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O "novo" artigo 63 do CPC nos tribunais: a lei 14.879/24 e os posicionamentos quanto à aplicação dos novos requisitos para a eleição de foro

Marcela Melichar Suassuna e Victoria de Souza Musso Ribeiro

A falta de diretrizes transitórias gera incerteza jurídica, evidenciada pelos diferentes entendimentos dos tribunais.

quinta-feira, 24 de abril de 2025

Atualizado às 16:40

O CPC acaba de completar dez anos, mas sua redação já se sujeitou a relevantes alterações desde sua promulgação. Em regra, toda evolução legislativa busca atender as demandas de uma sociedade dinâmica e diversificada e, com isso, promover um ambiente jurídico mais eficaz, que acompanhe as transformações sociais.

Dentre as mudanças no diploma processual, e que talvez seja a mais recente, temos a lei 14.879/24, que modificou a redação do art. 63 do CPC para, nos termos da ementa, "estabelecer que a eleição de foro deve guardar pertinência com o domicílio das partes ou com o local da obrigação e que o ajuizamento de ação em juízo aleatório constitui prática abusiva, passível de declinação de competência de ofício".

As alterações entraram em vigor na data da publicação da lei 14.879/24 e, ante os relevantes impactos sobre a fixação da competência nos contratos em que há cláusula de eleição de foro, logo se deflagraram debates acirrados sobre a sua aplicação e a modulação de seus efeitos, notadamente quanto às ações decorrentes de ajustes celebrados antes da vigência da lei.

As alterações impostas pela nova redação do art. 63 do CPC

No texto original do art. 63, §1º do CPC, bastava que a cláusula de eleição de foro constasse de instrumento escrito e aludisse expressamente a determinado negócio jurídico para produzir efeitos. A lei 14.879/24, ao alterar o referido parágrafo, somou aos dois requisitos tradicionais um terceiro, qual seja, "guardar pertinência com o domicílio ou a residência de uma das partes ou com o local da obrigação, ressalvada a pactuação consumerista, quando favorável ao consumidor".

E a referida lei ainda promoveu a inserção do §5º no art. 63 do CPC, que complementou a alteração do §1º para ressalvar que "O ajuizamento de ação em juízo aleatório, entendido como aquele sem vinculação com o domicílio ou a residência das partes ou com o negócio jurídico discutido na demanda, constitui prática abusiva que justifica a declinação de competência de ofício".

Na prática, a alteração da redação do art. 63, §1º do CPC limitou a escolha do foro às hipóteses previstas no art. 53, III e IV do CPC. E apesar de o art. 63, §3º do CPC já prever, anteriormente, a possibilidade de o juiz reconhecer uma cláusula de eleição de foro como abusiva, a inserção do §5º reforça o entendimento do legislador de ser abusiva a cláusula que não contenha vinculação com domicílio ou residência das partes ou com o negócio jurídico discutido na ação.

Anteriormente à lei 14.879/24, a jurisprudência do STJ se orientou no sentido de que a declaração da invalidade de cláusula de eleição de foro exige a presença conjunta de, ao menos, três requisitos: (i) que a cláusula seja aposta em contrato de adesão; (ii) que o aderente seja reconhecido como pessoa hipossuficiente (de forma técnica, econômica ou jurídica); e (iii) que isso acarrete ao aderente dificuldade de acesso à Justiça (STJ, AgInt no REsp n. 1.707.526/PA, Terceira Turma, DJe 19/6/19).

Segundo o entendimento da Corte Superior, o afastamento da cláusula de eleição de foro dependeria da demonstração de que a hipossuficiência da parte ou a dificuldade de acesso à justiça efetivamente causou prejuízo processual a uma das partes.

A despeito das discussões relativas à motivação para a alteração legal, notadamente ante a redação original do art. 63 do CPC e a interpretação sistemática do diploma processual, fato é que a Lei n.º 14.879/2024 não contou com disposições transitórias, de modo que a modulação dos efeitos da lei causa incertezas desde sua promulgação.

A posição do STJ acerca do marco temporal para a aplicação da lei 14.879/24

Embora sejam claras as implicações da alteração legal promovida pela lei 14.879/24 para a eleição de foro nos contratos firmados após a data de sua promulgação, muito se discutiu quanto à aplicação de seus efeitos sobre as ações ajuizadas antes de sua vigência e sobre as ações ajuizadas após sua vigência, desde que com base em contratos celebrados previamente à sua vigência.

Recentemente, a 2ª seção do STJ se manifestou sobre o tema no âmbito do CC 206.933, entendendo que as novas regras trazidas pela lei 14.879/24 se aplicam aos processos iniciados após a sua vigência. O marco, com isso, seria a data do protocolo da ação: se antes da alteração legislativa, se aplica a redação anterior do art. 63; se após a alteração, se aplica o art. 63 conforme a lei 14.879/24.

A partir da interpretação dos arts. 14 e 43 do CPC, o acórdão privilegiou a propositura da demanda como marco temporal para a aplicação da nova redação do art. 63, §§ 1º e 5º, porque "é somente a partir do ajuizamento e distribuição da demanda que o juiz poderá apreciar a sua competência e, quando identificada abusividade na cláusula contratual, declinar de ofício ao Juízo competente".

Na oportunidade, a Ministra Nancy Andrighi, relatora do conflito de competência, assentou que o art. 63, inclusos o §1º e o §5º, do CPC, tem natureza eminentemente processual e, por isso, não pode ser aplicada "aos processos que estão em curso e cuja competência - pelo foro de eleição - foi prorrogada por inércia da contraparte ou pela incidência da Súmula 33/STJ", nem às "as demandas ajuizadas em momento anterior à sua vigência e nas quais a parte suscitou a preliminar de incompetência".

Ainda no âmbito do STJ, é preciso mencionar a decisão monocrática proferida nos autos do CC 206.709, o Ministro Antonio Carlos Ferreira entendeu pela validade da cláusula de eleição de foro a despeito da alteração legislativa recente, como medida de observância à segurança jurídica e ao ato jurídico perfeito.

Consignou-se na decisão monocrática que "quanto à aplicação da lei n. 14.879/24, deve-se observar o art. 43 do CPC/15 que estabelece a regra da "perpertuatio jurisdicionis" (...) [n]a hipótese dos autos, a competência é relativa, logo a competência é fixada no momento do registro ou da distribuição, não havendo interferência de posteriores modificações de estado de fato ou de direito".

Por essa razão, entendeu aplicável a redação antiga do art. 63 do CPC, uma vez que "prevalece a norma do art. 63 do CPC/15, na redação em vigor quando do ajuizamento da ação, a saber: junho de 2018", concluindo que, no caso sob análise, "a competência territorial para julgamento da demanda motivada em contrato com cláusula de eleição de foro é do Juízo da Comarca livremente escolhida pelas partes contratantes".

Assim, na ocasião, o ministro Antonio Carlos Ferreira consignou que a eleição de foro trata de competência relativa, fixada no momento do registro ou da distribuição, motivo pelo qual posteriores modificações legais não poderiam impactar as ações propostas com base na vigência da lei anterior, em sentido que se coaduna com aquele posteriormente reforçado no julgamento do CC 206.933.

Entendimentos de tribunais pátrios sobre a aplicação da lei 14.879/24

Embora já haja julgados no STJ sobre o tema, ainda não é possível afirmar que há uma jurisprudência uníssona, ou mesmo dominante em um sentido ou em outro. O fato de os julgados não terem caráter vinculante para formação da ratio decidendi (art. 927 do CPC) - mas, no limite, persuasivos - permite que existam orientações diversas quanto ao marco temporal para a aplicação dos efeitos lei 14.879/24.

Ao analisar a questão, a 13ª câmara de Direito Privado do TJ/SP refutou a aplicação da alteração legal no foro eleito já estabilizado, ao entendimento de que qualquer alteração normativa deve respeitar o princípio da irretroatividade das leis processuais (art. 5º, inciso XXXVI, CF e art. 6º, caput, da lei de introdução às normas do Direito brasileiro).

Nesse sentido, o acórdão registrou que "[e]mbora a lei processual tenha aplicação imediata, não pode retroagir para prejudicar direitos adquiridos, atos jurídicos perfeitos ou a coisa julgada" e, no caso em análise, observou-se que "o contrato foi firmado em data anterior à vigência da nova lei, de maneira que, inexistindo tais limitações e atuando as partes de acordo com a autonomia que lhes era então garantida, a cláusula de eleição de foro estabelecida no contrato deve ser reputada válida" (TJ/SP, Agravo de instrumento 2209311-60.2024.8.26.00002, Des. Rel. Ana de Lourdes Coutinho Silva da Fonseca; 13ª câmara de Direito Privado; julgado em 10/9/24).

Em sentido igual, a 36ª câmara de Direito Privado do TJ/SP concluiu que "na espécie os contratos foram celebrados anteriormente à edição do aludido diploma legal, não sendo então por ele afetados ante a vedação à irretroatividade das normas, prevista no artigo 5º, inciso XXXVI, da CF e art. 6º, caput, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro" (TJ/SP; Agravo de instrumento 2299747-65.2024.8.26.00006; Des. Rel. Arantes Theodoro; Órgão Julgador: 36ª câmara de Direito Privado; julgado em 15/10/24).

Dentre os inúmeros precedentes, o TJ/SP assentou que "É incontestável que o respeito ao ato jurídico perfeito configura direito fundamental, assegurado pelo art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal, bem como pelos arts. 6º da lei de introdução às normas do Direito brasileiro e 14 do CPC, que vedam a aplicação retroativa de norma processual em prejuízo de direitos adquiridos" (Agravo de Instrumento 2034393-43.2025.8.26.0000; Des. Rel. Adilson de Araujo; 31ª câmara de Direito Privado; j. em 19/2/25).

De outro lado, há posicionamento diametralmente oposto encontrado nos tribunais. Ainda no âmbito do TJ/SP, a 22ª câmara de Direito Privado entendeu que "regra legal que trata da competência do juízo é puramente processual, de modo que a aplicabilidade é imediata aos processos em curso, respeitados os atos processuais praticados e as situações jurídicas consolidadas sob a vigência da norma revogada (art. 14 do CPC)" (TJ/SP; Agravo de Instrumento 2273235-45.2024.8.26.0000; Des. Rel. Júlio César Franco; 22ª câmara de Direito Privado; julgado em 15/10/24).

Em conflito de competência julgado pelo TJ/DFT, entendendo que "o princípio da imediatidade, positivado no art. 14 do Código de Processo Civil, determina a aplicação imediata da norma processual aos processos em curso, respeitados os atos processuais praticados e as situações jurídicas já consolidadas (situações estas não ocorrentes no caso concreto)", concluiu pela aplicação imediata do "novo" art. 63 do CPC ao caso (TJ/DF, Conflito Negativo de Competência 07292511620248070000 Des. Rel. Fernando Antonio Tavernard Lima, 2ª câmara Cível, j. em 26/8/24).

Como se observa, a jurisprudência ainda é oscilante quanto à aplicação, ou não, da nova redação do art. 63 do CPC a contratos anteriores à alteração legislativa, o que, provavelmente, mudará com a submissão de mais casos aos tribunais brasileiros, sobretudo com mais oportunidades de exame do tema pelo STJ, considerado o seu papel uniformizador da jurisprudência.

Conclusão

A inovação legislativa pela lei 14.879/24, em um primeiro olhar, impacta negativamente na atratividade do Brasil no cenário internacional ao interferir no ambiente de negócios de forma contraditória ao que vinha sinalizando a legislação ao privilegiar a vontade das partes.

De fato, a modificação feita no art. 63 do CPC alterou bruscamente o cerne da eleição de foro e, de imediato, fez florescer debates acirrados sobre o marco temporal para sua aplicação, em que se sopesam a segurança jurídica e a irretroatividade das leis processuais (art. 5º, inciso XXXVI, CRFB e art. 6º, caput, da LINDB).

Nesse contexto, a gama de decisões em sentidos diversos demonstra a complexidade da transição entre as antigas e as novas previsões legais e a necessidade de uma interpretação judicial clara para garantir a segurança jurídica e evitar práticas abusivas nos processos em andamento, o que provavelmente demandará um pronunciamento mais incisivo do STJ.

Como a modificação legislativa é recente e ainda não há precedente de caráter inquestionavelmente vinculante sobre o tema, muito ainda haverá por se discutir quanto à aplicação da nova redação legal. Cumpre, assim, acompanhar a interpretação e posicionamento que decerto serão adotados pelo Poder Judiciário na resolução de disputas tendo este como um dos cernes da controvérsia.

Marcela Melichar Suassuna

Marcela Melichar Suassuna

Mestre em Direito Processual pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). LL.M (Master of Laws) pela New York University School of Law (NYU Law). Graduada em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Advogada.

Victoria de Souza Musso Ribeiro

Victoria de Souza Musso Ribeiro

Especializada em Compliance, Lei Anticorrupção Empresarial e Controle da Administração Pública pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV). Graduada em Direito pela Ufes (Universidade Federal do Espírito Santo). Advogada associada do escritório Salomão Advogados.

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