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O caso JustFund: Quando a liquidez chega ao Direito de Família

terça-feira, 30 de setembro de 2025

Atualizado em 29 de setembro de 2025 14:08

Maria esperava há mais de três anos o desfecho do seu divórcio. No papel, tinha direito a um apartamento, cotas de uma empresa e aplicações financeiras. Na prática, enfrentava um ex-marido com advogados combativos, acesso a informações privilegiadas e uma estratégia clara: ganhar no cansaço. Enquanto a ação se arrastava, Maria vendia o carro para pagar contas, reduzia despesas ao mínimo e assistia o direito à meação se tornar cada vez mais distante. O direito estava ali, mas inacessível.

Esse cenário é comum. No Brasil, processos de partilha em divórcios litigiosos e inventários costumam levar anos, muitas vezes mais de uma década, quando há disputas acirradas. Para quem não dispõe de liquidez, o tempo se converte em arma: quanto mais longa a espera, maior a pressão para aceitar acordos injustos. Esse é um exemplo emblemático de como a assimetria de recursos influencia o resultado de litígios familiares.

No universo de ativos judiciais, já se consolidou a atuação de fundos que adquirem créditos ou financiam arbitragens e disputas empresariais de grande porte. O raciocínio é simples: antecipar valor sobre um direito futuro, assumindo risco em troca de retorno. O que não se vê tanto no Brasil é a aplicação dessa lógica a inventários e divórcios - exatamente onde ela poderia ter o maior impacto social.

Na Austrália, entretanto, um modelo inovador floresceu. Trata-se da JustFund, o primeiro fundo dedicado exclusivamente a financiar litígios de família. Sua proposta é clara: custear os honorários de advogados e os custos do processo, permitindo que divorciados possam sustentar suas demandas até o fim. O reembolso ocorre apenas ao término do caso, quando há partilha dos bens, e os critérios de avaliação não dependem de histórico de crédito ou renda, mas sim do valor a ser recebido.

Os números impressionam. Desde sua criação, a JustFund já apoiou mais de 2.300 clientes e viabilizou a divisão de aproximadamente 1,3 bilhão de dólares australianos em ativos familiares. Recentemente, obteve uma linha de crédito de 200 milhões de dólares para expandir suas operações. Trata-se, em outras palavras, de transformar um direito ilíquido em liquidez imediata, nivelando forças entre as partes.

No Brasil, a cessão de direitos hereditários e de meação é prevista em lei, desde que observadas certas formalidades, como escritura pública e direito de preferência.

É justamente aqui que o conceito de special situations mostra sua força. O direito à herança ou à meação na maioria das vezes é um ativo ilíquido, de valor significativo, mas que exige tempo e esforço jurídico para se materializar. Fundos especializados podem assumir esse risco, antecipando recursos e viabilizando que a parte vulnerável não seja obrigada a abrir mão do que lhe pertence. Trata-se de aplicar ao Direito de Família a mesma lógica que já se revelou eficaz em disputas empresariais.

Naturalmente, esse movimento exige cuidados adicionais. O Direito de Família lida com bens que possuem forte carga emocional e simbólica. Mas nada disso é impeditivo - ao contrário, são ajustes que podem dar legitimidade a uma atividade de alto impacto social.

A experiência australiana demonstra que é possível conciliar capital e sensibilidade. No Brasil, estamos mais distantes dessa realidade. Mas justamente aí reside a oportunidade. Fundos que ousarem transpor a fronteira do contencioso empresarial para o contencioso familiar poderão ocupar um espaço muito pouco explorado, democratizando o acesso à liquidez em disputas de herança e divórcio. Mais do que um nicho, trata-se de um mercado bilionário, com forte demanda reprimida.

Apenas para falar de um tipo de ação que tem um campo fértil e praticamente inexplorado: as ações de sonegados. Previstas nos arts. 1.992 e seguintes do CC, essas ações são ajuizadas quando um herdeiro oculta bens do espólio, omitindo-os da relação de patrimônio sujeita ao inventário. Trata-se de litígios delicados, pois envolvem acusações diretas entre familiares, frequentemente acompanhadas de provas complexas - transferências bancárias, documentos de propriedade, operações empresariais ocultas.

O valor econômico dessas disputas é expressivo. Não raramente, imóveis de alto padrão, participações societárias ou contas no exterior são discutidos nessas ações. No entanto, a parte que acusa a sonegação muitas vezes não dispõe de recursos para financiar a investigação patrimonial ou custear a produção de provas. A consequência é previsível: o herdeiro que tem liquidez e acesso às informações pode protelar o processo e impor desgaste àquele que busca a verdade patrimonial.

Esse é um típico terreno para a atuação de fundos especializados. Com liquidez antecipada e suporte técnico, herdeiros em posição fragilizada podem sustentar a demanda até o fim, sem ceder a acordos desvantajosos. Mais ainda: a própria diligência investigativa, custeada pelo fundo, pode ampliar as chances de êxito, trazendo à tona bens que, de outro modo, permaneceriam ocultos.

A lógica é semelhante à do JustFund, mas aplicada a uma peculiaridade do Direito Sucessório brasileiro. O herdeiro prejudicado detém um direito claro - receber sua quota-parte sobre a totalidade do patrimônio deixado pelo falecido. O problema é transformar esse direito em realidade, diante de familiares mais fortes economicamente e, muitas vezes, mais bem assessorados juridicamente.

O financiamento de ações envolvendo disputas familiares representaria, assim, uma fronteira inovadora no Brasil: permitir que a Justiça sucessória seja feita de maneira equilibrada, sem que o herdeiro menos favorecido precise abrir mão daquilo que lhe cabe. Trata-se de uma special situation em estado puro: um ativo escondido, de difícil acesso, mas com potencial de valorização extraordinário quando revelado e integrado ao espólio.

Trazer ao país modelos como o JustFund não é apenas uma questão de inovação financeira, mas também de democratização do acesso à Justiça. Divórcios, inventários, disputas familiares mostram que, muitas vezes, a diferença entre receber, ou não, o quinhão devido não está no direito em si, mas na capacidade de sustentá-lo (e a si próprio) ao longo do tempo.

O tempo, no Direito, não é neutro: é uma estratégia. Quem dispõe de liquidez, vence pelo cansaço. Quem não tem, pode nem mesmo chegar à sentença. O desafio - e a oportunidade - está em transformar expectativas jurídicas em ativos líquidos, capazes de devolver equilíbrio a disputas familiares. O exemplo australiano mostra que é possível. Cabe a nós importarmos a lição e adaptá-la, lembrando que, em heranças e divórcios, liquidez também é Justiça.