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O caso Allied: Da quebra de confiança na lei do bem à monetização milionária de créditos tributários

terça-feira, 9 de setembro de 2025

Atualizado em 8 de setembro de 2025 08:46

A seguinte história envolvendo a Allied Tecnologia S.A. mostra como uma política pública pode, em pouco tempo, sair da promessa de desenvolvimento para a arena judicial - e, de lá, se transformar em ativo financeiro de milhões.

Tudo começou em 2005, quando o governo federal instituiu a lei 11.196, a "lei do bem", e criou o Programa de Inclusão Digital. A iniciativa, em poucas palavras, reduzia a zero as alíquotas de PIS e COFINS incidentes sobre a venda de determinados produtos. A ideia era estimular o consumo, expandir o acesso da população à tecnologia, incentivar a indústria nacional e fomentar o mercado.

Para usufruir do benefício, as empresas precisavam atender ao chamado PPB - processo produtivo básico, que demandava a realização de investimentos relevantes em produção nacional e visava o desenvolvimento econômico de determinada região do país - pela criação de novas tecnologias, pela geração de empregos ou pelo estímulo de exportações.

Durante anos, esse programa foi celebrado como um caso de sucesso. Medidas provisórias e leis foram prorrogando sua vigência - que, inicialmente, seria até 31/12/2009 -, tendo sido estendida até 31/12/2018. O discurso era sempre o mesmo: a política geraria crescimento, competitividade e acesso democrático às novas tecnologias.

Foi nesse cenário de estabilidade e previsibilidade que a Allied decidiu dar um passo ousado. A empresa, a partir de junho de 2013, estruturou um plano de expansão agressivo, abrindo 45 lojas e quiosques em shopping centers, em diferentes estados. Assinou contratos de longo prazo, montou estoques milionários, treinou equipes de vendas e desenvolveu estratégias de marketing robustas. Seu modelo de negócios estava intrinsecamente vinculado ao benefício fiscal: a alíquota zero de PIS e COFINS barateava os preços e atraía consumidores, permitindo à companhia crescer rapidamente.

Mas, em setembro de 2015, tudo mudou. O governo editou a MP 690, convertida pouco depois na lei 13.241, e revogou abruptamente os arts. 28 e 29 da lei do bem. Com isso, o benefício, que deveria vigorar até o fim de 2018, não mais seria concedido, a partir de 2016. A justificativa era exclusivamente arrecadatória: a medida prometia reforçar as contas públicas em mais de R$ 6 bilhões, já no exercício seguinte.

Para empresas como a Allied, essa virada legislativa foi devastadora. Planos estratégicos, contratos de longo prazo e investimentos em lojas físicas perderam seu fundamento econômico da noite para o dia. Em termos jurídicos, tratava-se de uma evidente violação ao princípio da proteção da confiança: o Estado induziu o particular a investir, vinculou esse investimento a condições específicas (produção sob o PPB) e, por fim, revogou o benefício, antes do prazo prometido.

Foi nesse contexto que a Allied recorreu ao Judiciário. A companhia ajuizou mandado de segurança para proteger seu direito, até dezembro de 2018, como constava do projeto inicial. A tese construída pela defesa combinava fundamentos constitucionais e tributários, com base, especialmente, na segurança jurídica: não se poderia mudar abruptamente uma política pública que induziu investimentos massivos e impôs específicas e caras condições aos contribuintes.

De início, cabe destacar que a doutrina sempre reforçou esse entendimento. Humberto Ávila discorre acerca do princípio da proteção da confiança, que, a seu ver, "(...) serve de instrumento de defesa de interesses individuais nos casos em que o particular, não sendo protegido pelo direito adquirido ou pelo ato jurídico perfeito, em qualquer âmbito, inclusive no tributário, exerce a sua liberdade, em maior ou menor medida, confiando na validade (ou na aparência da validade) de um conhecido ato normativo geral ou individual e, posteriormente, tem a sua confiança frustrada pela descontinuidade da sua vigência ou dos seus efeitos (...)" (ÁVILA, Humberto. Segurança jurídica: entre permanência, mudança e realização no direito tributário. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 360).

Já Canotilho, defende que segurança jurídica e proteção da confiança são elementos constitutivos do próprio Estado de Direito, estando a segurança jurídica conexionada com elementos objetivos da ordem jurídica: garantia de estabilidade jurídica, segurança de orientação e realização do direito (CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 7. ed. Coimbra: Edições Almedina, 2003, p. 257).

Cumpre também lembrar que o art. 178 do CTN proíbe expressamente a revogação de benefícios fiscais concedidos por prazo certo e sob condição. Nesse sentido, boa-fé objetiva exige coerência entre a conduta estatal e a legítima expectativa criada no contribuinte.

Essa linha encontrou respaldo na jurisprudência do STJ, que, em precedentes recentes - como o REsp 1.845.082/SP e o REsp 1.987.675/SP -, consolidou a interpretação de que benefícios fiscais condicionados e com prazo certo não podem ser revogados antes do fim do período de vigência estabelecido. O Tribunal tem enfatizado que a revogação antecipada viola a confiança legítima e contraria o próprio art. 178 do CTN. Esses precedentes foram incorporados à argumentação da Allied e conferiram robustez à tese.

No âmbito do REsp 1.845.082/SP, a 1ª turma do STJ decidiu que, concedido o benefício fiscal por prazo certo e sob condição, nos termos do art. 178 do CTN, não seria possível sua revogação antes do termo final. O contribuinte que moldou sua conduta ao benefício legal, cumprindo os requisitos impostos, tem o direito de fruí-lo até o fim do prazo estabelecido, sob pena de violação da confiança legítima e da boa-fé do contribuinte, "que aderiu à política fiscal de inclusão social, concebida mediante condições onerosas para o gozo da alíquota zero de tributos".

No mesmo sentido, a 2ª turma do STJ, ao julgar o REsp 1.987.675/SP, concluiu que a exigência de que a empresa se submetesse a um processo específico de produção, bem como a limitação do preço de venda dos produtos, caracterizaria a onerosidade para usufruir da redução da alíquota. Acrescentou-se que deve ser assegurado aos contribuintes envolvidos no Plano de Inclusão Digital a manutenção da desoneração fiscal até o prazo previsto no diploma legal revogado, i.e., 31/12/2018, condicionado à verificação do cumprimento de todas as condições previstas na legislação então vigente.

A companhia, enfim, obteve êxito no mandado de segurança, cuja decisão transitou em julgado, sendo reconhecida a impossibilidade da revogação da desoneração daquelas contribuições sobre produtos eletrônicos comercializados pela Allied.

No âmbito do julgamento da apelação cível, em sede de mandado de segurança impetrado pela Allied, foi frisado que o STJ "tem sedimentado sua jurisprudência no sentido de que a revogação da alíquota zero prevista na lei 11.196/05 (Programa de Inclusão Digital) antes do termo final configura violação ao art. 178, do CTN, em vista das condições onerosas impostas aos varejistas para o gozo do benefício fiscal e da fixação de prazo certo". Com isso, o REsp interposto pela União Federal não foi admitido. O STJ não conheceu do agravo em REsp e o processo transitou em julgado em 22/11/2024.

A vitória abriu caminho para a apuração de um crédito tributário gigantesco: cerca de R$ 540 milhões, em valores nominais, que, atualizados, poderiam alcançar quase R$ 890 milhões.

Era um triunfo jurídico, mas que trazia um novo dilema prático. Como realizar esse crédito? A compensação administrativa não era viável; a via judicial, do precatório, era possível, mas implicava prazos incertos, sujeitos ao calendário orçamentário da União e a riscos de postergação.

Restava a alternativa de ceder os créditos a terceiros, com deságio, em troca de liquidez imediata. A Allied divulgou, através de fato relevante, que, em caso de cessão, estimava a aplicação de deságio de 50% a 70%, conforme patamares usuais para esse tipo de operação no mercado.

Esse dilema é a essência das operações de special situations: ativos juridicamente sólidos, de enorme valor, mas de liquidez restrita. Em julho de 2025, a companhia fez seu movimento. Em fato relevante, comunicou a cessão dos direitos creditórios a um determinado fundo de investimento. Em termos simples, a Allied converteu um crédito judicial em dinheiro no caixa da companhia, ainda que com desconto. O fundo de investimento, por sua vez, adquiriu um ativo robusto, lastreado em decisão transitada em julgado, mas que exigirá expertise financeira e apetite de risco para ser realizado. Em notícia divulgada na imprensa, estimou-se que o contrato celebrado com o fundo seria de R$ 350 milhões.

Esse desfecho marca um precedente importante. Mostra que créditos tributários reconhecidos judicialmente podem ser tratados como ativos negociáveis, aptos a gerar liquidez imediata para as empresas e oportunidades de investimento sofisticadas para fundos especializados em ativos judiciais.

A operação da Allied demonstra como transformar risco jurídico em oportunidade financeira. O que começou como um incentivo fiscal para inclusão digital, evoluiu para um litígio tributário fundado na confiança legítima do contribuinte e no art. 178 do CTN, e terminou como uma operação de monetização de créditos tributários.

No fim, a lição é clara: ativos judiciais podem ter liquidez imediata, desde que haja criatividade jurídica, estruturação financeira adequada e players dispostos a assumir riscos. A Allied fez uma operação que muitas outras companhias, diante de créditos tributários como esse, podem replicar para fortalecer o seu caixa.