaga, sem abertura de concurso de provimento ou de remoção, por mais de seis meses. Aliada ao artigo 14 da lei 8.935/94, estão os requisitos para a delegação e o exercício da atividade notarial e de registro: (i) habilitação em concurso público de provas e títulos; (ii) nacionalidade brasileira; (iii) capacidade civil; (iv) quitação com as obrigações eleitorais e militares; (v) diploma de bacharel em direito; (vi) verificação de conduta condigna para o exercício da profissão. Cabe ressaltar, que além do concurso público de ingresso por provimento é possível, ainda, o ingresso por remoção e ambas as formas de ingresso ocorre por provas e títulos de maneira a garantir, cada vez mais, um melhor aperfeiçoamento por parte dos delegatários em geral. Assim sendo, a PEC 471 altera a Constituição Federal, efetivando atuais responsáveis ou substitutos de serventias que não passaram pelo concurso público e, portanto, não estão legitimados democraticamente a exercer o múnus. Entre outros consectários, retiraria para o concursado sua legitimidade, porque passariam todos pela pecha da hereditariedade ou criaria o titular concursado e o titular não concursado, que passaria a ser uma subcategoria odiosa. A Corregedoria Nacional entre os argumentos mencionados na nota técnica 80/20092, a rechaçar a PEC 471 salienta que o interino de designação na serventia poderia pleitear o benefício da titularidade, que de longe não é razoável. Há uma inconstitucionalidade, inclusive por ferir o princípio da inconstitucionalidade sistêmica. Nas palavras de Ricardo Dip3, a autoridade social4 para a invenção das regras e comportamentos é chamada a exercitar a inventio das leis e o governo da sociedade para que ela cresça em ordem a cumprir exatamente seus fins. Os fins devem ser regidos pelo desenvolvimento social, correspondendo à ordem ideal, isto é, uma sociedade crescente em meio a um progresso real, que se aperfeiçoa. Este, porém, não é o fim observado na PEC 471. Cabe, ao legislador, por meio das normas, fomentar o crescimento social. O projeto de emenda em questão é claramente contrário a toda a conquista democrática e crescimento conquistado em 88, atuando à margem da legalidade e, utilizando o direito como meio de legitimar interesses escusos. Todo o esforço dos tribunais estaduais em realizar concurso, regularizar e difundir a atividade notarial e a de registro e, ainda, melhorar o atendimento à população sofreria um tremendo retrocesso com a aprovação da PEC 471. Poder-se-ia perguntar se a aprovação não seria positiva apenas para os cartórios deficitários, pela absoluta falta de interesse nos mesmos por parte dos candidatos aprovados. Ainda, nesta hipótese, o ideal seria que o concurso fosse aberto para um grupo específico, interessado nestas serventias e aprovasse, em uma segunda etapa, 100 candidatos para cada serventia deficitária a fim de que os interinos, democraticamente, alcançassem a aprovação no concurso público e assim a necessária legitimação social, além da grande satisfação pessoal em ter sido aprovado em um concurso público, de forma transparente e democrática. A atividade notarial possui grande valor, na realidade fática do sistema jurídico positivo brasileiro, como um todo. Honrar seu valor é o mínimo que os parlamentares podem determinar a fim de não prejudicar seu desempenho, bem como a sua credibilidade e segurança junto ao sistema. A atividade notarial e registral deve se dirigir, efetivamente, à consecução dos valores perseguidos pela comunidade, o que não importa em uma conveniência a favor de antigos segmentos, detentores do controle da atividade, ávidos de manter admiráveis lucros. Manter a vigência da PEC 471 seria, portanto, atuar em uma ordem puramente exortativa, se convencendo de que a partir do erro, presente na irregularidade de 4.700 registros extrajudiciais irregulares, pudesse se transmutar em verdade unicamente por meio de uma legitimação constitucional deste erro, como se fosse possível, por assim dizer: "evoluir". _________1Luís Paulo Aliende Ribeiro, Regulação da Função Pública, p. 29 2CNJ, acessado em 9/12/2013 3Ricardo Dip. A Natureza e os Limites das Normas Judiciárias do Serviço Extrajudicial. São Paulo: QuartierLatin. 2013. 4Ricardo Dip. Auctor - promotor - deriva de augere (desenvolver), ensinou S. ISIDORO de Sevilha nas Etimologias, e auctoritasprovém do latim augeo(acrescentar, crescer, fazer crescer).
terça-feira, 3 de dezembro de 2013

O Usucapião tabular - parte I

Pretendemos iniciar hoje uma série de discussões, bem com uma contextualização, a respeito do conhecido instituto do usucapião, tendo em vista as alterações que lhe disseram respeito ao longo dos anos. Nesse sentido, nosso objetivo final é explicar o advento da lei 12.424 de 16 de junho de 2011, que disciplinou o instituto do usucapião tabular familiar no ordenamento jurídico brasileiro. O usucapião, assim como outros institutos, se adaptou à mudança do tempo e passou a proteger muito mais do que a tutela da posse. Nos últimos tempos, vem tutelando a regularização formal dos imóveis dentro da tábula registral, de forma a ganhar novos contornos, o que, inclusive, justifica a redução considerável do prazo para o seu aperfeiçoamento. Logo, iniciaremos, hoje, com uma breve contextualização do usucapião tabular, e, posteriormente, em uma segunda coluna, trabalharemos o enfoque do ordenamento a partir da disciplina da segurança jurídica. Por fim, no nosso terceiro e último encontro da série, chegaremos ao objetivo final, que é discutir o usucapião tabular familiar, dada a importância que este adquire no ordenamento jurídico brasileiro no contexto da reestruturação fundiária. O usucapião, em sua acepção original, refere-se ao modo originário de aquisição da propriedade, bem como de outros direitos reais, caracterizado pelo exercício contínuo e inconteste da posse por determinado tempo. Seu fundamento é a consolidação da propriedade, de modo a conferir juridicidade a uma situação de fato, isto é, a posse unida ao tempo1. É sabido que originalmente, o usucapião remonta ao direto romano. O instituto já gozava de grande relevância desde a Lei das XII Tábuas, embora, tenha atingido seu ápice no direito de Justiniano, com a fusão em um único instituto da usucapio e da praescriptio - meio de defesa processual concedido ao possuidor contra quem lhe exigisse a coisa por meio de ação reivindicatória2. Em âmbito Nacional, seu mais antigo precedente está no art.5º da lei 601, de 1850, no qual os posseiros poderiam adquirir terras devolutas. A partir da constituição de 1934, há referências expressas ao instituto em todas as demais constituições, não restando à Constituição Federal de 1988 grandes novidades. Atualmente, a lei 10.406/2002, que institui o atual Código Civil trouxe algumas inovações em relação ao antigo código de Beviláqua. Este conferia maior proteção à propriedade, por isso designava prazos extensos à faculdade de usucapir. O atual código reduziu tais prazos em benefício da posse, tendo em vista a função social da propriedade. Dentro das inovações, também houve a introdução de novas modalidades do instituto do usucapião. Assim, quanto ao usucapião de bens imóveis, o Código previu sete hipóteses. São elas: o extraordinário, o ordinário, o constitucional urbano, o constitucional rural, o especial coletivo, além do extraordinário com prazo reduzido, e, por fim, o usucapião ordinário com prazo reduzido, também denominado tabular ou de livro, objeto de estudo deste artigo. Quanto ao usucapião ordinário, este se destina a sanar alguns dos defeitos graves do título de transmissão da propriedade imóvel. É previsto pelo art. 1242 do Código Civil de 2002 e possui como base o princípio da confiança, somado à boa-fé e à segurança jurídica. Para caracterizar tão grande vantagem, o possuidor, no entanto, deve preencher o requisito do decurso de tempo de 10 anos entre os presentes ou 20 anos entre ausentes, de modo que a lei exige ainda a boa-fé e o justo título. Em matéria de usucapião, nas palavras de Alípio Silveira, temos o justo título como o fato ou ato-jurídico hábil em tese para a transmissão da propriedade, mas que, eventualmente, devido a defeitos graves, torna-se inoperante. Desse modo, caso preencham suas respectivas formalidades legais indispensáveis, a compra-venda e a doação, por exemplo, constituem-se justos títulos para o usucapião quando a transmissão não se opera em função de outros vícios ou defeitos, dentre a transmissão a "non domino", por exemplo3. Portanto, embora ilegítimas, servem de fundamento à aquisição de um direito real. Já a boa-fé se insere como elemento saneador do justo título, a fim de não prejudicar o possuidor, estando, dessa forma, intimamente ligada a este. Nesse contexto, como espécie do gênero do usucapião ordinário, o Código Civil inseriu no parágrafo do art. 1242 a figura do usucapião ordinário com prazo reduzido, também conhecido como usucapião tabular, conforme o direito alemão. Nessa hipótese, o código reduziu o prazo de consolidação da propriedade para cinco anos. O nome usucapião tabular ou de livro lembra o instituto posto no direito alemão, que regulamenta tal modalidade no parágrafo 900 do Código Civil Alemão (BGB): "Quem, como proprietário de um prédio, estiver inscrito no Livro de Imóveis, sem que tenha ele obtido a propriedade, adquirirá a propriedade quando a inscrição durar trinta anos e, durante esse tempo, tiver tido ele a posse do prédio a título de propriedade". Nesse sentido, o usucapião se dá em relação ao imóvel já previamente registrado ou tabulado no livro registral como propriedade em nome de determinado indivíduo, que, no entanto, por um vício do título, por exemplo, possui somente a posse do imóvel. O direito alemão não exige a boa-fé do sujeito a usucapir, além de manter prazo consideravelmente extenso para a caracterização do instituto. Embora desprovido da extensão que lhe é conferida pelo direito Alemão, no Brasil, o usucapião ordinário com prazo reduzido, ou tabular, se refere diretamente aos casos em que o imóvel foi adquirido de maneira onerosa, porém com base em um registro posteriormente cancelado. Observe: "Art. 1242. Parágrafo único. Será de cinco anos o prazo previsto neste artigo se o imóvel houver sido adquirido, onerosamente, com base no registro constante do respectivo cartório, cancelada posteriormente, desde que os possuidores nele tiverem estabelecido a sua moradia, ou realizado investimentos de interesse social e econômico". Cabe ressaltar, que apenas caracterizam o referido parágrafo, os possuidores que estabeleceram sua moradia no imóvel ou os que realizaram investimentos consideráveis, com interesse social e econômico. Um possível exemplo do tipo de situação prevista no artigo 1.242 do Código Civil consiste naquela em que alguém adquire um imóvel daquele que não é o verdadeiro proprietário, tendo, porém efetivado o registro da propriedade. Neste caso, uma vez verificado os requisitos da boa-fé, justo título, posse continua e inconteste, aplica-se a redução do prazo para a caracterização do usucapião tabular. Desse modo, houve uma preocupação do legislador com a salvaguarda do direito daquele que, de boa fé, acreditava estar adquirindo a propriedade de determinado imóvel, mas, que, por algum erro ou vício anterior, teve como resultado o cancelamento do registro feito na matrícula do imóvel. Assim, mesmo se tratando de um título registrado e posteriormente cancelado, irá ser garantida a propriedade do comprador de boa-fé, desde que, claro, cumprido os requisitos legais apontados. A abordagem brasileira do instituto do usucapião tabular torna evidente o enorme valor atribuído, pelo legislador, ao princípio da boa-fé, além da ampliação da aplicação da presunção de veracidade dos registros públicos, valorizando a segurança e estabilidade das relações jurídicas. Ademais, trata-se de inovação a contemplar a função social da propriedade e da posse, dentro da teoria da utilidade social e do ato de soberania, sem deixar de delimitar o poder do proprietário, na perspectiva do poder de império do estado4. Dentro da teoria da função social da propriedade, prima-se pela eliminação da incerteza nas relações jurídicas fundamentais, o domínio deve ser certo e o usucapião ocorre para aniquilar a incerteza. A propriedade deve possuir destinação útil à sociedade, de modo que, para alguns, esta chegaria a compreender uma espécie de pena, dada a negligência do dono que abandona a coisa. Tais características motivaram alguns autores a denominá-lo usucapião ordinário social. Neste contexto, o usucapião tabular enfoca uma mudança de paradigma do instituto do usucapião. Este passa a envolver também a questão da regularização fundiária e não mais somente a proteção do exercício da posse. Tal utilidade se amplia consideravelmente na realidade brasileira, dado seu contexto histórico-social de ocupação territorial maciça por meio da posse. Como leciona Alfonsin, temos por regularização fundiária o processo conduzido em parceria pelo poder Público e pela população beneficiária. Envolve as dimensões jurídicas, física e social de uma intervenção que prioritariamente objetiva legalizar a permanência de moradores de áreas urbanas ocupadas irregularmente para fins de moradia e acessoriamente promove melhorias no ambiente urbano e na qualidade de vida do assentamento, além de incentivar o plano exercício da cidadania pela comunidade, sujeito do projeto5. Nessa perspectiva surge o instituto do usucapião tabular, como um meio eficaz a promover a reestruturação fundiária brasileira, por meio da regularização da propriedade. A legislação, há muitos anos vem se preocupando com a regularização fundiária, sendo um dos seus vértices tornar o registro de imóveis mais flexível e mais aberto, agasalhando o direito constitucional de moradia (Art. 6º, CF). Não foi à toa que a Lei 10.931, de 10 de agosto de 2004, entre seus muitos avanços estabeleceu o parágrafo 5º ao artigo 214 da lei dos Registros Públicos que passou a dispor "A nulidade não será decretada se atingir terceiro de boa-fé que já tiver preenchido as condições de usucapião do imóvel". Tal dispositivo prestigiou o usucapião tabular do artigo 1.242, parágrafo único, na hipótese de cancelamento posterior de propriedade, cujo título era uma escritura ou contrato de compra e venda, devidamente registrado no Registro de Imóveis, mas cancelado de forma superveniente. Por todo o exposto, conclui-se que o usucapião tabular é um instituto de extrema valia para o direito. É via razoavelmente adequada e célere para proteger o adquirente de boa-fé, tendo, ainda como fundamento essencial a regularização fundiária, dado o processo de ocupação fundiária brasileira, baseado principalmente na posse. Há que se reconhecer que a ideia do legislador, como decorrência do uso social da propriedade e até mesmo da proteção da moradia, um direito fundamental da pessoal humana, é extremamente respeitável. Nas próximas registralhas, abordaremos outras peculiaridades e benefícios do instituto, bem como seus aspectos práticos e efeitos dele decorrentes no ordenamento. __________ 1Diniz, M. H. Curso de Direito Civil Brasileiro. 19 ed. São Paulo: Saraiva. V2. 2Marky, T. Curso Elementar de Direito Romano. 8 ed. São Paulo: Saraiva. p.84. 3Jacomino, R. D. S. Doutrinas Essenciais Direito Registral. Edições Especiais Revista dos Tribunais. Vol. III, Registro Imobiliário: Aquisição da Propriedade, p. 1078. 4NETO, Júlio S. Usucapião Tabular. Instituto de Registro Imobiliário do Brasil. Acessado em 28/11/2013. 5Alfonsin, B. Direito à moradia: instrumentos e experiências de regularização fundiária nas cidades brasileiras. Rio de Janeiro: Observatório de Políticas Públicas, FASE, IPPUR, 1997.
O Poder Judiciário, na consecução de sua atribuição típica de distribuir Justiça, tem nos Ofícios Judiciais e Extrajudiciais o apoio necessário para materializar os atos essenciais à concretização desse fim. Os dois braços, Ofícios Judiciais e Ofícios Extrajudiciais, muito embora realizem atribuições distintas, sofrem, por parte do Poder Judiciário, regulação e controle, para perfeita harmonização dos atos geralmente tidos por burocráticos na missão de "dar a cada um o que é seu". Dentre as serventias extrajudiciais, é nosso objetivo hoje focar no Registro de Imóveis, que tem suas atribuições definidas tanto na lei 8935/94, quanto na lei 6.015/73, entre outras tantas. Pela tremenda especificidade dos atos que ali aportam, compete ao Oficial do Registro de Imóveis qualificar os títulos apresentados para que a técnica seja a garantia dos direitos do cidadão. O tema ora proposto, qualificação registral, é de extrema importância para todos os operadores do Direito, pois constitui a aferição necessária por parte do Oficial das qualidades essenciais do título apresentado, para que tenha ingresso no sistema registral. Tal exercício de análise não é novidade no Brasil. O desembargador Ricardo Dip esclarece que "O Regulamento Hipotecário de 1865, que instituiu entre nós o procedimento da dúvida registrária, igualmente previa a tarefa qualificadora do Oficial do Registro, que, "duvidando da legalidade do título" (art. 69), quer por lhe parecer nulo, quer por lhe parecer falso (art. 74), poderia recusar-lhe a inscrição (no mesmo sentido, confiram-se os arts. 66 e 71 do Regulamento Hipotecário de 1890)"1. Verifica-se, deste modo, que, embora tenha um caráter mais abrangente na atualidade, a qualificação registral realizada no século XIX já possuía seus traços essenciais. Ora, o exercício de valoração do título que ingressa na serventia, realizado pelo Registrador, visa, justamente, a verificar se este se encontra formalmente de acordo com a legislação e normas vigentes. Conforme esclarece Flauzilino Araújo dos Santos, 1º Oficial de Registro de Imóveis de São Paulo/SP, "(...) é pacífica a necessidade de um ato inscritivo (registro ou averbação) na constituição, transmissão, modificação e extinção de direitos reais imobiliários e nos fatos modificativos das situações a eles correspondentes, que tenham como pressuposto título ou documento extrajudicial ou judicial, cumprindo, assim, os objetivos da publicidade registral"2. Para que haja o ingresso do título, portanto, faz-se necessária uma prévia análise deste, para que se possa aferir se está apto à inserção no Registro Imobiliário. Este exercício de prudência, como se pode perceber, é de caráter eminentemente jurídico, tanto referente a aspectos formais do título, quanto, em alguns casos, a questões de direito material, tratados no conteúdo do título. Para simplificar, a qualificação é essencial à harmonização, à observância dos princípios registrais, à observância de um sistema de legalidade e, porque não falar, moralidade, tudo tendo como objetivo maior a função social da propriedade (art. 5º XXIII da Constituição Federal) e, por decorrência, a dignidade da pessoa humana (art.1º, III, também da Constiuição). Percebe-se, assim, a importância da atividade qualificadora realizada pelos titulares das serventias de Registro de Imóveis, haja vista que tal juízo irá determinar se um título (seja judicial ou extrajudicial) será, ou não, assentado (registro ou averbação). Ou seja, determinar-se-á se a pretensão de constituir, modificar ou extinguir determinados direitos reais ou pessoais (tanto em seu aspecto subjetivo -relacionados à titularidade do imóvel-, quanto em seu aspecto objetivo) irá, de fato, operar. Tal qualificação registral é muito bem conceituada pelo Desembargador Ricardo Dip, que leciona: "Diz-se qualificação registral (imobiliária) o juízo prudencial, positivo ou negativo, da potência de um título em ordem a sua inscrição predial, importando no império de seu registro ou de sua irregistração"3. Feita a abordagem geral quanto ao exercício de qualificação realizado pelo Oficial, podemos tratar, especificamente, da qualificação dos títulos judiciais. O inciso IV do art. 221 da lei 6.015 de 1973 (lei dos Registros Públicos) prevê a possibilidade de admissão de títulos judiciais nos Ofícios de Registro: Art. 221 - Somente são admitidos registro: IV - cartas de sentença, formais de partilha, certidões e mandados extraídos de autos de processo. Como se percebe, portanto, o título executivo judicial é fruto de uma decisão jurisdicional estatal, advinda de um processo (tanto de jurisdição contenciosa, quanto voluntária). O que diferencia o título judicial dos títulos extrajudicial (administrativo, do Tabelião etc.) não é simplesmente por advir de um Magistrado; o que determina qualquer ausência de controle de conteúdo por parte do Registrador é o fato de ter passado pelo devido processo legal (contraditório e ampla defesa) e ter, na maioria dos casos, gerado a garantia da coisa julgada (art. 5º CF). Neste caso, o título judicial fica imune de qualquer qualificação quanto a seu conteúdo, na medida em que o Registrador não tem poder para revisar decisão judicial e muito menos para mitigar a coisa julgada material e/ ou formal (imutabilidade dos efeitos da sentença). Justamente pelo fato de o Oficial de Registro de Imóveis não analisar o mérito da decisão que embasa o título judicial, muitos erroneamente concluem que não deve haver qualquer tipo de qualificação quando se trata destes títulos. Em verdade, o juízo prudencial também deve ser realizado diante dos títulos judiciais. Porém, neste caso, deve-se limitar à análise de elementos extrínsecos e formais do título. O atual Corregedor Geral da Justiça do Estado de São Paulo, Desembargador José Renato Nalini, em decisão de Apelação Cível4, esclareceu que: É certo que os títulos judiciais submetem-se à qualificação registrária, conforme pacífico entendimento do E. Conselho Superior da Magistratura: "Apesar de se tratar de título judicial, está ele sujeito à qualificação registrária. O fato de tratar-se o título de mandado judicial não o torna imune à qualificação registrária, sob o estrito ângulo da regularidade formal. O exame da legalidade não promove incursão sobre o mérito da decisão judicial, mas à apreciação das formalidades extrínsecas da ordem e à conexão de seus dados com o registro e a sua formalização instrumental" (Ap. Cível nº 31881-0/1). Percebemos, portanto, que deve, sim, haver qualificação registral quanto aos títulos judiciais, porém esta não se dará de modo irrestrito e ilimitado. A atividade do Registrador, logo, não deve tratar do mérito da decisão, mesmo que acredite haver desacerto nesta, afinal o ordenamento jurídico já prevê uma diversa gama de recursos processuais, não cabendo à serventia extrajudicial rever decisão judicial transitada em julgado. Aqui é bom mencionar, ainda, que, caso o Órgão Julgador afronte determinado princípio registral e determine, sob o crivo do contraditório, a sua realização terá o registrador que cumprir a ordem, ainda que, sob ponto de vista do registro, o ato em si não deveria gerar cumprimento. Assim, a qualificação dos títulos judiciais por parte do Oficial de Registro de Imóveis irá se restringir, fundamentalmente, a algumas questões de cunho formal. Dentre elas está à análise da competência do juiz ou Órgão Judiciário que prolatou a decisão presente no título. Deve-se analisar, tão somente, se há incompetência absoluta, pois a incompetência relativa só interessa às partes, sendo ausente o interesse público. O Registrador deve ainda analisar outras questões de ordem pública e auxiliar a Justiça, devolvendo muitas vezes o título para complementações necessárias. Também será analisada pelo Registrador a presença dos elementos mínimos para o registro. Assim, a decisão presente no título judicial deve respeitar os princípios basilares do direito registral imobiliário. Deverão ser atendidos, por exemplo, os princípios da especialidade objetiva e da continuidade. O denominado princípio da continuidade pode ser depreendido da leitura dos artigos 195 e 237 da lei 6.015 de 1973, que determinam: Art. 195 - Se o imóvel não estiver matriculado ou registrado em nome do outorgante, o oficial exigirá a prévia matrícula e o registro do título anterior, qualquer que seja a sua natureza, para manter a continuidade do registro. Art. 237 - Ainda que o imóvel esteja matriculado, não se fará registro que dependa da apresentação de título anterior, a fim de que se preserve a continuidade do registro. Já o princípio da especialidade objetiva consta da redação do §2º art. 225 da mesma lei: Art. 225 - Os tabeliães, escrivães e juízes farão com que, nas escrituras e nos autos judiciais, as partes indiquem, com precisão, os característicos, as confrontações e as localizações dos imóveis, mencionando os nomes dos confrontantes e, ainda, quando se tratar só de terreno, se esse fica do lado par ou do lado ímpar do logradouro, em que quadra e a que distância métrica da edificação ou da esquina mais próxima, exigindo dos interessados certidão do registro imobiliário. § 2º Consideram-se irregulares, para efeito de matrícula, os títulos nos quais a caracterização do imóvel não coincida com a que consta do registro anterior. É necessário ressaltar que a qualificação dos títulos judiciais não é tema nem um pouco simples, já que, na prática registral, muitas vezes não é clara a distinção entre uma análise meramente formal (extrínseca) e uma análise que invada o mérito da decisão judicial. Justamente por isso, necessário acompanhar as decisões do Conselho Superior da Magistratura e da Corregedoria Geral da Justiça, pois, a partir de tal jurisprudência, será possível constatar, em casos concretos, os limites deste juízo prudencial realizado pelo Oficial de Registro de Imóveis. Ao contrário do que se possa imaginar, a qualificação negativa de um título judicial não tem por objetivo afrontar o magistrado. O grande objetivo é auxiliar o Poder Judiciário para que o ato seja praticado da forma mais perfeita possível. É interesse do Registrador a qualificação positiva, porém quando o título é qualificado de forma negativa o incidente ocorre exatamente na tutela do cidadão para a preservação do seu basilar direito de propriedade, garantia fundamental estatuída no art. 5º, caput, da Constituição Federal. __________ 1DIP, Ricardo Henry Marques (1991), "Sobre a Qualificação no Registro de Imóveis". pg. 08. 2DOS SANTOS, Flauzilino Araújo (2004), "Sobre a Qualificação de Títulos Judiciais no Brasil", pg. 03. 3DIP, Ricardo Henry Marques (1991), "Sobre a Qualificação no Registro de Imóveis", pg. 12. 4Apelação Cível 0017376-73.2012.8.26.0100, Apelante: Rosa Mary Fonseca Ribeiro, Apelado: 8º Oficial de Registro de Imóveis da Capital, Voto 21.114, Rel. Des. José Renato Nalini.
Em continuação ao artigo anterior, em que nos debruçamos sobre as pessoas jurídicas de direito privado existirem a partir do registro (art. 45 do Código Civil) nos Ofícios de Registro Civil das Pessoas Jurídicas (simples) e nas Juntas Comerciais (empresárias), nesta oportunidade discorreremos sobre a unificação de ambas numa única estrutura administrativa. Naquela oportunidade, encerramos o artigo deixando em aberto a questão da unificação, posto ser da essência da sociedade pós-moderna ampliar o acesso a todo aparato burocrático do Estado, para facilitar a vida do cidadão no que toca principalmente a procedimentos operacionais. O objetivo deste artigo é justamente fazer essa análise, dos pontos positivos e negativos que decorrem de uma possível unificação do registro de pessoas jurídicas de direito privado. A finalidade desta análise é lançar algumas ideias, sem fechar a questão, até porque o tema é complexo e envolve uma série de interesses jurídicos e econômicos. Comecemos então pelos benefícios, pelos pontos positivos, que uma unificação das atividades realizadas pela Junta Comercial e pelo Ofício de Registro de Pessoas Jurídicas traria para o cidadão, e para facilitar o acesso ao sistema. O primeiro item, que não pode deixar de ser mencionado, é o benefício da uniformidade. É muito mais fácil regular uma atividade, e mesmo normatizá-la, quando tal regulamentação e tais normas deverão ter sua aplicação observada em apenas um aparato burocrático. A otimização dos procedimentos, ainda que com certas peculiaridades, traria maior facilidade a contadores, a operadores jurídicos e também a todos os controladores do sistema. A existência de duas estruturas burocráticas diferentes e desvinculadas uma da outra, realizando uma atividade de natureza assemelhada gera contradições desnecessárias e de difícil sanação. Citando como exemplo a Junta Comercial do Estado de São Paulo (JUCESP), observa-se um órgão sujeito às especificações da lei complementar estadual 1.187/2012 e da lei Federal 8.934/1994, que dispõe sobre os Serviços de Registro Público de Empresas Mercantis e Atividades Afins. A JUCESP é um órgão subordinado ao Departamento Nacional de Registro do Comércio (DNRC) e, portanto, responde a este na realização de suas atividades1. Já os ofícios de Registro Civil de Pessoas Jurídicas estão regulamentados, primeiramente, pelo artigo 236, da Constituição Federal, e pelas leis 6.015/1973 e 8.935/94, estando subordinados à Corregedoria Geral da Justiça e, indiretamente, ao Conselho Nacional de Justiça. Percebe-se, então, que ambas as instituições responsáveis pelo registro de pessoas jurídicas no estado de São Paulo são regulamentadas por leis diferentes e estão subordinadas a diferentes órgãos administrativos. Essas diferenças dificultam, e até por vezes confundem, aqueles que se utilizam do serviço. A unificação tornaria mais fácil a fiscalização e a uniformidade do serviço prestado, sendo este o primeiro benefício da junção do registro civil de pessoas jurídicas. Outro benefício seria a uniformização da qualificação das pessoas que trabalham com esses registros. Garantir que as pessoas registradoras das sociedades civis também saibam sobre a regulamentação do registro das sociedades comerciais e empresariais, traria mais segurança aos que se servem dos serviços de registro de pessoas jurídicas, no sentido de que estariam sendo atendidos por pessoas que, certamente, entendem o funcionamento de todo o sistema e não apenas de um setor específico. Portanto, a qualificação registral seria assemelhada, e respeitadas as peculiaridades haveria uma uniformidade das exigências de ambas as pessoas jurídicas. As rotinas de trabalho seriam semelhantes e solúveis por meio do procedimento da dúvida registral, passando o Poder Judiciário a dar a última palavra em todos os atos de registro. Ainda, outro ponto positivo estaria na incidência das Normas de Serviço da Corregedoria Geral, tanto para pessoas jurídicas civis quanto empresárias. Portanto, haveria uma única normatização, também com suas especificações; e, por conseguinte, um único sistema de controle, desvinculado da burocracia administrativa do Estado, e sem qualquer injunção política. Neste sentido é bom lembrar que o Código Civil atual (lei 10.406/02) revogou parte do Código Comercial unificando as pessoas jurídicas de Direito privado. Já um ponto negativo, de uma possível unificação das funções de registro das pessoas jurídicas, poderia ser, preliminarmente, a dificuldade prática de transferir todo o acervo, documentação, responsabilidades e atribuições das Juntas Comerciais para os Ofícios de Registro Civil de Pessoas Jurídicas. Considerando que, atualmente, as serventias não têm a obrigação de registrar as pessoas jurídicas de natureza comercial/empresarial, seriam necessários: um treinamento, uma adaptação, e uma normatização específica para todos os prepostos e demais funcionários da serventia, passando a ter familiaridade na observância das rotinas específicas. Tal treinamento seria oneroso, sob o ponto de vista econômico e jurídico para as serventias, e isto demandaria certo tempo. Havendo, então, a necessidade de transferência do acervo da Junta Comercial para o Registro de Pessoas Jurídicas, bem como a relotação de serventuários para outras atividades burocráticas do Estado. Ultrapassada a dificuldade prática, surge outra dificuldade: a falta de especialização. Hoje há a especialização graças à separação na realização dos serviços. Sem sombra de dúvida, a especialidade e a especificidade das rotinas facilitam a consecução dos atos, na medida em que as rotinas são distintas, para qualificar as pessoas empresariais em relação às pessoas jurídicas simples ou civis. A seguinte pergunta deve ser feita quando analisada a possibilidade de unificação do Registro Civil de Pessoas Jurídicas: é possível aproveitar a estrutura que os Ofícios de RCPJ já proporcionam e incorporar, à tais serventias, os serviços realizados nas Juntas Comerciais? Fica claro que, frente à ocorrência de uma possível unificação, barreiras práticas deverão ser transpostas, treinamentos e especializações deverão ser realizados, etc. Contudo parece-nos que uma vez ultrapassadas as dificuldades práticas impostas à unificação do registro de pessoas jurídicas, os benefícios trazidos por ela superariam, e em muito, os prejuízos. A dificuldade de implementação de uma proposta, e a concretização de um trabalho não deve obstaculizar os benefícios e as vantagens que podem decorrer da unificação, uma vez empreendida. A qualificação das pessoas, oficiais e prepostos, abrangendo o registro das pessoas jurídicas de forma geral, só tem a garantir um serviço mais bem prestado e que gera mais facilidade e conveniência para aqueles que se utilizam de tal serviço. A pergunta que sobrepaira é a seguinte: Se em nenhuma outra serventia há desmembramento de atribuição, por que deveria acontecer em relação ao registro de pessoas jurídicas de direito privado? Diante do mencionado quadro, o que é possível concluir com certeza absoluta é que a celeridade, operabilidade, uniformidade, publicidade e eticidade devem estar sempre à frente dos interesses pessoais na consecução de qualquer serviço público, de qualquer natureza. _________ 1Site da JUCESP.
terça-feira, 22 de outubro de 2013

Isonomia para registrar filho

É bom deixar assentado desde um primeiro momento que a lei dos Registros Públicos nada mais fazia do que refletir o pensamento do Código Civil de que a família decorria das justas núpcias e que o homem exercia chefia da sociedade conjugal, com a colaboração da mulher. Nessa linha de raciocínio é que se concebeu tudo que diz respeito ao nascimento, originariamente, sendo que os assentos decorriam das relações matrimoniais, competindo ao homem (marido) o comparecimento perante o Oficial do Registro Civil para lavratura e prática do ato. A mulher, e os demais legitimados, tinham papel subsidiário e um prazo diferenciado por força da tradição histórica e para proteger a própria condição de resguardo da mulher, que recém havia dado a luz ao registrando. O histórico do Registro de nascimentos no Brasil, portanto, nos permite ver que desde muito cedo foi feita uma diferenciação entre o papel do homem de da mulher, na linha da tradição acima mencionada. A bem da verdade, o art. 52 da lei 6.015 de 19731, a lei de Registros Públicos, há muito que não tem a menor efetividade. Ocorre que, à época em que foi concebido o sistema (muito antes da redação do artigo) a mulher era considerada relativamente incapaz, ao passo que o marido era quem ocupava a posição de chefe da sociedade conjugal acima mencionado e, portanto, tomava posição à frente da família, estando incumbido da função, prioritariamente, de registrar os filhos, entre todos os demais encargos. Foi exatamente essa colocação do homem face à organização familiar que deu razão para que a redação do art. 52 priorizasse o pai como responsável pelo registro dos filhos, inclusive com prazo exíguo, que há muito também não faz o menor sentido. A redação de tal artigo sofreu uma renumeração pela lei 6.216/1975, porém sem qualquer consectário prático, não tendo sofrido qualquer atualização por força da Constituição Federal, de 1988, que na verdade já havia estabelecido uma plena igualdade à luz do art. 226, §5º, do texto constitucional. Já por ocasião da incidência do texto constitucional em 88, não restou a menor dúvida da plena igualdade entre homem e mulher na sociedade conjugal. Nunca se pensou em modificar o capítulo em questão da Lei dos Registros Públicos, posto que o dispositivo constitucional supramencionado (art. 226, §5º) sempre foi considerado norma de eficácia plena, derrogando a própria lei dos Registros Públicos em muitos dispositivos, lembrando sempre da auto aplicabilidade dos dispositivos constitucionais. Em arremate, o art. 5º, I, por exemplo, do texto magno, já estabelecera que homens e mulheres são iguais perante a lei, e desde então o registro de nascimento, na prática, já vinha se distanciando dos termos exatos que estavam previstos no art. 52 da lei dos Registros Públicos. A ideia de igualdade entre o homem e a mulher já constava, portanto, na ideia de atuação de muitos profissionais do direito, incluindo-se aqui os registradores civis das pessoas naturais. Aliás, as Normas de Serviço, os provimentos e as resoluções estaduais, desde os idos de 88 vem garantindo a referida igualdade. Desse modo, ainda que a lei 6.015/73 mantivesse sua redação desatualizada, em seu art. 52 já tão mencionado, na prática, a situação adequou-se à realidade social e às necessidades que as pessoas foram demonstrando ao longo do tempo. Acontece que, visando corrigir e aprimorar a redação deste mesmo dispositivo, foi aprovado no Senado Federal o projeto de lei nº 16 de 2013 que visa alterar a prioridade que seria garantida apenas ao pai, de acordo com a redação atual do artigo em vigor, sob a justificativa de que este trataria de forma desigual os genitores criando ainda obstáculos para que a mãe realizasse o registro logo nos primeiros dias. A redação do art. 52, segundo o deputado Rubens Bueno (autor do projeto originário), vinha colocando a mãe em um patamar de desigualdade em relação ao pai e, segundo o referido deputado, a mãe só poderia realizar o assento na falta ou impedimento do pai. Na prática isso nunca aconteceu. Na prática, os registradores civis das pessoas naturais nem lembravam que existia o art. 52 da LRP e realizavam os registros e concediam certidões apenas com a manifestação da mãe que, na prática, é a pessoa que mais procura a serventia ou é a pessoa a quem os oficiais buscam nas maternidades. Nessa linha de raciocínio foi editada a lei 8.560, de 1992, carinhosamente conhecida como lei do Suposto Pai ou do Pai Presente, que regula o procedimento administrativo que questiona a mãe da figura do suposto pai, sendo ela ouvida tanto pelo Oficial Registrador, quanto pelo juiz de Direito, antes de invocar o suposto pai. Na prática registral, três são as possibilidades da lavratura integral do assento para a mulher não casada, já que a mulher casada tem a presunção pater is do artigo 1.597, do Código Civil. Voltando, ou a mãe comparece sozinha com uma escritura pública ou instrumento particular do pai reconhecendo o filho, ou pai e mãe comparecem simultaneamente para lavrar o assento, ou o pai comparece munido da DNV para prática do ato. Em todos estes casos, como já dito, o assento é lavrado integralmente. É muito difícil acreditar, ainda que se mostrem assim convictos os que dão suporte a esse novo projeto de lei, que nem o legislador nem o registrador teriam ultrapassado essa barreira que privilegia o homem no momento do registro de nascimento dos filhos. Pensar assim seria ignorar a realidade, um conjunto de provimentos do CNJ (13, 16, 17, etc.), um conjunto de normas administrativas estaduais e toda a prática registral de mais de década. A prioridade do Conselho Nacional de Justiça, das Justiças Estaduais e dos registradores é garantir que mais de 5 milhões de crianças e adolescentes, em idade escolar, tenham o assento de nascimento completo, o que não tem acontecido, mas que infelizmente o projeto de lei em questão não ajudará nada. Os vários provimentos do CNJ mencionados vêm garantindo ao pai, entre outras coisas, que reconheça seu filho em qualquer Oficio de Registro Civil do território nacional, em qualquer momento e sem incidir qualquer sanção. Em arremate, o novo projeto de lei torna-se completamente dispensável, visto que, nem na teoria e nem na prática irá representar mudança alguma nos assentos de nascimento realizados no Brasil. O medo é que passe a pensar que a mãe, sem qualquer autorização do pai, e sem estar casada com ele, possa registrar a criança, com paternidade determinada, o que não vai acontecer com o novo projeto em hipótese nenhuma. Esse "boato legislativo" não passa de uma ficção que não tem a menor plausibilidade. Infelizmente, o projeto de lei em questão não vem agregar ao cidadão e ao operador do direito, nenhuma mudança significativa, de forma que as crianças e adolescentes mencionados continuarão sob um discriminem prático (art. 227, §6º) reinante no sistema brasileiro. __________1Lei 6.015/1973, art.52: "São obrigados a fazer declaração de nascimento: 1º) o pai; 2º) em falta ou impedimento do pai, a mãe, sendo neste caso o prazo para declaração prorrogado por quarenta e cinco (45) dias; 3º) no impedimento de ambos, o parente mais próximo, sendo maior achando-se presente e; 4º) em falta ou impedimento do parente referido no número anterior os administradores de hospitais ou os médicos e parteiras, que tiverem assistido o parto; 5º) pessoa idônea da casa em que ocorrer, sendo fora da residência da mãe; 6º) finalmente, as pessoas (vetado) encarregadas da guarda do menor. § 1° Quando o oficial tiver motivo para duvidar da declaração, poderá ir à casa do recém-nascido verificar a sua existência, ou exigir a atestação do médico ou parteira que tiver assistido o parto, ou o testemunho de duas pessoas que não forem os pais e tiverem visto o recém-nascido. § 2º Tratando-se de registro fora do prazo legal o oficial, em caso de dúvida, poderá requerer ao Juiz as providências que forem cabíveis para esclarecimento do fato".
terça-feira, 15 de outubro de 2013

O registro das pessoas jurídicas

É de conhecimento geral que, com a adoção da Teoria Afirmativista da Realidade Técnica (art. 45 do Código Civil), as pessoas jurídicas coexistem com as pessoas naturais, conforme também preceitua o artigo 1º do Código Civil, sendo, porém imprescindível, para referida existência, o registro dos atos constitutivos. De acordo com Pontes de Miranda1, as pessoas jurídicas, são criações do Direito. É o sistema jurídico que atribui direitos, deveres, pretensões, obrigações, ações e exceções a entes humanos ou a entidades criadas por esses, bilateral, plurilateral (sociedade, associações), ou unilateralmente (fundações). Para que os atos jurídicos constituintes de pessoas jurídicas possam ser reconhecidos e ter efeitos sobre a sociedade, é necessário que estes sejam registrados, daí então surge a necessidade do registro civil de pessoas jurídicas. As pessoas jurídicas podem ter seus registros realizados no Registro Civil de Pessoas Jurídicas ou na Junta Comercial. A obrigatoriedade do registro em uma dessas entidades não só garante a existência, mas também a regularidade e o ato de registro determina a natureza civil ou empresarial do ente em questão. Desde cedo surge uma diferenciação entre as entidades regidas pelo Código Civil e as regidas pelo Código Comercial, lembrando que, historicamente, existia o Código Comercial de 1850 e só posteriormente o Código Civil de 1916. Na época, a diferenciação entre as sociedades civis e empresariais era mais emblemática e necessitava da sua prévia compreensão para o seu regular registro. Essa diferenciação ganhou uma nova roupagem com as disposições do Código Civil de 2002. Muita dúvida houve no que toca a classificação e diferenciação entre sociedade civil e empresarial, mas de toda a sorte, o Código Civil atual unificou a codificação civil e comercial (empresarial) tanto no que diz respeito às pessoas, quanto no diz respeito aos contratos. Abandonou-se o conceito utilizado pelo sistema francês, que diferenciava as sociedades comerciais das demais apenas por meio de uma análise do objeto social. De acordo com o novo ordenamento civil, a diferença entre as sociedades civil e empresarial não reside no objeto social, pois ambas realizam atividades econômicas, o que as diferencia é, portanto, a estrutura, ou seja, é a funcionalidade, que pode ser entendida até mesmo como o modo de atuação. Como regra, é possível considerar que todas as sociedades que tiverem objeto civil são tidas por "simples" (art. 982, caput, CC), exceto se tiverem "por objeto o exercício de atividade própria de empresário sujeito a registro", restritas, as hipóteses, de forma vinculada, àquelas atividades meramente organizacionais dos meios de produção (art. 966, CC). Quanto às sociedades civis, seu registro deve ser realizado no Registro Civil de Pessoas Jurídicas, que é uma das espécies de Registros Públicos que, assim como as demais espécies, tem como finalidade garantir a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos, conforme previsão legal2. Em seu artigo intitulado Registro Civil de Pessoas Jurídicas, o dr. Paulo Roberto de Carvalho Rêgo versa sobre o assunto e ainda nos fornece uma excelente introdução histórica sobre o tema. Foram as Ordenações Filipinas, de 1603, o documento que primeiro fez referência às sociedades civis e como estas seriam regulamentadas no Brasil. Essas ordenações, no entanto, ainda não atribuíam personalidade jurídica às sociedades civis, mas apenas constituíam um a vínculo contratual entre os sócios. Não existia ainda a separação que hoje se faz entre o patrimônio dos sócios e da empresa. Em 1º de janeiro de 1917, com a entrada em vigor do Código Civil, surgiu a necessidade de adaptar as normas que se referissem ao tema disposto pelo então Novo Código. Foi o decreto-lei 12.343, de 1997, que trouxe consigo Instruções para a Execução Provisória do Registro Público, cujo objetivo era autenticar e validar os atos realizados pelos registradores, enquanto ainda não houvesse Lei específica sobre a matéria. Foi devido ao Código Civil de 1916, portanto, que a personalidade jurídica passou a ficar em evidência. Atualmente, é a lei dos registros públicos, lei 6.015 de 1973, que versa sobre a matéria e sobre o registro das pessoas jurídicas e das sociedades civis. Em seu capítulo II ficou expressa a responsabilidade de o RCPJ registrar as sociedades, fundações e partidos políticos, entre outros. Já no que se refere às sociedades empresariais, no entanto, o registro ficou sujeito aos termos previstos pelos órgãos específicos que cuidam e regulamentam o Direito Comercial no Brasil, como veremos mais adiante. Para que seja realizado o exercício da atividade empresarial, seja por pessoa natural, seja por pessoa jurídica, pressupõe-se a necessidade de registro específico e correspondente, que será justamente a inscrição do empresário no Registro Público de Empresas Mercantis (art. 967, CC), conforme previsão legal também da lei 8.934 de 1994 que reviu toda a matéria de Registros Públicos de Empresas Mercantis. Para regular tais registros e outras funções relacionadas à atividade comercial no Brasil, criou-se o Sistema Nacional de Registro de Empresas Mercantis do Comércio (SINREM). O Órgão central do SINREM é o Departamento Nacional de Registro do Comércio (DNRC) que possui como principais funções a supervisão, orientação e normatização, no plano técnico; e supletivamente, no plano administrativo. Em cada uma das unidades da Federação, ou seja, em cada um dos Estados, existem ainda as Juntas Comerciais, que são atribuídas de funções de execução e administração dos serviços de registro. As juntas comerciais são, portanto, subordinadas tecnicamente ao DNRC, e tem como principal finalidade é efetuar os registros pertinentes ao Registro Público de Empresas Mercantis e Atividades Afins. É na junta comercial, por exemplo, que deve o empresário individual fazer a sua inscrição, bem como a sociedade empresária arquivar seu contrato social, além disso, também é na junta comercial que se registra alterações na pessoa jurídica, como endereço, capital social, objeto social, troca de sócios (quando sociedade empresária). Pode-se também alterar a natureza jurídica da empresa, seja de empresário (antiga firma individual) para sociedade limitada ou vice-versa. Percebe-se, então, que desde sempre houve uma diferenciação entre as pessoas jurídicas de natureza civil e as pessoas jurídicas de natureza comercial. Tal separação é justificada pela separação de matérias que compunham o Código Civil 1916 e o Código Comercial de 1850. Ainda que muito tenha sido mudado com as inovações trazidas pelo Código Civil atual, desde muito em vigor, restam ainda alguns resquícios e alguns hábitos e práticas do século passado, a exemplo da separação do registro de sociedades civis e empresariais. Entende o Conselho Superior da Magistratura paulista que cabe ao RCPJ registrar pessoas jurídicas de direito privado, com exceção da sociedade empresária, que tem assentamento perante o Registro Público de Empresas Mercantis, cujo registro fica a cargo da Junta Comercial, órgão estadual, sendo regido pela lei 8.934/94, regulamentada pelo decreto 1.800/96. Questões remanescentes ainda existem sobre o órgão que deve ficar responsável pelo registro de cooperativas que, de acordo com o Código Civil, são sociedades simples. Assim, como houve mudança do regime jurídico, deveriam estar sendo assentadas perante o RCPJ. Todavia, continuam sendo registradas perante a Junta Comercial, em razão do disposto no artigo 1093 do Código Civil, combinado com o artigo 18 da lei 5.764/71 (lei do cooperativismo). Existe posicionamento da doutrina que nos dois sentidos, da manutenção do registro como é feito agora e das mudanças devido à classificação das cooperativas como sociedades simples. Como vimos até agora, a questão do sistema dicotômico atual está enraizado na história do sistema jurídico pratico. Na próxima oportunidade, procuraremos abordar acertos e desacertos da unificação das pessoas jurídicas de Direito Privado num único sistema registral, para bem da própria sociedade. __________ 1SIQUEIRA, Graciano Pinheiro de. Associações e Fundações no RCPJ. Disponibilizado no Instituto de Registro de Títulos e Documentos e de Pessoas Jurídicas do Brasil. 2Art. 1º da lei 6.015/73, lei dos Registros Públicos.
terça-feira, 1 de outubro de 2013

Publicidade passiva X publicidade ativa

A publicidade é um dos princípios mais caros ao bom funcionamento da atividade notarial e registral. A primeira parte da lei dos Registros Públicos (artigos 1º ao 28) prestigia sobremaneira a publicidade e a conservação dos assentos. O objetivo maior é proteger o terceiro consulente do sistema para que seus direitos sejam verificados pelo maior número de pessoas garantindo a qualidade de terceiro de boa fé para aquele que se certifica dos direitos a fim de se opor ou não ao efetivo titular. Na visão de Hely Lopes Meirelles, por exemplo, a publicidade é a "divulgação oficial do ato para conhecimento público e início de seus efeitos externos". Ela é necessária, portanto, para que seja adquirida validade e/ou eficácia universal de determinado documento, perante as partes diretamente ligadas ao mesmo bem como perante terceiros. Mais do que um princípio da administração pública em geral, a publicidade foi alçada a princípio constitucional por força de sua inserção no art. 37, caput da Constituição Federal. Por conta disso, deve ser aplicado à atividade dos notários e registradores, tornando-se um princípio intrínseco, basilar de ambas as atividades. Além de princípio norteador, é ainda uma das finalidades dos atos realizados nos Tabelionatos e Ofícios de Registro. Walter Ceneviva, de forma bastante didática, na sua festejada obra lei dos Registros Públicos comentada, nos ensina os três vértices fundamentais que pode assumir a publicidade. A tríplice função da publicidade registraria é composta pela (i) transmissão de conhecimento da informação do direito correspondente ao conteúdo do registro a terceiros interessados ou não interessados; (ii) o sacrifício parcial da privacidade e intimidade das pessoas, informando bens e direitos que esta possua, a benefício das garantias advindas do registro; e (iii) servir para fins estatísticos, de interesse nacional ou fiscalização pública. Na sociedade neopositivista, em que a ética é o preceito balizador de toda a atividade pública, resguarda a publicidade, a transparência que deve estar contida na conduta dos Oficiais das serventias, de molde a nos interessar a grande dicotomia: publicidade passiva e publicidade ativa. O objetivo deste artigo é justamente diferenciar ambas e entender como elas se aplicam e como informam a atividade notarial e registral. A publicidade ativa, como o próprio nome diz, é aquela na qual o registrador tem que ir ao encontro do particular a fim de garantir-lhe determinada informação. O registrador pode fazê-lo por meio de uma notificação ou mesmo por meio de uma publicação em periódico ou de forma editalícia. Portanto, o particular, recebe a informação que passa assim a gerar eficácia erga omnes. Isso ocorre, por exemplo, nos casos em que o Registro de Pessoas Naturais é obrigado a publicar proclamas de casamento, como prevê o art. 43 da lei 6.015/73, lei de Registros Públicos; ou, por exemplo, nos casos em que o Oficial do Registro de Imóveis deve publicar os pedidos de registro de loteamento e desmembramento para que possa ser impugnado em até 15 dias, como prevê o artigo 19 da lei 6.766/79. Podendo ser citado ainda o Registro de Títulos e Documentos no qual o Oficial notifica todos os interessados de uma alienação fiduciária, art. 129, V, lei 6015/73. A publicidade ativa está, normalmente, ligada à possibilidade que se deve conceder aos terceiros de impugnar a solicitação que está sendo feita nas serventias. Essa espécie de publicidade, ainda, pode ser relacionada com os registros obrigatórios e com a relativização do princípio da observância do sigilo, justamente para garantir a observância geral e irrestrita dos elementos contidos nos assentos e nos demais documentos constantes dos Ofícios de Registro. A outra classificação de publicidade é a publicidade passiva. Como o nome bem esclarece, é a situação em que o registrador aguarda a consulta a ser formulada na sua serventia. Portanto, a publicidade é passiva para o registrador e ativa para o interessado, que é obrigado a procurar o ofício de registro a fim de obter certidão para tomar ciência de determinado título, documento ou assento presente no sistema registral. Por regra geral, qualquer interessado pode requerer uma certidão, sem que haja necessidade de justificar o pedido ou demonstrar qualquer relação com as partes às quais o documento faz referência. Esse direito do terceiro e, ao mesmo tempo, obrigação do Oficial de fornecer a informação é a publicidade passiva acima mencionada. Em texto normativo, esse assunto é tratado pelo art. 17 da lei 6.015/73, a lei de Registros Públicos, que prevê exatamente essa obrigação de fornecer a informação solicitada. O sistema registral é bastante rigoroso e prevê sanções bastante contundentes para o cumprimento da publicidade passiva, pois existe uma presunção absoluta, ou ficção, não admitindo prova em contrário, de que a obtenção de certidão é de direito de todos, com acesso irrestrito. Não é sem motivo que o direito à obtenção de certidão tem sido garantido tanto de forma virtual, como sem custo, para qualquer interessado. Tanto isso é verdade que as serventias são obrigadas a fornecer pronta busca do que se lhe requer e no prazo máximo e improrrogável de 5 dias. Não é sem sentido afirmar ser mais importante garantir a publicidade para os terceiros do que propriamente lavrar determinado assento. Percebe-se assim que a publicidade nada mais é do que a base do serviço notarial e registral. Uma pessoa interessada em arquivar um documento poderia guardá-lo consigo ou mesmo levá-lo a um banco e deixá-lo apenas em um local seguro. O que visa o interessado que se dirige ao ofício de registro, no entanto, é obter mais do que a segurança de que determinado documento ou registro será lavrado e arquivado em local seguro. O grande objetivo é que a informação seja evocada e disponibilizada o mais rápido possível para qualquer um que requeira. A grande diferença entre a publicidade ativa e passiva não está no simples fato do Oficial buscar o terceiro ou aguardar a sua presença na serventia, as duas se complementam porque existem situações em que o interessado não tem como saber do ato de registro e outras nas quais ele tem como saber e, portanto, buscar a referida informação. A questão na prática é bastante complexa, tanto que gera muita confusão, inclusive entre os doutos e cultos. Podemos dar como exemplo o art. 496 do Código Civil, tão estudado e festejado. O referido dispositivo determina ser anulável a venda de ascendente a descendente sem anuência dos demais descendentes e do cônjuge do alienante. A recente VI Jornada de Direito Civil da Justiça Federal estabeleceu o enunciado 545 que determina: "O prazo para pleitear a anulação de venda de ascendente a descendente sem anuência dos demais descendentes e/ou do cônjuge do alienante é de 2 (dois) anos, contados da ciência do ato, que se presume absoluto, em se tratando de transferência imobiliária, a partir da data do registro de imóveis". O referido enunciado parece confundir a publicidade em questão. A pergunta bastante simples: como os demais descendentes terão ciência que o ascendente fez uma escritura de compra e venda com outro descendente e registrou a venda? A única maneira que poderiam ter ciência é comparecendo sistemática e periodicamente no Ofício de Registro de Imóveis, pleiteando certidão de todos os imóveis de seu ascendente, coisa que não parece razoável. O Oficial do Registro de Imóveis em questão não irá procurar nem notificar os demais descendentes para comunicar-lhes a venda (publicidade ativa). Dessa sorte, não há como garantir ciência inequívoca dos demais descendentes, a não ser provavelmente quando da abertura da sucessão d ascendente em questão. Para o enunciado em si, teria operado a decadência do direito dos descendentes, o que por si só é um absurdo. É possível concluir, portanto, que o profissional do direito precisa estar atento aos efeitos da publicidade registral como salvaguarda da cidadania.