Execução trabalhista e os limites impostos na liquidação de sentença
Análise técnica dos limites da liquidação trabalhista, destacando a fidelidade ao título executivo e o papel das partes, do juiz e do perito na execução judicial.
quarta-feira, 9 de abril de 2025
Atualizado às 11:18
Introdução
A liquidação de sentença é fase eminentemente técnica do processo, destinada à apuração do valor da condenação, com base nos parâmetros definidos no Título Executivo Judicial. Trata-se de etapa que, embora possuidora de eminente conteúdo contábil, está submetida a limites jurídicos rigorosos: sendo vedada qualquer rediscussão do mérito da causa ou alteração dos fundamentos do julgado. Ainda assim, é crescente o número de decisões em que se verifica uma verdadeira "ressignificação" do título judicial, operada ora por laudos periciais, ora por sentenças de liquidação que, ao acolhê-los, acabam por subverter o comando definitivo.
Este artigo tem por objetivo discutir os limites da liquidação de sentença trabalhista à luz da legislação, doutrina e jurisprudência, com base em experiência processual concreta, abordando os riscos e prejuízos decorrentes da desvirtuação dessa fase procedimental.
A liquidação de sentença e seus contornos legais
A CLT, em seu art. 879, §1º, é expressa ao determinar que:
Sendo ilíquida a sentença exequenda, ordenar-se-á, previamente, a sua liquidação, que poderá ser feita por cálculo, por arbitramento ou por artigos. (Redação dada pela Lei nº 2.244, de 23.6.1954)
§ 1º - Na liquidação, não se poderá modificar, ou inovar, a sentença liquidanda nem discutir matéria pertinente à causa principal. (Incluído pela Lei nº 8.432,11.6.1992)
O art. 509, §4º do CPC, aplicado subsidiariamente ao processo do trabalho, reforça esse entendimento: "Na liquidação é vedado discutir de novo a lide ou modificar a sentença que a julgou".
A doutrina é uníssona nesse ponto. Cássio Scarpinella Bueno ensina que:
É o §4º do art. 509 que, com absoluta clareza, alberga este entendimento. Segundo o dispositivo, "na liquidação é vedado discutir de novo a lide ou modificar a sentença que a julgou. Entendendo a lide como mérito julgado e, portanto, o reconhecimento de quem deve receber o que a título de tutela jurisdicional, e sentença como qualquer decisão, inclusive a interlocutória que comporte liquidação (é o caso de lembrar, por exemplo, da hipótese de julgamento parcial do mérito art. 356), nada há acrescentar ao dispositivo". (grifo nosso) - Bueno, Cássio Scarpinella, Manual de Direito Processual Civil, Saraiva Jur, 2023, p. 511
Em adição Mauro Schiavi aduz que:
A liquidação não pode ir aquém ou além do que foi fixado na decisão transitada em julgado, sob consequência de nulidade do procedimento e desprestígio da coisa julgada material, cabendo ao juiz velar pelo seu fiel cumprimento. Além disso, a proteção à coisa julgada tem "status" constitucional (artigo 5º, inciso XXXVI, da CF). Nesse sentido é a disposição do parágrafo primeiro do artigo 879, da CLT, abaixo transcrito: "Na liquidação, não se poderá modificar, ou inovar, a sentença liquidanda, nem discutir matéria pertinente à causa principal". (grifo nosso) - Schiavi, Mauro, ASPECTOS POLÊMICOS DA LIQUIDAÇÃO POR CÁLCULOS DE SENTENÇA TRABALHISTA À LUZ DA LEI. 11.232/2005, disponível em: https://www.lacier.com.br/cursos/artigos/periodicos/Aspectos%20polemicos%20da%20liquidacao%20de%20sentenca%20trabalhista%20a%20luz%20da%20lei%2011.232.pdf
Já Valentin Carrion adverte que:
"A sentença exequenda é intocável no processo de liquidação. Só o tribunal em grau superior poderá modificá-la, se não houver trânsito em julgado ou através de ação rescisória. A CLT, art. 879, §1º, diz o mesmo que o CPC/15, art. 509, §4.º (grifo nosso) - Carrion Valentin, CLT COMENTADA, 2021, Saraiva Jus
As lições doutrinárias citadas não apenas demonstram consenso entre processualistas e juristas do trabalho, como reforçam a natureza jurídica vinculante da sentença transitada em julgado. O que se espera da fase de liquidação não é nova interpretação, mas a apuração quantitativa de uma obrigação já consolidada. Essa etapa não admite criatividade hermenêutica nem revisão valorativa.
A fidelidade ao título executivo judicial, portanto, não é mera formalidade ou tecnicismo exagerado: é um imperativo de legalidade, segurança jurídica e respeito à coisa julgada. Ultrapassar esse limite, mesmo que sob o pretexto de tecnicidade contábil, equivale a usurpar o conteúdo de uma decisão definitiva, com prejuízos concretos e deslegitimação do processo como instrumento de pacificação dos conflitos.
Da fixação do quantum debeatur em estrita observância aos elementos e limites do an debeatur
A cisão entre o an debeatur e o quantum debeatur - ou seja, entre o reconhecimento judicial do dever de pagar e a posterior quantificação da obrigação - impõe um limite intransponível: a liquidação não pode modificar a essência do que foi reconhecido no título executivo judicial.
O an debeatur é o produto da cognição jurisdicional. Nele se definem os direitos reconhecidos, a base de cálculo, os reflexos deferidos, a natureza das parcelas e os marcos temporais da condenação. Tudo isso constitui o limite material do que será posteriormente quantificado. A liquidação, portanto, é mero desdobramento técnico do comando judicial, jamais reinterpretação de seu conteúdo.
A prática, no entanto, tem revelado situações em que a liquidação deixa de ser um cálculo objetivo para se tornar uma nova instância interpretativa do julgado. Peritos por vezes substituem bases remuneratórias, excluem reflexos legalmente devidos, alteram marcos de incidência de parcelas e, em certos casos, ignoram completamente os parâmetros definidos na sentença. Tudo isso sob o manto de uma suposta tecnicidade.
O problema não está, portanto, na equação matemática, mas no dado que alimenta o sistema. A conta pode ser exata, mas se parte de um dado alterado - como um padrão interno não constante na decisão, ou a supressão de parcelas explicitamente deferidas - ela se torna juridicamente nula. A fidelidade ao an debeatur é condição de validade da liquidação.
Tal como advertido por Schiavi em citação acima colacionada, a liquidação que inova é nula. E mais: representa desprestígio à coisa julgada e ofensa ao art. 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal. A sentença judicial não é uma sugestão contábil: é um comando impositivo que vincula o perito, o juízo e as partes.
Neste cenário, é dever do magistrado exercer controle sobre a adequação do quantum ao an debeatur, vedando qualquer forma de "ressignificação" do julgado sob o pretexto de maior exatidão ou coerência técnica. O julgador que homologa cálculos que se afastam da condenação imposta incorre em nulidade absoluta e compromete a legitimidade da execução.
O quantum debeatur não é terreno de liberdade criativa: é campo de execução vinculada. E a sua validade está condicionada ao mais absoluto respeito aos elementos do an debeatur já definidos de forma definitiva no título executivo judicial.
A atuação do perito judicial e os limites da função técnica na liquidação
O perito judicial exerce papel de inegável relevância na liquidação de sentença. Sua atuação, ao traduzir em números os comandos jurídicos da condenação, é indispensável para o correto deslinde da fase executiva. No entanto, a importância dessa função técnica não autoriza que ela ultrapasse os marcos jurídicos que delimitam a liquidação.
O perito não é intérprete autônomo do título executivo judicial. Sua atuação é subsidiária, instrumental e subordinada aos comandos estabelecidos no an debeatur. Cabe a ele aplicar parâmetros previamente definidos, jamais inová-los. E é justamente por se tratar de um profissional geralmente não oriundo da formação jurídica que a sua atuação exige um direcionamento rigoroso por parte do juízo.
Na maioria das vezes, o expert é contador, economista ou atuário. Isso implica, necessariamente, que sua compreensão da sentença depende da clareza dos limites impostos e do acompanhamento atento do magistrado. Quando esse acompanhamento é ausente ou insuficiente, o risco de inovação indevida torna-se concreto, sobretudo em decisões homologatórias que deixam de enfrentar objeções técnicas ou que ignoram pareceres fundamentados das partes.
O artigo 156 do CPC reconhece o perito como auxiliar da justiça. E como auxiliar, sua atuação deve estar vinculada aos limites da sentença e à legalidade dos atos processuais. A ausência de formação jurídica não é falha do perito, mas reforço da responsabilidade judicial na condução da liquidação.
Ao juiz incumbe, em especial na sentença de homologação dos cálculos, o dever de velar pelo cumprimento estrito da coisa julgada, rechaçando eventuais desvios técnicos que signifiquem releitura da condenação. O silêncio judicial diante de inovações periciais pode configurar nulidade absoluta, pois autoriza a subversão do título sob a aparência de legalidade técnica.
Portanto, a atuação do perito é essencial, mas nunca autônoma. Ele executa, mas não interpreta. Ele calcula, mas não decide. Sua força está no rigor técnico; sua legitimidade, na fidelidade ao comando judicial. E é sobre o juízo que recai a responsabilidade maior por assegurar que esses limites jamais sejam extrapolados.
Da participação das partes na liquidação do título executivo judicial
A liquidação de sentença não é atividade exclusiva do perito judicial ou do juízo: trata-se de etapa processual em que as partes detêm legítimo e indispensável direito de participação ativa. Esse direito decorre não apenas do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, LV, da CF/88), mas também de dispositivos expressos do Código de Processo Civil.
Nos termos do art. 195 do CPC, "cada parte poderá indicar assistente técnico, que atuará sob a coordenação do perito do juízo". Essa previsão não tem caráter meramente acessório ou decorativo: ela traduz a possibilidade concreta de que as partes contribuam tecnicamente para a apuração do quantum debeatur, oferecendo elementos próprios de cálculo, confrontando premissas adotadas no laudo oficial e propondo bases compatíveis com o título executivo judicial.
O exercício desse direito, ademais, não pode ser esvaziado por decisões que ignorem ou deixem de enfrentar as manifestações das partes. O art. 489, §1º, IV, do CPC, é categórico ao estabelecer que será considerada não fundamentada a decisão judicial que "não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador". Tal omissão, quando ocorre, resulta em nulidade absoluta do julgado.
No contexto da liquidação, isso se revela de forma ainda mais sensível. É comum que reiteradas vezes o assistente técnico da parte, produza cálculos com base em premissas fiéis ao título executivo, que por vezes não foram observadas no laudo pericial. Quando o juízo se limita a acolher os cálculos oficiais sem fundamentar a rejeição dos apontamentos do assistente ou das impugnações apresentadas pelas partes, incorre em ofensa direta à legalidade processual e à garantia do contraditório substancial.
A liquidação de sentença, ainda que técnica, é um procedimento jurisdicional. E como tal, está submetido aos princípios fundamentais do processo. A efetividade da jurisdição não pode se dar às custas da preterição do direito das partes de influenciar na formação do convencimento do juízo, sobretudo em tema tão sensível quanto a quantificação da obrigação reconhecida em título executivo judicial.
Portanto, reconhecer o papel ativo das partes na liquidação é reconhecer o devido processo legal em sua integralidade. Ignorar as manifestações dos sujeitos do processo, especialmente aquelas acompanhadas de fundamentos e pareceres técnicos, não é apenas erro processual: é ruptura com a própria lógica do processo justo.
Do posicioamento jurisprudencial quanto ao procedimento de liquidação de sentença
Este artigo se restringe à análise do posicionamento adotado pelo Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região e pelo Colendo Tribunal Superior do Trabalho quanto aos deveres impostos na fase de liquidação de sentença, especialmente no que se refere à observância estrita ao título executivo judicial.
No âmbito do TRT da 10ª Região, a jurisprudência é firme no sentido de que os cálculos devem respeitar rigorosamente os limites do título judicial, sob pena de nulidade, conforme se exemplifica:
"A liquidação de sentença deve guardar estrita consonância com os termos do título executivo judicial, sendo vedada qualquer inovação ou modificação do comando exequendo."
(TRT da 10ª Região, 2ª Turma, Rel. Des. Gilberto Augusto Leitão Martins, Processo nº 0000314-67.2014.5.10.0011, DEJT 14/05/2021)
"O cálculo deve ser elaborado com base nos exatos limites da condenação. Inovações ou modificações do comando exequendo são vedadas na liquidação, nos termos do art. 879, §1º da CLT."
(TRT da 10ª Região, 2ª Turma, Rel. Des. Pedro Luís Vicentin Foltran, Processo nº 0000962-27.2015.5.10.0004, DEJT 01/12/2020)
"Acolher cálculos que não guardam sintonia com os parâmetros da sentença implica ofensa à coisa julgada e nulidade da execução."
(TRT da 10ª Região, 1ª Turma, Rel. Des. Andre Rodrigues Pereira da Veiga Damasceno, Processo nº 0000429-72.2016.5.10.0005, DEJT 06/10/2020)
"A sentença homologatória de cálculos que distorce o título exequendo revela vício de fundamentação, ensejando nulidade. O juízo deve velar pela exata aplicação do que restou decidido, sem inovação."
(TRT da 10ª Região, 2ª Turma, Rel. Des. Grijalbo Fernandes Coutinho, Processo nº 0000185-13.2016.5.10.0004, DEJT 23/11/2021)
No mesmo sentido é o entendimento já consolidado no Tribunal Superior do Trabalho:
"AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA. INTERPOSIÇÃO SOB A ÉGIDE DA LEI Nº 13.467/2017. EXECUÇÃO. CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS - COTA PATRONAL. DESONERAÇÃO. Na hipótese dos autos, o TRT de origem consignou que " o pedido de isenção do tributo foi expressamente rejeitado na fase de conhecimento, conforme se extrai do acórdão regional, que adotou o entendimento de que o benefício em tela 'não incide sobre as contribuições previdenciárias decorrentes de decisão ou acordo judicial, mas apenas sobre aquelas de âmbito administrativo, decorrentes de contratos de trabalho em curso'. Sendo assim, o Colegiado concluiu que " deve ser observada a autoridade da coisa julgada, bem assim a vedação estabelecida no art. 879, §1º, da CLT ", pelo que decidiu, portanto, em consonância com o artigo 5º, XXXVI, da Constituição Federal. Agravo de instrumento não provido. Processo: AIRR - 0010531-05.2017.5.03.0144 Orgão Judicante: 2ª Turma Relatora: Liana Chaib"
A convergência entre o entendimento do TRT da 10ª região e do TST corrobora tudo o que foi exposto nos tópicos anteriores: a liquidação de sentença não é espaço para revisão do julgado, tampouco para interpretações criativas ou atenuações técnicas de seus comandos.
As decisões acima reafirmam, com clareza, perito, juízo e partes estão vinculados àquilo que foi expressamente decidido no título executivo. Quando essa vinculação é rompida - seja por inovação contábil, exclusão indevida de parcelas, ou pela desconsideração de manifestações técnicas das partes -, viola-se não apenas a coisa julgada, mas o próprio sistema de garantias do processo constitucional.
Dessa forma, o posicionamento jurisprudencial reforça a tese central deste artigo: a liquidação de sentença deve se dar com rigor técnico, sob a vigilância jurídica do magistrado, com participação efetiva das partes e absoluta fidelidade ao título exequendo - sob pena de nulidade e insegurança jurídica.
Conclusão
A liquidação de sentença é etapa que, embora técnica, jamais pode ser dissociada dos limites jurídicos impostos pelo título executivo judicial. O presente artigo buscou demonstrar que o cumprimento da sentença não se resume à realização de operações contábeis, mas exige rigorosa obediência aos parâmetros fixados na decisão transitada em julgado. Ultrapassar tais limites - seja por iniciativa do perito, por omissão do juízo ou por comportamento das partes - compromete a legalidade do processo executivo e fragiliza a autoridade das decisões judiciais.
Ao longo da análise, destacou-se a importância da distinção entre o an debeatur e o quantum debeatur, ressaltando que este último não pode se transformar em novo espaço de debate interpretativo. O perito, como auxiliar do juízo, deve atuar com exatidão técnica, mas sempre dentro dos marcos estabelecidos no comando judicial. A ausência de formação jurídica da maioria dos peritos, longe de desqualificar seu trabalho, apenas reforça a responsabilidade do magistrado em exercer controle ativo sobre os cálculos apresentados, especialmente quando acolhê-los implicar em supressões indevidas de parcelas deferidas.
De igual modo, frisou-se o papel indispensável das partes no processo de liquidação, especialmente por meio de assistentes técnicos e cálculos próprios. A desconsideração de suas manifestações configura não apenas desatenção processual, mas ofensa direta aos arts. 489, §1º, IV, e 195 do CPC, sendo nula a decisão que não enfrente argumentos relevantes apresentados nos autos.
Por fim, com base em julgados selecionados do TRT da 10ª região e do TST, evidenciou-se que a jurisprudência tem convergido com a doutrina e com o texto legal no sentido de blindar a liquidação contra interpretações desviantes. O compromisso com a coisa julgada, com o contraditório efetivo e com a legalidade estrita na execução judicial não é apenas uma exigência técnica: é uma afirmação de respeito à função do Judiciário e de valorização da justiça como instrumento legítimo de pacificação social.
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BUENO, Cássio Scarpinella. Manual de Direito Processual Civil. São Paulo: Saraiva Jur, 2023.
CARRION, Valentin. CLT Comentada. São Paulo: Saraiva Jus, 2021.
SCHIAVI, Mauro. Aspectos polêmicos da liquidação por cálculos de sentença trabalhista à luz da Lei 11.232/2005. Disponível em: https://www.lacier.com.br/cursos/artigos/periodicos/Aspectos%20polemicos%20da%20liquidacao%20de%20sentenca%20trabalhista%20a%20luz%20da%20lei%2011.232.pdf. Acesso em: abril de 2025.