COLUNAS

  1. Home >
  2. Colunas

Special Situations e Financiamento de Litígios

Temas sobre questões jurídicas envolvendo o mercado de financiamento de litígios e de special situations.

Daniel Kalansky
A seguinte história envolvendo a Allied Tecnologia S.A. mostra como uma política pública pode, em pouco tempo, sair da promessa de desenvolvimento para a arena judicial - e, de lá, se transformar em ativo financeiro de milhões. Tudo começou em 2005, quando o governo federal instituiu a lei 11.196, a "lei do bem", e criou o Programa de Inclusão Digital. A iniciativa, em poucas palavras, reduzia a zero as alíquotas de PIS e COFINS incidentes sobre a venda de determinados produtos. A ideia era estimular o consumo, expandir o acesso da população à tecnologia, incentivar a indústria nacional e fomentar o mercado. Para usufruir do benefício, as empresas precisavam atender ao chamado PPB - processo produtivo básico, que demandava a realização de investimentos relevantes em produção nacional e visava o desenvolvimento econômico de determinada região do país - pela criação de novas tecnologias, pela geração de empregos ou pelo estímulo de exportações. Durante anos, esse programa foi celebrado como um caso de sucesso. Medidas provisórias e leis foram prorrogando sua vigência - que, inicialmente, seria até 31/12/2009 -, tendo sido estendida até 31/12/2018. O discurso era sempre o mesmo: a política geraria crescimento, competitividade e acesso democrático às novas tecnologias. Foi nesse cenário de estabilidade e previsibilidade que a Allied decidiu dar um passo ousado. A empresa, a partir de junho de 2013, estruturou um plano de expansão agressivo, abrindo 45 lojas e quiosques em shopping centers, em diferentes estados. Assinou contratos de longo prazo, montou estoques milionários, treinou equipes de vendas e desenvolveu estratégias de marketing robustas. Seu modelo de negócios estava intrinsecamente vinculado ao benefício fiscal: a alíquota zero de PIS e COFINS barateava os preços e atraía consumidores, permitindo à companhia crescer rapidamente. Mas, em setembro de 2015, tudo mudou. O governo editou a MP 690, convertida pouco depois na lei 13.241, e revogou abruptamente os arts. 28 e 29 da lei do bem. Com isso, o benefício, que deveria vigorar até o fim de 2018, não mais seria concedido, a partir de 2016. A justificativa era exclusivamente arrecadatória: a medida prometia reforçar as contas públicas em mais de R$ 6 bilhões, já no exercício seguinte. Para empresas como a Allied, essa virada legislativa foi devastadora. Planos estratégicos, contratos de longo prazo e investimentos em lojas físicas perderam seu fundamento econômico da noite para o dia. Em termos jurídicos, tratava-se de uma evidente violação ao princípio da proteção da confiança: o Estado induziu o particular a investir, vinculou esse investimento a condições específicas (produção sob o PPB) e, por fim, revogou o benefício, antes do prazo prometido. Foi nesse contexto que a Allied recorreu ao Judiciário. A companhia ajuizou mandado de segurança para proteger seu direito, até dezembro de 2018, como constava do projeto inicial. A tese construída pela defesa combinava fundamentos constitucionais e tributários, com base, especialmente, na segurança jurídica: não se poderia mudar abruptamente uma política pública que induziu investimentos massivos e impôs específicas e caras condições aos contribuintes. De início, cabe destacar que a doutrina sempre reforçou esse entendimento. Humberto Ávila discorre acerca do princípio da proteção da confiança, que, a seu ver, "(...) serve de instrumento de defesa de interesses individuais nos casos em que o particular, não sendo protegido pelo direito adquirido ou pelo ato jurídico perfeito, em qualquer âmbito, inclusive no tributário, exerce a sua liberdade, em maior ou menor medida, confiando na validade (ou na aparência da validade) de um conhecido ato normativo geral ou individual e, posteriormente, tem a sua confiança frustrada pela descontinuidade da sua vigência ou dos seus efeitos (...)" (ÁVILA, Humberto. Segurança jurídica: entre permanência, mudança e realização no direito tributário. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 360). Já Canotilho, defende que segurança jurídica e proteção da confiança são elementos constitutivos do próprio Estado de Direito, estando a segurança jurídica conexionada com elementos objetivos da ordem jurídica: garantia de estabilidade jurídica, segurança de orientação e realização do direito (CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 7. ed. Coimbra: Edições Almedina, 2003, p. 257). Cumpre também lembrar que o art. 178 do CTN proíbe expressamente a revogação de benefícios fiscais concedidos por prazo certo e sob condição. Nesse sentido, boa-fé objetiva exige coerência entre a conduta estatal e a legítima expectativa criada no contribuinte. Essa linha encontrou respaldo na jurisprudência do STJ, que, em precedentes recentes - como o REsp 1.845.082/SP e o REsp 1.987.675/SP -, consolidou a interpretação de que benefícios fiscais condicionados e com prazo certo não podem ser revogados antes do fim do período de vigência estabelecido. O Tribunal tem enfatizado que a revogação antecipada viola a confiança legítima e contraria o próprio art. 178 do CTN. Esses precedentes foram incorporados à argumentação da Allied e conferiram robustez à tese. No âmbito do REsp 1.845.082/SP, a 1ª turma do STJ decidiu que, concedido o benefício fiscal por prazo certo e sob condição, nos termos do art. 178 do CTN, não seria possível sua revogação antes do termo final. O contribuinte que moldou sua conduta ao benefício legal, cumprindo os requisitos impostos, tem o direito de fruí-lo até o fim do prazo estabelecido, sob pena de violação da confiança legítima e da boa-fé do contribuinte, "que aderiu à política fiscal de inclusão social, concebida mediante condições onerosas para o gozo da alíquota zero de tributos". No mesmo sentido, a 2ª turma do STJ, ao julgar o REsp 1.987.675/SP, concluiu que a exigência de que a empresa se submetesse a um processo específico de produção, bem como a limitação do preço de venda dos produtos, caracterizaria a onerosidade para usufruir da redução da alíquota. Acrescentou-se que deve ser assegurado aos contribuintes envolvidos no Plano de Inclusão Digital a manutenção da desoneração fiscal até o prazo previsto no diploma legal revogado, i.e., 31/12/2018, condicionado à verificação do cumprimento de todas as condições previstas na legislação então vigente. A companhia, enfim, obteve êxito no mandado de segurança, cuja decisão transitou em julgado, sendo reconhecida a impossibilidade da revogação da desoneração daquelas contribuições sobre produtos eletrônicos comercializados pela Allied. No âmbito do julgamento da apelação cível, em sede de mandado de segurança impetrado pela Allied, foi frisado que o STJ "tem sedimentado sua jurisprudência no sentido de que a revogação da alíquota zero prevista na lei 11.196/05 (Programa de Inclusão Digital) antes do termo final configura violação ao art. 178, do CTN, em vista das condições onerosas impostas aos varejistas para o gozo do benefício fiscal e da fixação de prazo certo". Com isso, o REsp interposto pela União Federal não foi admitido. O STJ não conheceu do agravo em REsp e o processo transitou em julgado em 22/11/2024. A vitória abriu caminho para a apuração de um crédito tributário gigantesco: cerca de R$ 540 milhões, em valores nominais, que, atualizados, poderiam alcançar quase R$ 890 milhões. Era um triunfo jurídico, mas que trazia um novo dilema prático. Como realizar esse crédito? A compensação administrativa não era viável; a via judicial, do precatório, era possível, mas implicava prazos incertos, sujeitos ao calendário orçamentário da União e a riscos de postergação. Restava a alternativa de ceder os créditos a terceiros, com deságio, em troca de liquidez imediata. A Allied divulgou, através de fato relevante, que, em caso de cessão, estimava a aplicação de deságio de 50% a 70%, conforme patamares usuais para esse tipo de operação no mercado. Esse dilema é a essência das operações de special situations: ativos juridicamente sólidos, de enorme valor, mas de liquidez restrita. Em julho de 2025, a companhia fez seu movimento. Em fato relevante, comunicou a cessão dos direitos creditórios a um determinado fundo de investimento. Em termos simples, a Allied converteu um crédito judicial em dinheiro no caixa da companhia, ainda que com desconto. O fundo de investimento, por sua vez, adquiriu um ativo robusto, lastreado em decisão transitada em julgado, mas que exigirá expertise financeira e apetite de risco para ser realizado. Em notícia divulgada na imprensa, estimou-se que o contrato celebrado com o fundo seria de R$ 350 milhões. Esse desfecho marca um precedente importante. Mostra que créditos tributários reconhecidos judicialmente podem ser tratados como ativos negociáveis, aptos a gerar liquidez imediata para as empresas e oportunidades de investimento sofisticadas para fundos especializados em ativos judiciais. A operação da Allied demonstra como transformar risco jurídico em oportunidade financeira. O que começou como um incentivo fiscal para inclusão digital, evoluiu para um litígio tributário fundado na confiança legítima do contribuinte e no art. 178 do CTN, e terminou como uma operação de monetização de créditos tributários. No fim, a lição é clara: ativos judiciais podem ter liquidez imediata, desde que haja criatividade jurídica, estruturação financeira adequada e players dispostos a assumir riscos. A Allied fez uma operação que muitas outras companhias, diante de créditos tributários como esse, podem replicar para fortalecer o seu caixa. 
O universo de litigation finance costuma ser associado a disputas corporativas, arbitragens internacionais ou ações coletivas de grandes proporções. Ultimamente, entretanto, temos sido chamados para atuar em casos de família em que, com a ajuda de fundos de litígios, temos conseguido alcançar resultados importantes para herdeiros e cônjuges. Por isso, resolvi escrever neste artigo sobre um caso bem emblemáticos dos últimos anos com origem em um litígio familiar: o divórcio de Farkhad Akhmedov, bilionário russo, de sua ex-esposa, Tatiana Akhmedova. Tatiana Akhmedova e Farkhad Akhmedov se conheceram em 1989, casaram-se e, quatro anos depois, mudaram-se para Londres. Ele consolidou sua fortuna no setor de petróleo e gás da Rússia, alcançando um enorme salto patrimonial em 2012, quando vendeu sua participação em uma empresa produtora de gás, por cerca de US$ 1,375 bilhão. Ela, por sua vez, dedicou-se à família, sendo descrita como uma mãe presente, que cuidava dos filhos do casal e até mesmo do filho que Akhmedov tinha de seu primeiro casamento. O marco temporal da separação se tornou um ponto de intensa disputa. Tatiana sustentava que o casamento terminou em outubro de 2013, quando ingressou com a petição de divórcio em Londres, e que, apesar de uma tentativa de reconciliação no final de 2014, a união não foi restabelecida. Já Akhmedov insistia que a separação havia ocorrido muito antes, em 1999 ou, no máximo, em 2004, em Moscou. A diferença era crucial, pois impactava diretamente na análise dos bens partilháveis. A High Court inglesa acabou acolhendo a versão de Tatiana, reconhecendo a validade de seu pedido e reforçando a jurisdição britânica sobre a divisão de patrimônio. Em 2016, Akhmedov foi condenado a transferir para Tatiana 41% de sua fortuna, equivalentes a aproximadamente 450 milhões de euros (cerca de US$ 600 milhões). Tratava-se de uma das maiores sentenças de divórcio da história do Reino Unido. Contudo, como ocorre em muitas situações como estas, ter a sentença não significava ter o dinheiro. O enforcement dessa decisão enfrentava obstáculos gigantescos: grande parte dos ativos estava espalhada em diferentes jurisdições, muitas vezes em estruturas offshore opacas; o principal ativo, o superiate Luna,  estava blindado em cadeias societárias complexas; e o bilionário mobilizou exércitos de advogados e usou sofisticadas estruturas de proteção patrimonial para resistir ao pagamento. Nesse cenário, um dos maiores fundos de investimento em litígios teve um papel crucial: estruturou o financiamento da execução e transformou um processo de enforcement quase impossível em um dos maiores sucessos financeiros já reportados. O fundo firmou um acordo de financiamento com Tatiana Akhmedova, assumindo os custos da batalha judicial em troca de uma fatia dos valores recuperados. Segundo informações divulgadas ao mercado, o fundo investiu cerca de US$ 20 milhões na disputa. A lógica do contrato seguiu o padrão de litigation finance: financiamento integral da execução, incluindo advogados em múltiplas jurisdições, custas e investigações patrimoniais; uma estratégia global de enforcement, com medidas no Reino Unido, Dubai, Ilhas Marshall e outros centros financeiros; e risco compartilhado - se nada fosse recuperado, o fundo perderia integralmente seu investimento. O caso virou um verdadeiro thriller jurídico-financeiro. A peça central foi o iate Luna, um dos maiores do mundo, originalmente construído para o magnata Roman Abramovich e depois adquirido por Akhmedov. Avaliado em mais de US$ 300 milhões, o iate tornou-se símbolo da batalha judicial. Formalmente, porém, não estava em nome de Farkhad Akhmedov: era registrado em favor de uma sociedade sediada em Liechtenstein e vinculado a uma cadeia de holdings e trusts em jurisdições como as Ilhas Marshall e o Chipre. A estratégia era clara: criar uma barreira formal entre o magnata e o bem, de modo a alegar que a embarcação não poderia ser alcançada pela execução da sentença de divórcio. Essa engenharia societária foi apontada pela própria Corte de Apelação inglesa como um mero "artifício" para evitar o cumprimento da decisão. Os advogados da ex-esposa, financiados pelo fundo de litígio, iniciaram um trabalho meticuloso de rastreio patrimonial, que envolveu registros navais internacionais e monitoramento físico da embarcação. Descobriram que o Luna fazia rotas entre o Mediterrâneo e o Golfo Pérsico, até que, em 2018, a embarcação foi localizada ancorada no Porto Rashid, em Dubai. Esse dado foi crucial: abriu a possibilidade de buscar medidas de enforcement em uma jurisdição onde o iate estava fisicamente presente, ainda que registrado em nome de terceiros. Com base nessas informações, os advogados ingressaram nos Emirados Árabes Unidos com pedido de bloqueio judicial do bem, apresentando provas de que a estrutura societária era apenas de fachada e que Akhmedov continuava sendo o beneficiário real da embarcação. O tribunal de Dubai deferiu a ordem de apreensão, e o Luna foi formalmente arrestado. A cena da apreensão de um superiate de luxo em um porto internacional ganhou as manchetes e se tornou símbolo da disputa, demonstrando como a combinação de investigação, estratégia jurídica transnacional e financiamento especializado pode derrubar até as blindagens patrimoniais mais sofisticadas. O litígio tomou contornos ainda mais intensos quando ficou claro que o filho do casal, Temur Akhmedov, atuava como peça-chave na ocultação dos ativos do pai. Jovem banqueiro em Londres, Temur teria ajudado a movimentar valores significativos, orientando transferências, fornecendo instruções a gestores de investimentos e colaborando para manter os recursos fora do alcance da mãe. As investigações revelaram que Temur não apenas tinha conhecimento da sentença que condenava o pai, como atuava deliberadamente para frustrar o seu cumprimento. E-mails, mensagens e registros bancários mostraram que ele participou ativamente de operações destinadas a dificultar o rastreamento de patrimônio. A acusação era de que ele ajudava a movimentar quantias por meio de estruturas offshore e de contas em diferentes jurisdições, num esforço coordenado para manter a fortuna do pai blindada. A juíza Gwynneth Knowles, da Family Division da High Court, não deixou dúvidas ao julgar a conduta do herdeiro. Em 2020, afirmou que este foi um caso de "the most serious abuse, where the son acted dishonestly in order to frustrate the enforcement of his mother's judgment" ([2018] EWHC 3286 (Fam)). Em outras palavras, reconheceu-se que o filho usou de má-fé e participou ativamente de um esquema fraudulento para impedir que a mãe recebesse o que lhe era devido. Essa constatação foi crucial: ao identificar que não apenas o bilionário, mas também membros da família colaboravam na blindagem patrimonial, o tribunal pôde adotar medidas mais severas. O envolvimento de Temur escancarou a dimensão familiar e intergeracional da fraude, mostrando como até herdeiros podem ser mobilizados em estratégias de resistência ao cumprimento de sentenças. Esse detalhe deu ao caso ainda mais repercussão, pois raramente se vê um filho atuando judicialmente contra a própria mãe em defesa de um esquema de ocultação de ativos. O rastreamento dos ativos não se limitou ao superiate Luna. Desde o início, a estratégia foi mapear globalmente toda a fortuna de Farkhad Akhmedov, espalhada em diferentes continentes e camadas societárias. O fundo financiador contratou especialistas em asset tracing que passaram a cruzar dados de registros públicos, documentos de embarcações, cadastros imobiliários e informações bancárias, numa verdadeira investigação forense internacional. Foram identificados imóveis de alto padrão em Londres e em outros países da Europa, propriedades registradas em nome de holdings estrangeiras e estruturas fiduciárias (fundos e trusts). O trabalho incluiu verificar cadastros de land registry, examinar vínculos de empresas em paraísos fiscais e rastrear fluxos financeiros compatíveis com aquisição de imóveis de luxo. Além disso, vieram à tona coleções de arte e objetos de valor expressivo, também utilizados como forma de deslocar riqueza para ativos móveis e mais difíceis de rastrear. A obra de arte mais midiática vinculada ao caso foi a pintura Untitled (Yellow and Blue) de Mark Rothko, que se tornou um símbolo não apenas da enorme fortuna em disputa, mas também das estratégias sofisticadas para ocultar patrimônio. Essa obra foi vendida, em 2015, por cerca de US$ 46,5 milhões, em leilão da Sotheby's. No âmbito do divórcio, ela estava inserida em uma coleção estimada em US$ 145,2 milhões, que incluía também obras de Andy Warhol, Damien Hirst e Peter Doig. Em decisão judicial de 2016, o tribunal ordenou que essa coleção - especialmente valiosa - fosse identificada e considerada parte do patrimônio a ser executado. A relevância de Untitled (Yellow and Blue) vai além do valor monetário. Ela simboliza o uso de arte contemporânea como meio de deslocar riqueza em estruturas offshore e freeports, dificultando o acesso judicial. O destaque midiático da obra reforça como ativos culturais podem ser tão estratégicos quanto imóveis ou iates de luxo em litígios de alta complexidade. Assim, o rastreamento não foi apenas a "caça de um iate", mas a desmontagem paciente de uma rede global de estruturas offshore, bens imóveis, obras de arte e contas bancárias. A cada camada revelada, ficava mais evidente a intenção de esconder a fortuna, o que levou a Corte de Apelação a concluir que "as estruturas societárias elaboradas eram, na realidade, nada mais do que um artifício por meio do qual o Sr. Akhmedov buscava se evadir do cumprimento da sentença contra si" ([2020] EWCA Civ 408). Após anos de litígios e negociações, em 2021 as partes chegaram a um acordo de aproximadamente £135 milhões (cerca de US$ 180 milhões). Para o fundo de investimento, o caso foi um golpe de mestre: de um investimento de cerca de US$ 20 milhões, recebeu aproximadamente US$ 103 milhões, alcançando um lucro superior a US$ 70 milhões. O episódio foi reportado como um dos maiores retornos da história do setor. O caso Akhmedov v. Akhmedova traz aprendizados valiosos. Execuções complexas são oportunidades de financiamento - mesmo fora do direito empresarial, litígios com grandes fortunas e forte resistência no cumprimento da sentença podem ser viabilizados por litigation finance. O enforcement internacional exige mais do que capital - a rede global de advogados e investigadores é tão relevante quanto o financiamento em si. E retornos extraordinários são possíveis - ao assumir riscos em disputas de difícil execução, financiadores podem capturar resultados fora da curva, como ocorreu neste caso. O divórcio bilionário de Farkhad Akhmedov mostrou que o litigation finance pode atuar como catalisador de justiça mesmo em litígios familiares, transformando uma sentença de difícil execução em valor efetivamente recuperado. E, no centro dessa batalha, um superiate de luxo se tornou símbolo de algo maior: o poder de alinhar capital, estratégia e enforcement para destravar valor em contextos extremos de special situations.
Em um ambiente de falência, ativos com aparência de valor muitas vezes escondem armadilhas: são créditos ilíquidos, litígios longos e de resultado incerto. Mas também ali podem surgir oportunidades. É o que revela o caso da MagCorp - Magnesium Corporation of America, cujo processo de falência nos Estados Unidos se transformou, ao longo de mais de uma década, em um exemplo de como ativos judiciais podem ser monetizados, estruturados e, sobretudo, convertidos em benefício coletivo - mesmo antes do trânsito em julgado. A MagCorp era uma das maiores produtoras de magnésio do país, controlada pela holding Renco Group, do bilionário Ira Rennert. Por meio de subsidiárias - Renco Metals e US Magnesium -, o grupo exercia controle operacional e financeiro sobre a companhia, que acumulava passivos ambientais significativos e problemas operacionais no final dos anos 1990. A falência foi decretada em 2001. Nomeado como trustee, Lee Buchwald iniciou uma investigação sobre transferências de recursos feitas pela empresa à sua controladora entre 1995 e 1998. A principal alegação era de que a MagCorp teria realizado pagamentos de mais de US$ 100 milhões em dividendos à Renco Metals, com base em demonstrações contábeis que não refletiam os passivos ocultos - em especial os ambientais. A massa falida sustentou que os dividendos foram pagos quando a empresa já caminhava para a insolvência e que os valores foram direcionados, em parte, à construção de uma mansão de 43 mil pés quadrados (quase 4.000m²), no coração dos Hamptons. O imóvel, avaliado em cerca de US$ 110 milhões, contava com 29 quartos, 39 banheiros, três piscinas e uma sala de cinema privativa. A opulência extravagante foi interpretada pelo júri como evidência concreta do esvaziamento patrimonial da MagCorp, em prejuízo de seus credores. O episódio deu contornos simbólicos à causa: enquanto a empresa afundava, seu controlador erguia o que viria a ser chamada pela imprensa de "a maior residência particular dos Estados Unidos". A sentença, proferida em 2015, foi incisiva. O júri avaliou que, embora os dividendos tivessem aparência legal, a realidade financeira da empresa os tornava "transações fraudulentas e prejudiciais aos credores": "Os réus tinham conhecimento dos passivos significativos e crescentes da MagCorp, mas escolheram priorizar seu próprio benefício em detrimento da solvência da companhia" - U.S. District Court, SDNY, 2015. Assim, o júri concluiu que houve violação do fiduciary duty, abuso do direito de controle e uso indevido da estrutura societária para esvaziar o patrimônio da empresa. A Renco Group, por sua vez, sustentou que: Os dividendos foram legítimos e baseados em lucros registrados; A falência resultou de circunstâncias externas, como a queda nos preços do magnésio e a concorrência internacional; A acusação teria se apoiado em uma narrativa emocional e enviesada, centrada na figura de Rennert e em sua mansão. Na apelação, os réus alegaram que a sentença foi excessiva, desconsiderou a estrutura empresarial legítima e atribuiu responsabilidade pessoal a Rennert sem evidências diretas de sua atuação dolosa: "A corte substituiu a lógica contábil pela retórica da indignação moral", sustentaram os advogados da Renco no recurso ao Second Circuit. Em 2017, a Corte de Apelações confirmou integralmente a sentença de primeira instância. Rejeitou os argumentos centrais da defesa e validou as conclusões do júri quanto à fraude: "A evidência mostra que os dividendos foram pagos com conhecimento dos passivos ocultos e com desprezo deliberado pelas consequências sobre os credores" - Second Circuit, 2017. A corte ainda reforçou que Rennert exercia controle relevante e ativo sobre a holding, e que não poderia se blindar por meio de estruturações societárias em cadeia: "Where a parent corporation so dominates its subsidiaries that the distinction is only formal, liability may attach to the controlling entity". Durante a apelação, sem liquidez para sustentar a massa falida e diante de uma sentença potencialmente valiosa, o trustee recorreu ao §  363 do Bankruptcy Code para leiloar parte do resultado do litígio. O ativo vendido foi o direito de receber os primeiros US$ 50 milhões da sentença, caso confirmada. O vencedor do leilão foi a Gerchen Keller Capital, que pagou US$ 26,2 milhões à vista. A estrutura era non-recourse: o fundo perderia tudo caso a sentença fosse revertida. A corte aprovou a transação, classificando-a como "consistente com os deveres fiduciários do trustee e benéfica à massa": "This structure presents no risk to the Estate, and provides substantial value in the face of ongoing litigation uncertainty". A operação permitiu o pagamento de credores e despesas administrativas - blindando a gestão e convertendo um ativo contingente em caixa efetivo, sem renunciar à titularidade da causa. O caso MagCorp exemplifica a transformação do litígio de um passivo problemático em ativo estratégico, com gestão sofisticada e retorno coletivo. Também reafirma que a aparência de legalidade em atos societários não basta para blindar controladores, quando há evidências de que se beneficiaram às custas da solvência da empresa. Em termos de retorno para o fundo, a operação foi efetivamente rentável. O fundo pagou em setembro de 2016 o valor US$ 26,2 milhões para adquirir uma participação de US$ 50 milhões no julgamento de US$ 213 milhões contra a Renco Group. A participação foi adquirida apenas seis meses antes da decisão final do tribunal. Como resultado, a empresa quase dobrou o dinheiro investido no período curto de 6 meses. Na falência, é raro haver recursos suficientes para levar adiante ações judiciais contra réus com grande capacidade financeira. A estrutura jurídica da venda dos direitos creditórios decorrentes de disputas abriu precedente importante na prática de falências nos EUA, e serve como referência para experiências futuras no Brasil, onde o financiamento de litígios pode se tornar uma ferramenta muito importante em processos falimentares.
terça-feira, 24 de junho de 2025

Molho Sriracha e a revolta de um fazendeiro

No universo das special situations, há histórias que transcendem o mundo jurídico. Histórias que não se limitam a petições, laudos e sentenças, mas que envolvem dignidade, reputação e, sobretudo, resistência. O caso da Underwood Ranches é um desses. Não se trata apenas de uma disputa empresarial entre uma fornecedora agrícola e uma das marcas mais conhecidas do setor alimentício americano. Trata-se da história de Craig Underwood, um fazendeiro de 82 anos, que se viu em guerra judicial com um antigo parceiro comercial e que, com a ajuda de um contrato de litigation finance, virou o jogo em um tabuleiro assimetricamente desfavorável. Craig Underwood é descendente de uma linhagem de agricultores da Califórnia. Sua família cultiva terras desde o século XIX, e Craig, nascido em 1941, desde cedo assumiu o comando do negócio. Com formação em agricultura, era também um gestor meticuloso, que soube transformar uma propriedade agrícola em um negócio próspero. Foi ele quem, nos anos 1980, respondeu a uma carta de David Tran, imigrante vietnamita recém-chegado aos Estados Unidos, buscando produtores de pimenta para seu então nascente molho Sriracha. A Underwood Ranches se tornou, a partir daí, fornecedora exclusiva de jalapeños da Huy Fong Foods. Por quase três décadas, a relação prosperou. A Underwood ampliou suas plantações, ajustou variedades de pimentas, adaptou colheitas e linhas de irrigação para atender com precisão às demandas da Huy Fong. Não havia um contrato formal de longo prazo, mas os acordos anuais, reforçados por confiança e continuidade, se sucediam sem sobressaltos. A confiança era tanta que Craig construiu uma linha de processamento exclusiva para os produtos da Huy Fong. E foi justamente essa informalidade, esse elo de confiança que, ao ser rompido, tornou o litígio ainda mais doloroso. Em 2016, sem aviso prévio, a Huy Fong cancelou a encomenda da safra. Craig estava com as sementes compradas, as terras preparadas, os funcionários contratados. Ao receber a notícia, estava de férias com a família - e ali, segundo relatou, começou o pesadelo. A Underwood Ranches perdeu, de uma hora para outra, cerca de 80% de sua receita. Houve demissões, prejuízo acumulado, suspensão de pagamentos e ameaça real de insolvência. A solução foi buscar justiça. A Underwood ingressou com uma ação judicial com base em diversas causas de pedir. O processo tramitou na Califórnia e, em 2019, o júri deu razão a Craig. A condenação foi significativa: US$ 23,3 milhões. Mas a Huy Fong apelou. E com a apelação veio a necessidade de novos gastos com advogados, consultores, laudos. Era um momento crítico: a Underwood tinha uma sentença favorável, mas não tinha caixa para defender essa vitória no segundo grau. É nesse cenário que entra o litigation finance. Em 2020, a Underwood fechou um contrato com a Burford Capital, uma das maiores financiadoras de litígios comerciais do mundo. O contrato previa o adiantamento de US$ 4 milhões, com cláusula non-recourse - ou seja, caso a decisão fosse revertida e a Underwood perdesse o processo, nada teria que ser devolvido. Era um investimento de risco puro, amparado por uma análise criteriosa da tese jurídica e do histórico do processo. Os recursos providos pela Burford foram usados de forma ampla: não apenas para arcar com honorários e despesas processuais, mas também para manter a operação agrícola em funcionamento durante a pandemia (outro percalço enfrentado pela Underwood), evitar a venda precipitada de ativos e garantir que Craig e sua equipe pudessem atravessar a tormenta com alguma estabilidade. O contrato preservava a autonomia jurídica da parte financiada: a Burford tinha direito a relatórios periódicos, mas não interferia nas decisões táticas ou substantivas do caso. Em contrapartida, previa um retorno de até duas vezes o valor aportado, caso a sentença fosse mantida. A análise da Burford foi criteriosa. Avaliou a robustez do mérito jurídico, a existência de prova documental e testemunhal, os precedentes californianos sobre promessas comerciais e omissões dolosas, e também o histórico da corte que julgaria a apelação. Com um portfólio de vitórias, a financiadora via na Underwood um caso emblemático: uma parte vulnerável, com tese forte, que precisava apenas de fôlego financeiro para concluir sua jornada. A Huy Fong, por sua vez, baseou sua defesa em alguns pilares. Alegou que o relacionamento com a Underwood era renovado anualmente, sem qualquer obrigação de continuidade. Afirmou que não havia cláusula exigindo aviso prévio para o fim da relação. Questionou a validade jurídica da alegação da Underwood, afirmando que ela não poderia exigir transparência sobre planos comerciais não formalizados. E, por fim, defendeu que valores adiantados em 2016 deveriam ser compensados com a indenização. Argumentos legítimos, mas que não sensibilizaram os julgadores. Em julho de 2021, a Corte de Apelação confirmou integralmente a sentença do júri. A decisão, além de manter os valores devidos, consolidou um precedente relevante sobre a responsabilidade comercial em relações duradouras, mesmo na ausência de contratos formais escritos. Essa discussão me lembra, inclusive, o "Caso dos Tomates" (TJRS, Apelação Cível 591.028.2915, 5ª. Câmara Cível, Rel. Des. Ruy Rosado de Aguiar Junior, julgado em 06.06.1991), utilizado como exemplo concreto da aplicação de boa-fé em relação ao comportamento das partes. No caso julgado pelo TJRS, a CICA havia iniciado negociações com um agricultor para compra de sua safra de tomates, chegando a fornecer sementes e gerar legítima expectativa de contratação. Contudo, a empresa desistiu da industrialização naquele ano, causando prejuízos ao produtor. O Tribunal reconheceu a responsabilidade civil com base na teoria da culpa in contrahendo, que impõe deveres de boa-fé durante as negociações. Em agosto, a Underwood recebeu os US$ 23,3 milhões, quitou a obrigação com a Burford e recomeçou. Craig Underwood, já com mais de 80 anos, celebrou não apenas a vitória jurídica, mas a sobrevivência de sua história e de sua empresa. Com os recursos, a fazenda se reestruturou e lançou sua própria marca de molhos, voltada para um público que reconhecia a qualidade dos produtos cultivados ali por décadas. Era o desfecho de uma história que uniu tradição agrícola, litígio estratégico e financiamento de risco. Do lado da Burford, o retorno financeiro foi substancial: o aporte de US$ 4 milhões gerou cerca de US$ 8 milhões ao final - o dobro do capital investido. Pelo que pude observar, a Burford Capital realizou o aporte de US$ 4 milhões, em fevereiro de 2020, no auge da crise da Underwood. O retorno financeiro ocorreu em agosto de 2021, logo após a confirmação da sentença pela Corte de Apelação, ou seja, em um período de cerca de 18 meses. Esse modelo de financiamento, condicionado ao sucesso do caso, alinha os interesses de financiador e financiado, garantindo que o risco seja gerenciado com critério e profissionalismo. O caso Underwood não é apenas um estudo de caso para advogados ou investidores em litígios. É uma narrativa de resiliência, inteligência jurídica e sofisticação contratual. É um exemplo claro de como o capital especializado pode servir como ponte entre o direito e a justiça, entre o merecimento jurídico e a capacidade de sustentá-lo até o final. Este precedente representa, em termos práticos, o que o litigation finance pode significar para pequenas e médias empresas: não apenas uma solução financeira emergencial, mas um mecanismo institucionalizado de reequilíbrio de forças. Numa era em que o acesso à justiça está frequentemente condicionado à capacidade de suportar longas e custosas disputas, o capital especializado surge como elo entre a tese jurídica e o resultado (satisfatório) do caso. O litígio comercial, cada vez mais, é também uma arena de engenharia financeira e gestão de riscos. E, nesse campo, entender o modelo contratual, as variáveis econômicas e as implicações jurídicas das operações de funding passou a ser parte essencial do repertório de quem atua com contencioso estratégico, reestruturações e situações especiais. O aprendizado é direto: não basta ter razão - é preciso ter meios para defendê-la. E nesse sentido, o litigation finance deixou de ser uma excentricidade para se tornar uma ferramenta legítima e cada vez mais necessária.
O financiamento de litígios é buscado, em geral, por dois públicos: (i) aqueles que desejam entregar a condução da causa a agentes econômicos preparados para aumentar as chances de sucesso das demandas judiciais; e (ii) aqueles que não possuam recursos necessários, ou não entendem conveniente e oportuno empregar tais recursos, para a condução da demanda judicial. Quando tratamos de financiamento de litígios em relação a esse segundo grupo, uma questão recorrente envolve lidar com partes que não possuem recursos para ajuizar ou dar continuidade a demandas judiciais, sendo comum que quem recorra a esse tipo de expediente esteja em situação de constrição financeira. Nesses casos, as entidades com baixa solvência negociam a cessão de um percentual do sucesso da demanda em troca do desembolso de recursos pelo financiador. Diante disso, surge uma questão: poderia um credor anterior ao financiamento argumentar pela ineficácia dessa operação caso já tenha iniciado uma execução contra a empresa cedente? Sobre a questão, ocorreu uma recente decisão no âmbito do processo 5097018-55.2022.8.13.0024 que me surpreendeu bastante, por configurar fraude à execução uma operação legítima de financiamento de litígios, conforme ementa abaixo: (...) CESSÃO DE CRÉDITOS FUTUROS - OPONIBILIDADE DE EXECUÇÃO JUDICIAL PRETÉRITA - INEFICÁCIA SUPERVENIENTE - Ainda que não haja expressa disposição legal sobre a disciplina do terceiro investidor (litigation finance ou third-party funding), sua prática é reconhecida no mercado (tipicidade social), o que obriga os contratantes à observância dos limites contratuais e seus efeitos, inclusive a oponibilidade perante terceiros, uma vez que o objeto ou bem da cessão de crédito pode ser futuro, mas a cessão, além de conhecida e atual, é superveniente à execução judicial. EXECUÇÃO PENDENTE - CRONOLOGIA DE FATOS E CONTRATOS - FRAUDE CONFIGURADA - Se, da análise do conjunto probatório coligido, afere-se reconhecida pendência de execução judicial, com amplo conhecimento do cedente e do cessionário do crédito, além de manifesto prejuízo à segurança patrimonial do exequente, configura-se fraude à execução, nos termos do art. 792, IV, do CPC". (TJMG. Apelação Cível 5097018-55.2022.8.13.0024 (n. 1.0000.23.268860-6/001), Rel. Des. Marcelo de Oliveira Milagres, 18ª Câmara Cível, j. em 13.08.2024, DJe14.08.2024, grifos nossos). No caso, foi analisada a ineficácia da cessão de crédito realizada em favor de um fundo de investimento por uma empresa que buscava recursos para viabilizar o financiamento de determinada arbitragem. A empresa buscou financiamento como estratégia para viabilizar a continuidade de duas arbitragens em que figurava como parte. Para tanto, celebrou um contrato com um financiador, cedendo a ele um percentual dos direitos creditórios resultantes dos processos arbitrais. A lógica do acordo era simples: caso obtivesse sucesso nas arbitragens, o financiador teria direito a uma parcela do montante recuperado, enquanto a empresa poderia continuar litigando sem comprometer seus recursos imediatos. No entanto, anteriormente a essa operação, credores da empresa ajuizaram uma ação de execução para cobrar dívidas preexistentes. No curso da execução, solicitaram a constrição de valores oriundos dos direitos creditórios cedidos nas arbitragens financiadas, sob o argumento de que a cessão patrimonial teria sido realizada em prejuízo dos credores. Alegaram, ainda, que a transferência dos direitos creditórios impedia que os valores recuperados futuramente fossem direcionados ao pagamento das dívidas da empresa. A situação foi submetida ao TJ/MG, que entendeu que a cessão dos direitos creditórios poderia, de fato, prejudicar os credores preexistentes, pois reduziria os ativos disponíveis para a satisfação da dívida. Naquele caso, o principal argumento para justificar a ineficácia da cessão de direitos judiciais foi que, ao transferir parte do possível proveito econômico da demanda a terceiros, a parte financiada estaria, na prática, reduzindo o patrimônio que poderia ser utilizado para a satisfação da execução preexistente. Na visão do Tribunal: "Ainda que o crédito disputado seja futuro, sob alegada condição suspensiva, a sua cessão é atual, presente, com manifesto prejuízo ao credor-exequente". Apesar de ter sustentado não existir qualquer discussão no plano da validade desse mecanismo de financiamento de litígio, na medida em que se trata de reconhecida prática negocial, o mérito da questão seria cotejar esse mecanismo de financiamento, tendo em vista a proteção do exequente de boa-fé. Conforme decidido pelo TJ/MG, restou configurada fraude à execução, nos termos do art. 792, IV, do CPC. Segundo enfatizado pelo Tribunal, independentemente da incerteza sobre o êxito da demanda judicial financiada, o crédito litigioso representaria um ativo do devedor, e sua cessão poderia ser considerada uma forma de esvaziamento patrimonial quando realizada em detrimento das demandas já existentes. Apesar de a decisão não ser expressamente contrária ao financiamento, entendo que ela deve ser revista. A questão merece aprofundamento e debate, não podendo a conclusão alcançada nesse caso concreto ser aplicada aos casos de financiamento de litígios. O primeiro ponto que deve ser compreendido é que, sem o financiamento, a ação nem sequer seria proposta ou, se já em curso, não teria condições de prosseguir. Sem os recursos do financiador, o crédito litigioso teria valor meramente teórico, pois o demandante não teria meios para custear honorários advocatícios, despesas processuais e garantias exigidas no processo. Assim, o financiamento não subtrai um ativo existente do patrimônio do devedor, mas viabiliza a realização de um ativo que, de outra forma, jamais se concretizaria. Além disso, a cessão pactuada recai sobre um percentual do eventual sucesso da ação. Trata-se de investimento realizado por terceiro de boa-fé (o financiador) para transformar um ativo potencial em ativo real, tendo como contrapartida apenas parte do sucesso alcançado. Ademais, a modalidade mais comum de financiamento não impõe obrigações à parte financiada em caso de insucesso da demanda, o que significa que o financiador assume o risco integral da operação. Assim, o financiamento não agrava a situação de insolvência do devedor, mas cria a possibilidade de incremento patrimonial. Nessa linha, mesmo que a ação seja infrutífera, os credores preexistentes não sofrem prejuízo real, pois nunca tiveram acesso a um ativo concreto antes do financiamento. Logo, não há uma diminuição patrimonial ilícita, mas sim um arranjo contratual que viabiliza uma expectativa legítima de recebimento futuro. Também é importante ressaltar que o financiamento de litígios não se confunde com expedientes fraudulentos destinados a frustrar credores. Pelo contrário, trata-se de um mecanismo amplamente aceito em mercados que incentivam o acesso à justiça e a livre iniciativa. Em muitos casos, a cessão parcial do crédito litigioso é estruturada para garantir que uma parcela significativa do resultado da ação permaneça no patrimônio da financiada, alinhando os interesses do financiador e dos credores preexistentes. O financiamento de litígios desempenha um papel crucial na ampliação do acesso à justiça, especialmente para indivíduos e empresas que, sem esse mecanismo, não teriam condições financeiras de pleitear ou defender seus direitos. Em muitos casos, a impossibilidade de arcar com custas processuais, honorários advocatícios e despesas periciais inviabiliza o ajuizamento de ações ou a defesa em processos de grande complexidade. Desse modo, ao fornecer os recursos necessários para custear essas demandas, o financiamento de litígios permite que partes economicamente vulneráveis possam buscar a reparação de danos, a cobrança de créditos e a defesa de seus interesses, sem que a falta de recursos seja um obstáculo intransponível ao exercício de seus direitos. Além do impacto individual no acesso à justiça, o financiamento de litígios cumpre uma função social e econômica ao equilibrar as condições entre partes em litígios de alto custo, já que, muitas vezes, grandes corporações ou entes públicos possuem recursos para prolongar disputas judiciais indefinidamente, desestimulando litigantes menos capitalizados a buscar o reconhecimento de seus direitos. Sob a perspectiva econômica, o financiamento de litígios também impulsiona a eficiência do mercado jurídico e empresarial, ao transformar ativos ilíquidos - como créditos litigiosos - em oportunidades concretas de recuperação financeira, pois, para pessoas físicas e jurídicas insolventes, esse modelo representa um meio estratégico que permite converter em capital efetivo recursos antes inacessíveis. Assim, o financiamento de litígios não deve ser visto como um expediente que possa configurar fraude à execução, mas sim como um instrumento legítimo de alavancagem de ativos contingentes e acesso à justiça. Diferentemente das situações que configuram fraude contra credores, esse modelo não apenas viabiliza a continuidade do processo judicial, como pode gerar benefícios concretos para todas as partes envolvidas, incluindo os próprios credores dos insolventes, que passam a ter maior perspectiva de recuperação de seus créditos. Como bem sustentado pelo apelante: "1) se não houvesse o financiamento, as arbitragens seriam encerradas e o "direito de ação" (ou "créditos decorrentes das arbitragens") valeria R$0,00; não haveria, portanto, alteração no patrimônio do devedor - o devedor não perderia nada, mas deixaria de ganhar a quantia cobrada nos procedimentos". Portanto, penso que a decisão proferida pelo TJ/MG, ao focar-se no aspecto formal da cessão do direito creditório (o pleito judicial), perde de vista o fato de que, sem o financiamento, o valor efetivo de tal crédito é inexistente. Além disso, tal decisão tem como efeito alocar no financiador um custo elevado de due diligence, além de tornar inacessível, a um sem-número de pessoas que possuem um bom direito, a chance de ter sucesso em seus litígios, simplesmente por estarem em situação de constrição financeira.
quinta-feira, 12 de dezembro de 2024

Financiando Mr. Bates

Assisti recentemente a uma série britânica com quatro episódios produzida pela BBC: Mr. Bates vs. The Post Office. A série retrata a história real de um escândalo no Reino Unido, em que gerentes de agências ("subpostmasters") do Post Office foram alvos de investigações e réus em processos judiciais - criminais, inclusive - por déficits de caixa causados por falhas no sistema de TI conhecido como Horizon. O Horizon, desenvolvido pela empresa japonesa Fujitsu, foi implementado entre 1999 e 2000, tornando-se o software usado para tarefas de contabilidade e controle de estoque, por aqueles gerentes. Ocorre que o sistema Horizon passou a adulterar números e dados nele inseridos, resultando em dívidas de milhares de libras, contraídas em frações de segundos, de forma automática, arbitrária e inexplicável. No papel, estava tudo certo, mas o software calculava um grande déficit, que não correspondia à realidade. Os gerentes entravam em pânico, pois, cientes do balanço diário, deparavam-se com um novo cenário, criado pelo sistema, no qual o caixa da agência simplesmente desaparecia, dando lugar a uma dívida. Foram muitos os casos em que vítimas ligaram para o suporte técnico do Post Office, buscando ajuda, em tempo real, retratando o absurdo que testemunhavam. No entanto, além de não conseguir ajudar, os funcionários do Post Office alegavam que não havia qualquer outro relato parecido, levando aqueles "subpostmasters" a acreditarem que, na verdade, eles haviam "perdido o controle" sobre suas contas. Nesse cenário, os gerentes das agências não tinham opção: ou quitavam a dívida, com dinheiro que muitas vezes não tinham, ou enfrentavam um julgamento e buscavam provar sua inocência e as falhas sistemáticas, com grandes chances de acabarem na prisão, acusados por fraude. O caso é triste, revoltante e considerado, pela CCRC - Criminal Cases Review Commission, a maior série de condenações injustas na história do sistema judiciário britânico1. Mais de 3.000 gerentes de agências postais foram falsamente acusados de desviar dinheiro. Dos condenados judicialmente, alguns foram presos. Muitas vítimas ficaram doentes, tendo sido, inclusive, registrados casos de suicídio. Famílias, reputações e planos foram destruídos. A produção foi aclamada pela crítica, dando voz às vítimas - muitas das quais perderam não apenas seus meios de subsistência, mas também a liberdade, devido a condenações injustas. Também expôs até onde o Post Office foi para frustrar as tentativas das vítimas de obter reparação, defendendo que o Horizon consistia em um sistema "robusto", de modo que as falhas apontadas pelas vítimas representavam, na realidade, erros cometidos pelos próprios usuários do sistema. A série retrata, ainda, a falta de esperança que assolava as vítimas e a questão que se colocava, durante toda a narrativa: como insurgir-se contra o grandioso Post Office? Como ingressar com um litígio coletivo, buscando justiça e reparação, enquanto as vítimas estavam afogadas em dívidas? Alan Bates, líder do movimento, tornou-se herói por sua campanha de duas décadas em busca de justiça. Um dos aspectos interessantes retratados na série é o mecanismo que permitiu que Alan Bates e seus colegas levassem a questão à Justiça: o financiamento do litígio por um fundo. É fato que propor uma ação judicial exige recursos consideráveis - contratação de advogados, peritos, pagamento de taxas judiciais, entre outros. Por isso, antes de se ingressar em uma disputa - especialmente uma longa -, é essencial ponderar os custos, de modo a evitar a interrupção do processo por falta de recursos. É nesse ponto que o financiamento de litígios pode transformar o impossível em possível - especialmente para quem não dispõe de meios financeiros para arcar com os custos para promover uma ação judicial ou não deseja assumir os riscos envolvidos. Assim, os fundos de investimento que eventualmente se interessem pela tese a ser defendida concordam em pagar os custos da ação judicial sob a condição de que, se a reivindicação for malsucedida, eles assumem o prejuízo e o investimento realizado será perdido. Por outro lado, caso a tese sagre-se vencedora, os investidores receberão uma parte do benefício econômico, em montante consideravelmente superior ao que investiram. A série, inclusive, retrata o momento em que o advogado, interessado em assessorar as vítimas e ciente de sua hipossuficiência frente ao Post Office, traz à tona a possibilidade de um fundo financiar o litígio, explicando qual seria o "interesse" do funder naquela demanda e como tanto os subpostmasters, quanto o fundo, poderiam sair vitoriosos. Foi esse o caminho seguido por Alan Bates e seus colegas, obtendo financiamento para a propositura da ação indenizatória que, ao final, resultou em um acordo em que o Post Office se comprometeu a pagar às vítimas uma indenização de £ 57,75 milhões. Quando esse montante foi revelado, instaurou-se um grande debate entre certos articulistas, em razão do valor recebido pelo fundo que financiou a disputa. Em interessante estudo sobre Litigation Funding2 foi possível apurar os seguintes números em relação ao valor da indenização do caso Bates v Post Office: O total da indenização foi de £ 57,75 milhões; £ 22 milhões foram gastos em custos legais e demais despesas conduzir o litígio; £ 24 milhões foi o retorno do investimento pelo fundo; Após deduzidos os £ 46 milhões acima citados, £ 11.7 milhões foram destinados ao pagamento das vítimas, sendo direcionado o montante de £ 22 mil para cada uma das 555 vítimas. Ou seja, conforme o estudo examinado, o retorno efetivo do  fundo foi cerca de £ 24 milhões, representando 41% do benefício econômico auferido pelos autores, o que, segundo o financiador, estava dentro dos limites de mercado, considerando o alto risco envolvido. Embora uma parte relevante tenha sido paga ao financiador, foi o fundo que permitiu que as vítimas recebessem, ao menos, £ 22 mil cada uma, em um litígio de alto risco e que requer advogados qualificados e experientes para conduzi-lo. Como falado, dada a importância do caso - que é considerado um dos maiores escândalos judiciários do Reino Unido -, o montante da indenização pago às vítimas e os custos envolvidos no litígio, o precedente é utilizado tanto por opositores quanto por apoiadores do financiamento de litígios. Um aspecto importante desse debate é considerar que, sem o financiamento de litígios, diversas ações que trazem à luz enormes injustiças, muitas vezes perpetradas por empresas e instituições poderosas e intimidadoras, não seriam viabilizadas. No caso ora tratado, o financiamento do litígio tornou possível que advogados patrocinassem a causa, a verdade viesse à tona e a indenização fosse paga. Fica a dica de série para uma boa maratona de fim de semana: a história promete trazer muitas discussões interessantes sobre o universo de financiamento de litígios, a busca por justiça e a reparação de vítimas afetadas. _____ 1 Disponível aqui. Acessado em 10.12.2024. 2 Dados retirados de MULHERON, Rachael. A Review of Litigation Funding in England and Wales. Queen Mary University of London. Report commissioned by the Legal Services Board, 28.03.2024, pp. 103-104.
Um tema muito recorrente que trato com os fundos de financiamento de litígios refere-se às class actions no Brasil. E, dentro dos diversos temas que acabam surgindo, um recorrente refere-se à questão da legitimidade ativa e representatividade das associações para ajuizarem ações civis públicas, principalmente no que se refere à pertinência temática e representatividade adequada para defesa dos direitos. Nessas discussões, surgiu o seguinte questionamento: os indivíduos potencialmente beneficiados por uma futura sentença a ser proferida na ação civil pública podem dispor ainda na fase de cognição de seus direitos litigiosos com a eventual cessão de crédito para fundos de investimento? Ou a cessão de créditos decorrentes do exercício coletivo de direitos individuais homogêneos seria indisponível por natureza? De modo bastante breve, os direitos individuais homogêneos situam-se ao lado dos direitos difusos e coletivos. O art. 81, do CDC define a natureza de cada um desses direitos do seguinte modo: os direitos difusos são aqueles transindividuais, de natureza indivisível, pertencentes a pessoas indeterminadas, ligadas por circunstâncias de fato; os direitos coletivos, também transindividuais e indivisíveis, pertencem a um grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica comum; por fim, os direitos individuais homogêneos decorrem de uma origem comum. Didaticamente, pode-se exemplificar direitos difusos como o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado1. Já os direitos coletivos podem ser ilustrados pelos direitos dos consumidores de receberem serviços de qualidade das prestadoras de telefonia2. Os direitos individuais homogêneos, por sua vez, emergem da sociedade de massa, em que diversas pessoas indistintas compartilham uma pretensão comum3. Nesse caso, embora não sejam considerados coletivos em sentido estrito, a legislação lhes atribui uma transindividualidade instrumental, com o objetivo de otimizar o acesso à Justiça e promover a economia processual4. A questão central, portanto, reside em compreender se direitos individuais homogêneos, quando ainda na fase cognitiva de uma ação civil pública, são considerados direitos disponíveis ou indisponíveis, bem como determinar se a cessão dos direitos de crédito resultante da violação de direitos individuais homogêneos desnatura a sua qualificação jurídica, impedindo o uso de medidas processuais previstas na lei 7.347, de 24/7/85 ("lei 7.347/85"). Os grandes argumentos no sentido de que na fase cognitiva da ação civil pública o direito individual homogêneo seria indisponível e, portanto, não passível de cessão, seriam os seguintes: os direitos individuais homogêneos resultam de situações que afetam diretamente um grupo de pessoas, sem individualização suficiente para permitir a sua cessão; admitir a cessão, segundo esse entendimento, poderia comprometer a coesão do grupo e prejudicar a tutela coletiva, favorecendo interesses privados e enfraquecendo a defesa judicial conjunta e prejudicando a tutela coletiva que é o cerne dos direitos homogêneos; como a cessão dos direitos homogêneos implicaria na fragmentação do grupo de titulares, quebrando a coesão necessária para a defesa eficaz de seus interesses, o caráter transindividual de tais direitos levaria eles possuírem uma indisponibilidade relativa; no curso das demandas coletivas, é ilícita a cessão dos direitos individuais homogêneos, pois, na forma do art. 286 do CC, "o credor pode ceder o seu crédito, se a isso não se opuser a natureza da obrigação, a lei (...)"; o STJ já decidiu que "o interesse individual homogêneo é um direito individual que acidentalmente se torna coletivo e, pois, indisponível, quando transcender a esfera de interesses puramente particulares, envolvendo bens, institutos ou valores jurídicos superiores, cuja preservação importa à comunidade como um todo";5 apesar de o direito de crédito decorrente da responsabilidade civil do autor do ilícito possuir natureza individual e disponível, na fase cognitiva da ação civil pública tais direitos seriam um bem indivisível para uma multiplicidade de vítimas com interesses convergentes na obtenção de uma condenação, somente adquirindo individualidade e disponibilidade quando passado ao exame das pretensões individuais em fase de liquidação ou de cumprimento de sentença; e o conjunto das posições jurídicas de vantagem que a lei confere aos legitimados extraordinários para propositura de ação civil pública não pode ser simplesmente cedida ou transferida a quem não ostente tal condição. Em resumo, os argumentos acima levariam ao entendimento de que a cessão de direitos individuais homogêneos desnaturaria a qualificação jurídica originária do crédito cedido, uma vez que o cessionário seria um investidor e não os verdadeiros afetados. A consequência de tal operação jurídica seria a perda dos privilégios processuais designados para o processo coletivo, uma vez que o regime processual em nosso direito é de caráter indisponível, fazendo o investidor - detentor dos direitos - não poder utilizar a tutela coletiva, mas sim ir em juízo perquirir o direito de crédito que é titular, dentro dos limites traçados pelo sistema processual ordinário. Tais argumentos, entretanto, não me convencem. As ações civis públicas são um advento processual relativamente moderno em nosso ordenamento jurídico, em que vige a impossibilidade de litigar direito alheio. Quando a lei 7.347/85 foi elaborada, o intuito do legislador era trazer para nosso sistema jurídico o mecanismo que fora previsto na Itália, França, Espanha e outros países de matriz civil law que promoveram tais medidas sob forte inspiração do sistema de litigância coletiva estadunidense - .6 7  Naquele momento, o principal ponto que levou à criação do regime previsto na lei 7.347/85 foi ampliar o acesso à Justiça. Isso porque, em muitos casos aqueles afetados por danos coletivos, sejam os danos a direitos coletivos em sentido estrito ou os individuais homogêneos, nem sempre possuem os melhores meios para fazer valer os seus direitos, pois são em muitos casos hipossuficientes e com reduzida capacidade de articulação institucional. Argumentar que a cessão dos direitos individuais homogêneos levaria à perda do regime processual atinente à tutela coletiva distanciaria na prática o que nosso ordenamento jurídico privilegiou com a criação de ações coletivas para proteção de direitos individuais homogêneos, que justamente ganham conotação coletiva para possibilitar o acesso à Justiça e promover economia processual. Os direitos individuais homogêneos podem ser individualizados e possuem natureza patrimonial. O nosso sistema jurídico permite a livre a cessão deles, desde que não haja restrição legal expressa. Nesse contexto, a cessão de direitos é contrato abstrato, cuja validade e eficácia não dependem do negócio jurídico sub ou sobrejacente que lhe tenha dado causa, razão pela qual o crédito permanece o mesmo, regido pelas mesmas normas de natureza material e processual; o que é modificado é tão somente aquele que o detém. Ainda, o nosso sistema jurídico privilegia a autonomia privada, motivo pelo qual os titulares de direitos individuais homogêneos devem ter a liberdade de dispor de seus direitos como entenderem. A cessão de direitos, nesse contexto, é um exercício legítimo, não existindo um fundamento jurídico para limitar a capacidade dos titulares de ceder esses direitos. Noto, ainda, que a cessão de direitos homogêneos também permite aos titulares que não desejam esperar pelo desfecho do processo ou tenham dificuldades financeiras obterem compensações imediatas através da cessão, promovendo a proteção concreta dos seus interesses. O cessionário dos direitos não interfere na condução do processo, pois o legitimado ativo que moveu a ação coletiva continua a ser responsável pela defesa dos interesses de todos os titulares, incluindo os cessionários. Mesmo que os direitos sejam cedidos, a sentença proferida no processo coletivo continua a beneficiar ou vincular todos os membros do grupo, incluindo os cessionários. A cessão, portanto, não cria um "novo" litígio, somente transferindo o direito de receber os benefícios da ação coletiva. Ademais, sendo os direitos individuais homogêneos cedidos de caráter eminentemente patrimonial, é razoável concluir que o investidor, proprietário do direito, terá seu interesse alinhado com os demais membros do grupo, motivo pelo qual a cessão não representa, em si mesma, um risco para garantia dos interesses do grupo de afetados. O sistema de tutela coletiva em vigor no direito brasileiro não dá conotação de indisponibilidade transitória aos direitos individuais homogêneos, uma vez que a pretensão engloba a faceta patrimonial deles, que possui natureza privada. Assim, coletiva é apenas a forma do processamento da ação. Entender pela indisponibilidade transitória dos direitos individuais homogêneos seria sobrepor os aspectos processuais à materialidade do negócio jurídico celebrado. Um outro fator que contribui para a liberdade da cessão é o fato de que em nosso sistema jurídico a ação coletiva é manejada por um representante institucional previamente definido em lei, diferentemente do estadunidense, que atua sob a premissa de que os membros individuais de uma dada classe conseguem defender os interesses coletivos satisfatoriamente. Essa desvinculação entre a figura do investidor, proprietário do direito de crédito decorrente da pretensão individual homogênea, e o autor da demanda judicial, contribui para a redução dos riscos de captura dos interesses tutelados pelo ordenamento. Afinal de contas, por disposição legal e estatutária, os legitimados ativos para propositura de ações coletivas devem atuar no melhor interesse da classe que defendem, sendo certo que o juiz pode sempre observar a adequação da representatividade no caso concreto, de modo a certificar-se de que os interesses estão sendo bem defendidos. Dessa forma, o problema da representatividade adequada e da correta defesa dos interesses da classe de afetados não é prejudicada pela cessão dos direitos individuais homogêneos, que podem circular livremente, uma vez que possuem destacado caráter patrimonial e são acidentalmente coletivos, cuja transindividualidade é meramente instrumental. Assim, penso que a possibilidade de cessão de direitos individuais homogêneos é algo que, além de estruturalmente fazer sentido em nosso direito, também está alinhado com o interesse que se busca proteger no sistema judicial brasileiro, que é a promoção de acesso à Justiça. Impossibilitar a cessão seria negar vigência aos arts. 286 e 293 do CC, ambos claros ao destacar a regra da livre possibilidade de cessão de direitos e a assegurar que o cessionário do direito cedido possa exercer todos os atos conservatórios necessários para preservar o direito objeto da cessão. ________ 1 Como é o exemplo da Ação Civil Pública proposta pelo Mistério Público de Alagoas, cuidando da contaminação ao Rio Mundaú e ao Complexo Estuarino Lagunar Mundaú-Manguaba, cuja poluição é resultante, dentre outras, do lançamento de esgotos in natura (BRASIL. TRF-5, ACP 0800073-17.2017.4.05.8002, em trâmite perante a 3ª Vara Federal de Alagoas). 2 Um bom exemplo da tutela de direitos coletivos por meio da Ação Civil Pública foi a demanda proposta pelo Ministério Público Federal e o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor - IDEC, em face do Whatsapp LLC e da Autoridade Nacional de Proteção de Dados - ANPD em razão da política de privacidade utilizada pela empresa proprietária da aplicação para comunicação. (BRASIL. TRF-3, ACP 5018090-42.2024.4.03.6100, em trâmite perante a 2ª Vara Cível de São Paulo). 3 Exemplo de Ação Civil Pública visando à proteção de direitos individuais homogêneos é o caso da demanda proposta pela Associação Brasileira dos Portadores da Síndrome da Talidomida - ABPST, que condenou a União a indenizar os afetados pela comercialização do remédio que era usado por mulheres gravidas para combater enjoos. (BRASIL. TRF-3, ACP 0028796-44.2002.4.03.6100, em trâmite perante 20ª Vara Cível de São Paulo). 4 Como é possível notar, existem diversos casos em que sobre um mesmo fato incidirá a tutela de direitos coletivos em sentido estrito, como são os direitos difusos e coletivos, como também dos direitos individuais homogêneos. Para distinguir uns dos outros é necessário que seja verificada a pretensão levada em juízo, nesse sentido, Cf.: CUNHA, Alcides Munhoz da. Evolução das ações coletivas no Brasil. Revista de Processo, vol. 77 jan/mar 1995, p. 224. 5 BRASIL. STJ. REsp nº 1.888.383/RS, Rel. Min. NANCY ANDRIGHI, 3ª Turma, j. 24.11.2020. Note-se que, conquanto a ementa do julgado e a fundamentação do voto da Ministra Nancy Andrighi contenham o trecho indicando a indisponibilidade dos direitos individuais homogêneos para firmar a legitimidade do Ministério Público, a Relatora baseou-se também em outra decisão exarada pelo STJ no âmbito do Agravo Regimental no Recurso Especial nº 1261198/GO, que firma a natureza disponível dos direitos individuais homogêneos, bem como ressalta a competência para atuação do Ministério Público "quando constatada a relevância social objetiva do bem jurídico tutelado", havendo, inclusive, outras decisões do STJ em sentido oposto, Cf.: BRASIL. STJ. REsp nº 1.480.250/RS, Rel. Ministro Herman Benjamin, 2ª Turma, j. em 18.08.2015; BRASIL. STJ. REsp nº 1.033.274/MS, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, 4ª Turma, j. em 06.08.2013; BRASIL. STJ. REsp nº 945.785/RS, Rel. Ministra Eliana Calmon, 2ª Turma, j. em 04.06.2013. 6 Conforme expõe Teori Zavascki, tratando dos antecedentes históricos do nosso subsistema de processo coletivo, Cf.: ZAVASCKI, Teori, Albino. Processo coletivo: tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos - 6. Ed. rev. atual. e ampl. - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014, pp. 29-30. 7 Conforme narra a exposição de motivos do projeto de lei que redundou na promulgação da Lei 7.347/85, Cf.: "(...) o anteprojeto parte do princípio de que há um titular dos direitos subjetivos perfeitamente identificado, e que esse titular é quem tem a legitimidade processual para defender, em juízo, os seus direitos. Mas existem outros interesses que não são individualizados, pois correspondem a um grupo, a uma comunidade ou à sociedade. Nesses casos, não se vislumbra claramente quem é que poderia, em seu próprio nome, defender esses interesses não individuais. Ao Ministério Público como defensor natural do interesse público deve caber, preferencialmente, a titularidade ativa daqueles interesses não individuais, indisponíveis da sociedade, com a conseqüência de poder provo cara atividade jurisdicional, na conformidade, aliás, da Lei Complementar No. 40, de 14 de dezembro de 1981 (Lei Orgânica do Ministério Público) que trata da ação civil pública como função institucional do Ministério Público. (...) Essas entidades são, ao lado do Poder Público, que obviamente tem legitimidade para defender interesses coletivos, as associações que incluam estre suas finalidades, a proteção ao meio ambiente, ao consumidor, ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico, ou a qualquer outro interesse difuso" (BRASIL. Câmara dos Deputados, dossiê do Projeto de Lei 4.984/1985. Disponível aqui.
Nos últimos textos desta coluna, focamos nas questões contratuais envolvidas na negociação para o financiamento de litígios e na compra de direitos creditórios decorrentes desses processos. Hoje, vou discutir um caso que me chamou muita atenção, pois envolve um legal claim adquirido por um Fundo de Investimento em Direitos Creditórios, resultando na responsabilização dos prestadores de serviço dos fundos que compraram esse crédito. O caso é o da Gleba dos Apertados, que abordei em livro recém-lançado, em coautoria com Eli Loria, no qual exploramos os processos sancionadores julgados pela CVM1. A discussão sobre a Gleba dos Apertados começou em 1896, quando o estado do Paraná ingressou com a Ação Ordinária de Reivindicação de Terras nº 696/49, para discutir a propriedade de terras no município de Paranavaí/PR ("Ação Reivindicatória"). Ao final do processo, o estado do Paraná sagrou-se vitorioso, com o reconhecimento de que as terras em Paranavaí pertenciam ao estado, e não aos moradores locais. Apesar de o Juízo da Ação Reivindicatória ter dado ganho de causa para o estado do Paraná, somente ocorreu o início do processo de execução 50 anos após o trânsito em julgado daquela sentença. A demora do estado do Paraná para adotar as medidas cabíveis levou o Juízo responsável pela execução da sentença a reconhecer, em 1951, a prescrição do direito do estado do Paraná de desapropriar os possuidores dos seus terrenos2. A questão foi duramente debatida no judiciário, tendo somente transitado em julgado em 1999, com a declaração, pelo STJ, de que o direito do estado do Paraná de executar a sentença da Ação Reivindicatória estaria prescrito3. Ocorre que o estado do Paraná atuou como se seu direito não tivesse prescrito, tendo, nas décadas de 1940 e 1950, desapropriado diversos moradores de Paranavaí usando força policial. Essa atuação levou os desapropriados a ajuizarem uma nova ação judicial, a Ação de Atentado nº 1095/57, que teve desfecho favorável para eles, reconhecendo as desapropriações como um ato ilícito do estado do Paraná4. Embora tenham sido expulsos de suas casas, os moradores da Gleba dos Apertados não ajuizaram de pronto qualquer medida cabível, tendo, ao longo dos anos, cedido por diversas vezes seus direitos creditórios oriundos daquelas ações judiciais. Os adquirentes desses direitos creditórios, em muitos casos, ajuizaram ações judiciais pleiteando as indenizações ou pedindo para serem habilitados nas ações judiciais originalmente propostas, medidas que restaram infrutíferas. As ações propostas pelos adquirentes dos direitos creditórios foram julgadas de modo improcedente, pois o Judiciário do Paraná entendeu que o direito à indenização também estava prescrito. Apesar disso, a discussão sobre a prescrição do direito à indenização relativamente à gleba dos apertados somente foi endereçada no STJ em 2015. Naquela oportunidade, foi destacado que o direito à indenização dos desapropriados teria prazo prescricional de 20 anos, contados da efetiva desapropriação do possuidor (o que, naquele caso, teria ocorrido em 1940 e não do trânsito em julgado da Ação Reivindicatória, que teria ocorrido em 1999)5. Ocorre que alguns fundos de investimento adquiriram os direitos creditórios decorrentes das disputas judiciais da Gleba dos Apertados, o que levou a CVM a propor acusações, com objetivo de apurar eventuais irregularidades na atuação de gestores e administradores fiduciários. Segundo sustentado pela acusação, os prestadores de serviços essenciais não teriam sido diligentes ao permitirem que direitos creditórios sem validade jurídica e sem substância econômica fossem integralizados nas carteiras dos fundos de investimento, em desacordo com o art. 1º, §1º, da ICVM 444. Nos casos julgados6, o Colegiado da CVM avaliou que seria necessário que os prestadores de serviço contratados pelos fundos adotassem as devidas medidas de análise e investigação das ações judiciais, de forma a compreender o estado daqueles direitos creditórios, quando da sua aquisição. Nos casos em questão, embora a integralização dos direitos creditórios nos fundos tivesse ocorrido com base em pareceres técnicos, contratados para avaliar a pertinência das aquisições, o Colegiado concluiu que tais documentos seriam insuficientes, pois não teriam efetivamente abordado todos os fatos e desdobramentos processuais, relevantes para a tomada de decisão. Um ponto bastante destacado foi justamente a decisão proferida pelo STJ em 2015, que colocou fim a qualquer alegação de viabilidade jurídica dos pleitos indenizatórios propostos no caso Gleba dos Apertados. Inclusive, nenhum dos pareceres acima mencionados, contratados pelos administradores dos fundos, tratou do recurso julgado pelo STJ em 2015, criando a incorreta percepção de que ainda existiria margem para propositura de novas ações, envolvendo a suposta indenização devida e a (não) ocorrência da prescrição. Assim, na visão da CVM, como os direitos creditórios estavam prescritos, o Colegiado compreendeu que seria procedente a acusação formulada, condenando os gestores e administradores dos fundos por inobservância do dever de diligência a que eles se submetem, pois teriam adquirido direitos creditórios que não possuiriam lastro. Por isso sempre digo ser necessário ter muito cuidado na aquisição de legal claims, já que os vendedores geralmente são muito apaixonados por suas causas e apresentam tudo de forma favorável para o detentor do crédito. ___________ 1 Para uma análise completa do precedente, Cf.: LORIA, Eli; KALANSKY, Daniel. Processo Sancionador e Mercado de Capitais IX: Estudo de Casos e Tendências; Julgamentos da CVM. São Paulo: Quartier Latin, 2024, pp. 333-345 e 370-378. 2 TJ/PR. Ação Ordinária de Reivindicação de Terras nº 696/49 - Ação ajuizada pelo estado do Paraná em 1896, cujo objeto consistia na desapropriação de uma área conhecida como "Gleba dos Apertados" em face dos proprietários, à época. Em 1899, após os recursos cabíveis, o pedido foi julgado procedente pelo STF, reconhecendo o domínio do Estado do Paraná sob referidas terras. Contudo, apenas em 1949 o estado do Paraná requereu a execução da sentença. Foram opostos embargos à execução, tendo o Juízo de Direito da 1ª Vara da Fazenda Pública da Comarca de Curitiba reconhecido, em primeiro grau, a prescrição da pretensão executiva, em 1951. 3 STJ. Recurso Especial nº 37.056: O estado do Paraná ingressou com Recurso Extraordinário contra a decisão do Juízo de Direito da 1ª Vara da Fazenda Pública da Comarca de Curitiba, que foi convertido no Recurso Especial nº 37.056. Em 1998, o Recurso Especial foi julgado pelo STJ, que decidiu pelo não conhecimento do recurso. O acordão do STJ, que manteve o reconhecimento da prescrição da pretensão executiva em desfavor do Estado Paraná transitou em julgado 09/06/1999. 4 TJ/PR. Ação de Atentado nº 1059/57: Ação ajuizada pelos sucessores e herdeiros das terras Gleba dos Apertados, contra o estado do Paraná, a fim de obter a devolução dessas terras. Após a interposição dos recursos cabíveis, foi reconhecido o direito de ocupação das terras pelos requerentes. 5 STJ. AgRg no Recurso Especial nº 1.484.529 - PR - "No que interessa ao caso sub judice, verifica-se que, efetivamente, prescreveu o direito da parte em ingressar com ação de indenização por desapropriação indireta, estando a decisão recorrida em consonância com a jurisprudência desta Corte, no sentido de que o prazo prescricional para a propositura da ação por desapropriação indireta é de 20 (vinte) anos (Súmula 119/STJ), tendo como termo inicial a data da efetiva ocupação do imóvel, que, segundo consta dos autos, teria ocorrido nos anos de 1940. Assim, proposta a presente ação em 2011, é inelutável a ocorrência da prescrição". 6 CVM. Processo Administrativo Sancionador CVM 19957.004381/2021-68, Rel. João Pedro Nascimento, j. em 11.04.2023, e Processo Administrativo Sancionador CVM Nº 19957.004318/2021-21, Rel. João Pedro Nascimento, j. em 06.12.2023. As decisões proferidas pelo Colegiado da CVM foram confirmadas pelo Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional, na sessão de 10.09.2024.
Na coluna de hoje, comentarei um pouco sobre a estruturação de modelos que os fundos de investimento podem negociar em uma operação de financiamento de litígios, trazendo aspectos sobre o alinhamento de interesses entre as partes envolvidas. Em uma determinada operação que vivenciei, um cliente tinha uma demanda de US$ 30 milhões contra uma empresa no exterior, porém os custos necessários para o litígio eram bem relevantes, tendo em vista envolver duas jurisdições distintas. Uma das primeiras propostas recebidas de um fundo de investimento interessado em financiar o litígio partia da seguinte estrutura: o fundo destinava um orçamento de até US$ 3 milhões para o litígio e, em caso de sucesso, receberia o maior entre o múltiplo do valor investido (de 1 a 5 vezes, conforme a duração do litígio), ou o percentual do benefício econômico (20 a 40%, conforme a duração do litígio). Além disso, a proposta estabelecia que o fundo teria prioridade em relação ao cliente para receber o valor investido. Na época, uma das grandes objeções do cliente era que, nessa estrutura proposta, havia um potencial desequilíbrio em relação ao processo: caso o litígio levasse pouco tempo e fosse necessário empregar poucos recursos, o fundo teria um retorno grande, porque calculado conforme o benefício econômico; e se, de outro lado, o litígio levasse muito tempo para ser solucionado, e demandasse quantidade expressiva de recursos, o fundo garantiria sua remuneração prioritária (calculada, no mínimo, sobre um múltiplo do valor investido), sobrando poucos recursos para o próprio cliente. Ou seja, se o processo demorasse 4 anos e meio para ser resolvido, o fundo teria 5 vezes o valor investido ou 40% do benefício econômico, o que fosse maior. Imaginando-se no caso concreto, se o cliente fosse bem-sucedido, ganhando a demanda, porém não em seu valor integral (supondo-se, no caso, um sucesso de US$ 20 milhões, e não US$ 30 milhões) após 4 anos e meio (duração em que o múltiplo já seria 5 vezes o valor investido), e tivesse gastado US$ 3 milhões ao longo do litígio, o cliente ficaria com US$ 5 milhões, enquanto o fundo receberia US$ 15 milhões. Se fosse a modelagem apenas pelo percentual do benefício econômico (ou seja, 40%), o cliente ficaria com US$ 12 milhões e o fundo, com US$ 8 milhões. Para elucidar um pouco sobre o alinhamento de interesses e sistemas que podem existir em uma operação de financiamento de litígio, é interessante recorrer a um artigo publicado na Vanderbilt University Law School ("Agency Costs in Third-Party Litigation Finance Reconsidered")1, em que o autor parte de três exemplos de estruturas clássicas, conforme abaixo:   Duração do Litígio   0-12 meses 12-24 meses 24+ meses Retorno do Financiador (Exemplo 1) 15% do benefício econômico 17% do benefício econômico 20% do benefício econômico Retorno do Financiador (Exemplo 2) 2x valor investido 3x valor investido 4x valor investido Retorno do Financiador (Exemplo 3) O maior entre 2x o valor investido e 15% do benefício econômico O maior entre 2,75x o valor investido e 17% do benefício econômico O maior entre 3,35x o valor investido e 20% do benefício econômico O Exemplo 1 é o mais simples: o fundo simplesmente tem um percentual do benefício econômico, se o caso for bem-sucedido, podendo variar numa taxa de 15 a 20%, a depender da duração do litígio. Um alinhamento de interesses é claro: quanto mais o cliente recebe, mais o financiador também recebe. O financiador, em razão do custo do dinheiro no tempo, geralmente busca negociar um percentual crescente, conforme a duração do litígio se estenda. A desvantagem desse modelo para o litigante é que, neste sistema, é indiferente quanto do orçamento do litígio foi gasto. De um lado, o litigante não se preocupará em demandar recursos disponibilizados pelo fundo e, de outro lado, o fundo terá maior benefício quanto menor o valor investido. Visando se proteger contra o eventual uso excessivo do orçamento aprovado para o litígio, o financiador pode se utilizar do modelo previsto no exemplo 2, em que o litigante deverá pagar de volta um múltiplo do valor investido no litígio, se o caso for bem-sucedido. Os múltiplos podem variar de 2 a 4 vezes o valor investido, crescendo conforme a duração do litígio, tendo em vista o valor do dinheiro no tempo. A desvantagem deste modelo é de que o litigante possa ter um incentivo de querer gastar o menos possível, para devolver o menor valor possível para o financiador, podendo afetar a própria estratégia e condução do processo. Para contornar a desvantagem dos dois exemplos anteriores, existe um terceiro modelo que é aquele explicitado no exemplo 3 acima. Neste modelo, o financiador se protegerá dos potenciais desalinhamentos do primeiro e do segundo modelos, uma vez que receberá o maior valor entre o percentual do benefício econômico e o múltiplo do valor investido. Enfim, cada operação é uma situação específica, e a ideia deste artigo foi de apenas dar algumas pinceladas sobre as estruturas possíveis que podem existir na negociação de um financiamento de litígio, apresentando três estruturas clássicas, buscando mostrar os riscos inerentes a cada uma delas. __________ 1  Disponível aqui.
terça-feira, 3 de setembro de 2024

Earn-Out na compra de ativos judiciais

A negociação para a cessão de um ativo judicial não é uma tarefa fácil. De um lado, o vendedor quer receber o menor deságio (maior preço) possível e, de outro lado, o comprador precisa encontrar soluções para precificar determinado ativo judicial que permitam um retorno atrativo ao investimento realizado e certas proteções para eventos e riscos que não estejam sob seu controle, como por exemplo, o tempo de duração do processo, a determinação de valores que ainda sejam controversos na fase de liquidação de sentença, dentre outras variáveis. Uma das formas de precificação e negociação para conseguir alcançar um resultado que atenda as duas partes é realizar a cessão do direito creditório decorrente de uma disputa judicial ou arbitral estabelecendo um preço com um mecanismo de earn-out. Já tive oportunidade de participar de operações de cessão de direitos creditórios envolvendo ativos judiciais em que, para conseguir destravar a operação, a única forma encontrada para dar o conforto para o vendedor foi realizar uma cessão em que o preço era composto por uma parcela inicial e fixa, paga quando da celebração do contrato de cessão, e uma parcela variável e condicionada, vinculada ao tempo e ao valor dos recebimentos pelo comprador. Ainda, foi pactuado um retorno preferencial que estabelecia que, enquanto os valores recebidos pelo comprador fossem inferiores ao valor da parcela inicial paga ao vendedor, corrigido por uma determinada taxa, nada seria devido ao vendedor, a título de pagamento da parcela adicional; porém, tão logo o valor dos recebimentos excedesse o retorno preferencial, o comprador pagaria à título de parcela adicional, um determinado percentual do valor excedente ao vendedor. Dessa forma, o vendedor teria segurança de que, caso o processo fosse resolvido dentro do tempo esperado, bem como os valores controversos fossem devidamente pagos ao comprador, ele faria jus, quando do recebimento, a um valor importante, a título de preço. É isso que chamamos, no jargão da compra de ativos judiciais, fechar uma operação de true sale com earn-out. Para trazer mais concretude para este tipo de negociação de compra de ativo judicial, é interessante comentar um caso de uma empresa de petróleo e gás chamada Rockhopper Exploration plc ("Rockhopper")1. Em 23 de março de 2017, a Rockhopper iniciou um processo de arbitragem internacional contra a República da Itália em relação ao projeto Ombrina Mare. Nessa arbitragem, a empresa buscava indenização, tendo em vista que, em fevereiro de 2016, o Ministério do Desenvolvimento Econômico da Itália não havia realizado a concessão de produção abrangendo o campo Ombrina Mare. Para começar a arbitragem, a empresa obteve um financiamento de um fundo para financiar a disputa. Em 24 de agosto de 2022, o tribunal arbitral decidiu, por unanimidade, que a República da Itália violou as suas obrigações, conferindo à Rockhopper uma indenização de 190 milhões de euros, acrescidos de juros à taxa EURIBOR + 4%, compostos anualmente a partir de 29 de janeiro de 2016, até o momento do pagamento. Entretanto, em 20 de outubro de 2022, a República da Itália apresentou um pedido ao Centro Internacional para a Resolução de Conflitos sobre Investimentos ("ICSID") visando a anulação da sentença, nos termos do artigo 52.º da Convenção ICSID. A República da Itália também solicitou a suspensão provisória da execução da sentença, nos termos do artigo 52(5) da Convenção ICSID. A suspensão provisória impediu a Rockhopper de tomar medidas legais para fazer cumprir a sentença em qualquer jurisdição. A Rockhopper vislumbrou que poderia existir a possibilidade de monetizar este direito creditório decorrente da disputa arbitral e, em 20 de dezembro de 2023, celebrou um contrato de cessão de direito creditório com um fundo com mais de $4 bilhões sob gestão especializado em legal claims ("Fundo"). Nos termos do contrato celebrado, o Fundo pactuou pagamentos em dinheiro, à Rockhopper, em até três parcelas: Parcela 1 - 45 milhões de euros, sendo aproximadamente 19 milhões de euros para a Rockhopper e aproximadamente 26 milhões de euros para o financiador original da arbitragem2; Parcela 2 - pagamento contingente adicional de 65 milhões de euros, devidos após um resultado favorável para a companhia em relação ao pedido de anulação da sentença arbitral. Caso a sentença fosse parcialmente anulada, reduzindo-se o montante do valor da indenização, a Parcela 2 seria reduzida, de modo que os valores da Parcela 1 e da Parcela 2 fossem ajustados para baixo, proporcionalmente. Por exemplo, se o montante da sentença fosse reduzido em 20%, os montantes das Parcela 1 e 2 seriam reduzidos igualmente em 20%3; e Parcela 3 - Pagamento potencial de 20% na recuperação de montantes superiores a 200% do investimento total do Fundo, incluindo custos. O contrato de cessão celebrado com o Fundo trouxe diversos benefícios para a companhia, como, por exemplo: Fortalecimento do balanço patrimonial da Rockhopper, sem diluição para os acionistas; Redução dos riscos da disputa arbitral, mantendo vantagens potencialmente significativas; Remoção dos custos futuros associados à sentença arbitral, tenho em vista que o Fundo cobrirá todos os custos relacionados à arbitragem; monetização do direito creditório ao invés de aguardar o resultado da anulação, o que pode levar alguns anos; e concentração da companhia no seu core business ao invés de drenar energias em uma disputa, permitindo a utilização dos recursos da monetização tanto para o capital de giro, como para as oportunidades de investimentos a serem desenvolvidas pela companhia. Este é um típico caso em que a operação de cessão de crédito de um ativo judicial somente se tornou possível com a implementação do earn-out, de forma que uma parcela do preço ficou atrelada ao resultado favorável do processo, observada a necessidade de um retorno mínimo do investimento realizado pelo Fundo (o que, neste caso, foi estabelecido como 200% do valor investido, de forma que após o pagamento do retorno preferencial, 20% seriam destinados ao vendedor do direito creditório). Não se preocupem que voltarei a falar sobre este caso quando for definitivamente resolvido. Assim que tivermos uma decisão final, poderemos compartilhar com os leitores se o vendedor do direito creditório fará ou não jus aos 20% remanescentes do que exceder o retorno de 200% do investimento feito pelo Fundo. Por enquanto, tanto a Rockhopper, como o primeiro fundo que financiou a arbitragem, já conseguiram monetizar parte do direito creditório. Agora precisamos saber se realmente o Fundo que comprou o direito creditório terá lucro ou não. Acompanhem! __________ 1 Disponível aqui. 2 Como mencionado anteriormente, a Rockhopper celebrara um acordo de financiamento de litígio, em 2017, por meio do qual todos os custos relacionados à arbitragem, desde o início, até a sentença, seriam pagos em seu nome por um financiador especializado em arbitragem. Esse acordo dava ao financiador original o direito a uma proporção de quaisquer benefícios econômicos da sentença ou de qualquer monetização que a companhia viesse a efetuar do referido direito creditório. A Rockhopper celebrou um acordo com o financiador da arbitragem original para pagar 26 milhões de euros dos recursos da Parcela 1 para saldar todas as suas responsabilidades sob o acordo. Além disso, a Rockhopper deveria pagar honorários de sucesso aos advogados, no valor aproximado de 4 milhões de euros, quando do trânsito em julgado da decisão sobre a arbitragem. Depois de efetuar esses pagamentos, a Rockhopper reteria aproximadamente 15 milhões de euros do pagamento da Parcela 1 e 100% de todos os pagamentos das Parcelas 2 e 3. 3 Em qualquer caso, os montantes das Parcelas 1 e 2 nunca seriam inferiores a 45 milhões de euros.
terça-feira, 20 de agosto de 2024

Um pouco do dia a dia de special situations

Estou muito feliz em iniciar, a convite do Migalhas, esta coluna sobre Special Situations. Venho me dedicando há alguns anos a esta área e resolvi aceitar o desafio de compartilhar um pouco do meu dia a dia nesta área tão intrigante, complexa, arrojada e multidisciplinar. Na coluna de hoje vou apenas dar um spoiler de alguns dos temas que pretendo tratar, baseado no que tenho visto e vivido nos últimos anos, para depois periodicamente destrinchar cada um dos temas. Aproveitarei também para, sempre que possível, indicar materiais interessantes de leitura para aqueles que queiram se aprofundar mais no assunto. Inicialmente, e para que estejamos todos na mesma página, é importante falar sobre o que é Special Situation. Trata-se, basicamente, da investimentos em ativos alternativos e de alto retorno financeiro, com elevada complexidade jurídica. A estratégia de Special Situations vem ganhando bastante destaque, principalmente quando falamos em investimentos em ativos judiciais, que possuem características de retornos descorrelacionados com as demais classes de ativos por dependerem justamente de fatores muito particulares para sua realização, como, por exemplo, uma decisão judicial. São inúmeras as formas para realização desse tipo de investimento, de forma que a criatividade é característica fundamental para aqueles que pretendem atuar nesse setor. No Direito de Família, por exemplo, as oportunidades têm sido cada vez mais crescentes para essa classe de investimento. Infelizmente, são muito comuns as brigas nas famílias. Não raro, tenho sido surpreendido com situações em que herdeiros foram alijados da herança, ou casais se divorciaram, mas a divisão não ocorreu dentro dos parâmetros legais. Já tivemos também que examinar casos de reconhecimento de paternidade em que a tábua de salvação, para proporcionar paridade de armas, foi recorrer a fundos de investimento que financiam litígios ou que antecipam créditos de herança para combater grandes disputas familiares. Certamente teremos muitos assuntos para tratar nessa interface que ocorre nas disputas familiares e as oportunidades que se apresentam aos fundos de investimento. Outro assunto que temos vivenciado com os fundos de investimento são situações de recuperação internacional de ativos. Imaginem situações em que um crédito foi inadimplido, porém, sabe-se que o devedor vive muito bem em Miami. Ou, voltando ao Direito de Família, casos em que uma pessoa que se separou nem sabia que o seu cônjuge tinha contas no exterior e apartamentos fora do Brasil que não foram objeto de partilha. Ainda, pensem em situações de empresas que faliram, mas, antes da falência, os sócios desviaram bens para o exterior. Como recuperar todos esses bens em casos envolvendo diversas jurisdições sem poder contar com fundos que financiem tais tipos de litígios? Os litígios coletivos também têm ganhado holofotes para os fundos de investimento. Na esfera do Direito Ambiental, são situações em que danos ambientais tenham ocorrido e provocado prejuízos em determinada região. No Mercado de Capitais, existem casos em que minoritários de companhias abertas tenham sofrido prejuízos. Há vários assuntos que pretendo tratar neste tema, principalmente envolvendo a questão da jurisdição fora do Brasil para este tipo de litígio, o que tem sido objeto de muita controvérsia. Para aquecer os motores e para aqueles que gostam do assunto, em relação aos litígios coletivos já começo com uma recomendação de filme nesta coluna: Dark Waters - O Preço da Verdade. No filme, Robert Bilott (Mark Ruffalo) é um advogado corporativo de defesa, tendo ganhado prestígio trabalhando em casos de grandes empresas de químicos. Quando um fazendeiro chama sua atenção para mortes de gado que podem estar ligadas ao lixo tóxico de uma grande empresa, ele embarca em uma luta pela verdade, em um processo judicial que dura anos. Como combater uma luta destas sem contar com um fundo de investimento que esteja disposto a financiar um litígio complexo como este? Estes são apenas alguns exemplos de temas que pretendo trazer. Há muitos outros ainda para tratar, como discussões envolvendo cessão de crédito trabalhista, disputas privadas, ativos estressados, DIP Financing, oportunidades existentes em massas falidas, operações estruturadas, operações de M&A em situações de distress, aquisição de créditos públicos, precatórios e muito mais. Nesta coluna pretendo trazer diferentes visões, seja sob o prisma do advogado, seja do fundo de investimento, das partes envolvidas e também falar do protagonismo do diretor jurídico, que pode gerar receitas em sua respectiva empresa, junto aos fundos de investimento dedicados a compra de ativos judiciais ou de financiamento de litígios. Tratando de departamentos jurídicos de empresas, recentemente fui convidado para dar uma palestra para uma grande empresa sobre como os fundos de financiamento de litígios poderiam ser úteis para aquela empresa. Para dar a palestra, recorri a uma excelente publicação feita por um fundo de litígios internacional chamada "A Good Offense: The Therium Guide to Creating an Affirmative Recovery Program". A publicação era destinada a educar as empresas e seus departamentos jurídicos sobre a importância de monetizar seus ativos judiciais. De acordo com a publicação, os departamentos jurídicos das corporações mundiais foram criados por necessidade. O departamento jurídico comumente era foi visto como um centro de custos, defendendo processos potencialmente onerosos contra a empresa da forma mais eficiente possível e garantindo que as transações e outras questões contratuais fossem estruturadas adequadamente. Os departamentos jurídicos, no entanto, não costumavam focar em certos litígios, porque os riscos financeiros e outros necessários para rentabilizar o ativo eram considerados demasiado elevados, principalmente em situações com orçamentos mais apertados e com uma maior pressão sobre todos os departamentos. Conforme a publicação, os departamentos jurídicos corporativos têm potencial para se tornarem geradores de receita se conseguirem monetizar com sucesso potenciais litígios como demandante, sugerindo que advogados internos busquem identificar possíveis reivindicações de alto valor e a mitigar uma ampla gama de riscos internos e externos, à medida que formalizam um programa para iniciar litígios do lado do demandante, com recursos provenientes de fundos de investimento para financiar seus litígios. Enfim, são muitos temas que serão tratados nesta coluna envolvendo Special Situations, com a finalidade de compartilhar informação e conhecimento em algo ainda tão novo no Brasil, mas que no exterior tem sido altamente disseminado. Espero que gostem da coluna, pretendo construí-la com textos curtos, porém trazendo o que tenho visto de mais interessante no Brasil e exterior.