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Molho Sriracha e a revolta de um fazendeiro

terça-feira, 24 de junho de 2025

Atualizado em 23 de junho de 2025 13:33

No universo das special situations, há histórias que transcendem o mundo jurídico. Histórias que não se limitam a petições, laudos e sentenças, mas que envolvem dignidade, reputação e, sobretudo, resistência. O caso da Underwood Ranches é um desses. Não se trata apenas de uma disputa empresarial entre uma fornecedora agrícola e uma das marcas mais conhecidas do setor alimentício americano. Trata-se da história de Craig Underwood, um fazendeiro de 82 anos, que se viu em guerra judicial com um antigo parceiro comercial e que, com a ajuda de um contrato de litigation finance, virou o jogo em um tabuleiro assimetricamente desfavorável.

Craig Underwood é descendente de uma linhagem de agricultores da Califórnia. Sua família cultiva terras desde o século XIX, e Craig, nascido em 1941, desde cedo assumiu o comando do negócio. Com formação em agricultura, era também um gestor meticuloso, que soube transformar uma propriedade agrícola em um negócio próspero. Foi ele quem, nos anos 1980, respondeu a uma carta de David Tran, imigrante vietnamita recém-chegado aos Estados Unidos, buscando produtores de pimenta para seu então nascente molho Sriracha. A Underwood Ranches se tornou, a partir daí, fornecedora exclusiva de jalapeños da Huy Fong Foods.

Por quase três décadas, a relação prosperou. A Underwood ampliou suas plantações, ajustou variedades de pimentas, adaptou colheitas e linhas de irrigação para atender com precisão às demandas da Huy Fong. Não havia um contrato formal de longo prazo, mas os acordos anuais, reforçados por confiança e continuidade, se sucediam sem sobressaltos. A confiança era tanta que Craig construiu uma linha de processamento exclusiva para os produtos da Huy Fong. E foi justamente essa informalidade, esse elo de confiança que, ao ser rompido, tornou o litígio ainda mais doloroso.

Em 2016, sem aviso prévio, a Huy Fong cancelou a encomenda da safra. Craig estava com as sementes compradas, as terras preparadas, os funcionários contratados. Ao receber a notícia, estava de férias com a família - e ali, segundo relatou, começou o pesadelo. A Underwood Ranches perdeu, de uma hora para outra, cerca de 80% de sua receita. Houve demissões, prejuízo acumulado, suspensão de pagamentos e ameaça real de insolvência.

A solução foi buscar justiça. A Underwood ingressou com uma ação judicial com base em diversas causas de pedir. O processo tramitou na Califórnia e, em 2019, o júri deu razão a Craig. A condenação foi significativa: US$ 23,3 milhões. Mas a Huy Fong apelou. E com a apelação veio a necessidade de novos gastos com advogados, consultores, laudos. Era um momento crítico: a Underwood tinha uma sentença favorável, mas não tinha caixa para defender essa vitória no segundo grau.

É nesse cenário que entra o litigation finance. Em 2020, a Underwood fechou um contrato com a Burford Capital, uma das maiores financiadoras de litígios comerciais do mundo. O contrato previa o adiantamento de US$ 4 milhões, com cláusula non-recourse - ou seja, caso a decisão fosse revertida e a Underwood perdesse o processo, nada teria que ser devolvido. Era um investimento de risco puro, amparado por uma análise criteriosa da tese jurídica e do histórico do processo.

Os recursos providos pela Burford foram usados de forma ampla: não apenas para arcar com honorários e despesas processuais, mas também para manter a operação agrícola em funcionamento durante a pandemia (outro percalço enfrentado pela Underwood), evitar a venda precipitada de ativos e garantir que Craig e sua equipe pudessem atravessar a tormenta com alguma estabilidade. O contrato preservava a autonomia jurídica da parte financiada: a Burford tinha direito a relatórios periódicos, mas não interferia nas decisões táticas ou substantivas do caso. Em contrapartida, previa um retorno de até duas vezes o valor aportado, caso a sentença fosse mantida.

A análise da Burford foi criteriosa. Avaliou a robustez do mérito jurídico, a existência de prova documental e testemunhal, os precedentes californianos sobre promessas comerciais e omissões dolosas, e também o histórico da corte que julgaria a apelação. Com um portfólio de vitórias, a financiadora via na Underwood um caso emblemático: uma parte vulnerável, com tese forte, que precisava apenas de fôlego financeiro para concluir sua jornada.

A Huy Fong, por sua vez, baseou sua defesa em alguns pilares. Alegou que o relacionamento com a Underwood era renovado anualmente, sem qualquer obrigação de continuidade. Afirmou que não havia cláusula exigindo aviso prévio para o fim da relação. Questionou a validade jurídica da alegação da Underwood, afirmando que ela não poderia exigir transparência sobre planos comerciais não formalizados. E, por fim, defendeu que valores adiantados em 2016 deveriam ser compensados com a indenização. Argumentos legítimos, mas que não sensibilizaram os julgadores.

Em julho de 2021, a Corte de Apelação confirmou integralmente a sentença do júri. A decisão, além de manter os valores devidos, consolidou um precedente relevante sobre a responsabilidade comercial em relações duradouras, mesmo na ausência de contratos formais escritos. Essa discussão me lembra, inclusive, o "Caso dos Tomates" (TJRS, Apelação Cível 591.028.2915, 5ª. Câmara Cível, Rel. Des. Ruy Rosado de Aguiar Junior, julgado em 06.06.1991), utilizado como exemplo concreto da aplicação de boa-fé em relação ao comportamento das partes. No caso julgado pelo TJRS, a CICA havia iniciado negociações com um agricultor para compra de sua safra de tomates, chegando a fornecer sementes e gerar legítima expectativa de contratação. Contudo, a empresa desistiu da industrialização naquele ano, causando prejuízos ao produtor. O Tribunal reconheceu a responsabilidade civil com base na teoria da culpa in contrahendo, que impõe deveres de boa-fé durante as negociações.

Em agosto, a Underwood recebeu os US$ 23,3 milhões, quitou a obrigação com a Burford e recomeçou. Craig Underwood, já com mais de 80 anos, celebrou não apenas a vitória jurídica, mas a sobrevivência de sua história e de sua empresa.

Com os recursos, a fazenda se reestruturou e lançou sua própria marca de molhos, voltada para um público que reconhecia a qualidade dos produtos cultivados ali por décadas. Era o desfecho de uma história que uniu tradição agrícola, litígio estratégico e financiamento de risco.

Do lado da Burford, o retorno financeiro foi substancial: o aporte de US$ 4 milhões gerou cerca de US$ 8 milhões ao final - o dobro do capital investido. Pelo que pude observar, a Burford Capital realizou o aporte de US$ 4 milhões, em fevereiro de 2020, no auge da crise da Underwood. O retorno financeiro ocorreu em agosto de 2021, logo após a confirmação da sentença pela Corte de Apelação, ou seja, em um período de cerca de 18 meses. Esse modelo de financiamento, condicionado ao sucesso do caso, alinha os interesses de financiador e financiado, garantindo que o risco seja gerenciado com critério e profissionalismo.

O caso Underwood não é apenas um estudo de caso para advogados ou investidores em litígios. É uma narrativa de resiliência, inteligência jurídica e sofisticação contratual. É um exemplo claro de como o capital especializado pode servir como ponte entre o direito e a justiça, entre o merecimento jurídico e a capacidade de sustentá-lo até o final. Este precedente representa, em termos práticos, o que o litigation finance pode significar para pequenas e médias empresas: não apenas uma solução financeira emergencial, mas um mecanismo institucionalizado de reequilíbrio de forças. Numa era em que o acesso à justiça está frequentemente condicionado à capacidade de suportar longas e custosas disputas, o capital especializado surge como elo entre a tese jurídica e o resultado (satisfatório) do caso.

O litígio comercial, cada vez mais, é também uma arena de engenharia financeira e gestão de riscos. E, nesse campo, entender o modelo contratual, as variáveis econômicas e as implicações jurídicas das operações de funding passou a ser parte essencial do repertório de quem atua com contencioso estratégico, reestruturações e situações especiais. O aprendizado é direto: não basta ter razão - é preciso ter meios para defendê-la. E nesse sentido, o litigation finance deixou de ser uma excentricidade para se tornar uma ferramenta legítima e cada vez mais necessária.