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Mais cadeiras, menos critério: Por que ampliar o Congresso afronta o Supremo

Artigo analisa proposta que eleva a Câmara a 531 deputados, contrariando a ADO 38 do STF, e discute riscos de sobrecarga fiscal e crise de legitimidade na representação proporcional.

terça-feira, 13 de maio de 2025

Atualizado em 12 de maio de 2025 13:47

Introdução

Em 6/5/25, a Câmara dos Deputados aprovou, por expressiva maioria, o requerimento de urgência para o projeto de decreto Legislativo 327/23, que propõe elevar de 513 para 538 o número total de deputados Federais. A justificativa formal alude à necessidade de adequar a representação parlamentar aos dados do Censo 2022. Ocorre, porém, que a recente decisão do STF na ADO 38/DF - proferida em agosto de 2023 - reconheceu apenas a mora legislativa na redistribuição das cadeiras já existentes, determinando que o Congresso ajustasse, até 30/6/25, a quota de cada unidade federativa sem ultrapassar o limite de 513 assentos. Em caso de inércia, a Corte atribuiu competência subsidiária ao TSE para efetuar a redistribuição, igualmente respeitando esse teto.

Não há, portanto, qualquer respaldo na ratio decidendi do STF para a ampliação do total de cadeiras. Ao contrário, o Tribunal partiu de um modelo de soma zero: remanejar vagas de estados super representados para aqueles cujo crescimento populacional clama por maior voz legislativa. A iniciativa parlamentar de criar 25 novos assentos, além de deslocar o debate do eixo constitucional delineado na ADO 38, suscita questões sobre legitimidade democrática, impacto fiscal e coerência institucional. Este artigo examina criticamente esse descompasso, investigando os fundamentos constitucionais da representação, os limites impostos pela decisão do STF e as implicações políticas e orçamentárias de um eventual aumento do número de deputados Federais.

Quem são os Estados sub-representados?

A CF/88 consagra, em seu art. 1º, parágrafo único, o princípio de que "todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos". Tal premissa estrutura a lógica da democracia representativa e condiciona o funcionamento dos poderes da República. A representação proporcional na Câmara dos Deputados, por sua vez, é regida pelo art. 45, que assegura a proporcionalidade da população de cada Estado e do Distrito Federal como critério distributivo das cadeiras.

Não obstante a rigidez formal da CF, o número absoluto de parlamentares pode ser ajustado por meio de decreto legislativo, respeitando os limites estabelecidos no art. 45, §1º - número mínimo de oito e máximo de setenta deputados por unidade federativa. A proposta de aumento do número de deputados tem como principal argumento a atualização da representação com base nos dados do Censo Demográfico de 2022, realizado pelo IBGE. A defasagem na revisão do número de cadeiras por Estado - o último ajuste ocorreu em 1993 - demonstra o descompasso entre a evolução populacional dos entes federativos e sua representação na Câmara.

De fato, Estados com crescimento demográfico acentuado permanecem sub-representados, enquanto outros mantêm sua bancada inalterada, mesmo com estagnação ou queda populacional. Vejamos:

  • Santa Catarina: Com aproximadamente 7,6 milhões de habitantes, tem hoje 16 deputados Federais. Pela proporcionalidade atualizada, deveria ter 18 ou 19.
  • Amazonas: Com cerca de 3,9 milhões de habitantes, mantém apenas 8 deputados - o mínimo constitucional. Deveria ter pelo menos 10, dado seu crescimento populacional acelerado nas últimas décadas.
  • Pará: Com 8,1 milhões de habitantes, tem 17 deputados, enquanto Estados menos populosos, como o Rio Grande do Sul (com população inferior), possuem 31 cadeiras.
  • Goiás: Estado que superou 7,3 milhões de habitantes, ainda permanece com apenas 17 representantes.
  • Distrito Federal: Com cerca de 3 milhões de habitantes, tem 8 deputados - o mesmo número do Amapá, Roraima e Acre, que têm populações inferiores a 1 milhão.

Em contrapartida, Estados como Alagoas, Piauí, Sergipe, Acre, Roraima e Amapá estão super-representados, beneficiados pelo piso mínimo de oito deputados Federais. Por exemplo: Acre (830 mil habitantes), Roraima (636 mil habitantes) e Amapá (733 mil habitantes) - todos com 8 deputados. Comparando com Distrito Federal (3 milhões), Amazonas (3,9 milhões) e Espírito Santo (4,1 milhões), evidencia-se o desequilíbrio.

Antecedentes: Decisões do STF sobre a (re)distribuição de cadeiras na Câmara e o papel do TSE

Em abril de 2013 o TSE editou a resolução 23.389, redesenhando as bancadas de 13 unidades da Federação com base no Censo 2010, sem alterar o total de 513 deputados. Governadores, Assembleias e o próprio Congresso impugnaram o ato. Em junho de 2014, no julgamento conjunto das ADIns 4.963,4.965 e outras, o STF declarou inconstitucional a resolução, afirmando que apenas LC emanada do Congresso pode definir o número de cadeiras e sua distribuição proporcional- o que tornou sem efeito a intervenção da Justiça Eleitoral. Tentou se modular (para deixar a resolução valer apenas a partir das eleições de 2014), mas não houve quórum qualificado; logo, a regra geral (efeitos retroativos - extunc) prevaleceu. Assim, continuaram vigentes as bancadas definidas antes da Res.23.389/13 (distribuição usada nas eleições de 2010).

A virada de 2023

Quase uma década depois, o Governo do Pará ajuizou a ADO - Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão 38, alegando que o Congresso ignorava o mandato constitucional de revisar a representação à luz dos censos. Em 25/8/23 o STF, por unanimidade e voto do relator ministro Luiz Fux, reconheceu a mora legislativa e fixou duas determinações principais: o Congresso deveria aprovar, até 30/6/25, lei complementar que adeque a distribuição de cadeiras ao Censo 2022. Se o prazo não for cumprido, caberá ao TSE definir, até 1/10/25, o número de deputados de cada Estado (entre 8 70), para vigorar a partir da legislatura 2027.

A decisão, porém, deixou latente o problema de representatividade - que retornaria ao debate público com o Censo 2022 e, agora, com o projeto de decreto Legislativo 327/23. Importante salientar que o STF não "aumentou" o total de deputados, mas condicionou o Congresso a legislar com base no número originário; caso contrário, devolve se ao TSE uma competência subsidiária e excepcional, agora por ordem judicial. A Corte adotou, na prática, uma "sentença construtiva" típica dos casos de omissão inconstitucional.

ADO 38 e o obstáculo constitucional ao aumento de cadeiras

O voto do relator Luiz Fux, que formou a maioria na ADO 38/DF, descreveu a "omissão clara e evidente" do Congresso em revisar a proporcionalidade das bancadas e registrou que, para corrigir a sub representação de Estados com crescimento populacional, "necessariamente se terá de reduzir o número de assentos para outros" - o que gera um "verdadeiro entrave federativo". Com isso, o STF reconheceu a mora legislativa, mas fixou prazo (30/6/25) apenas para que o Legislativo redistribua as cadeiras "hoje existentes", preservando o teto de 513 deputados definido pela LC 78/1993.

Além disso, determinou que, se o prazo não for cumprido, caberá ao TSE definir, até 1/10/25, o número de representantes de cada unidade federativa, "observado o número total de parlamentares previsto na LC 78/93" - isto é, sem aumento do total. 

A ratio decidendi da decisão, portanto, parte de um jogo de soma zero: acrescentar cadeiras a um Estado implica subtrair de outro, pois o total de 513 é tomado como dado constitucional legal. O projeto em discussão na Câmara (PDL 327/23), que pretende elevar esse total para 538, contorna justamente o dilema apontado pelo STF - evitando perdas ao simplesmente criar novos assentos - mas não encontra amparo no fundamento do julgamento, que se limitou a ordenar a redistribuição e não a expansão do Legislativo.

Em síntese, enquanto a ADO 38 exige a correção da distorção populacional dentro do limite já existente, o movimento político atual visa alterar o próprio referencial numérico, afastando se da lógica decisória firmada pelo Supremo.

Os projetos legislativos já apresentados: Da redistribuição à proposta de criação de novas vagas

A discussão sobre representação proporcional entrou na agenda do Congresso ainda em 2023, quando foi protocolado o PLP 148/23 (deputado Pezenti). O texto limitava se a recalcular as bancadas dentro do teto de 513 cadeiras, aplicando ao Censo 2022 o método dos quocientes populacionais, sem que nenhum estado ficasse abaixo de oito nem acima de setenta deputados. O art. 1º já exibia a nova tabela completa, enquanto a justificativa reiterava que "não se propôs alteração" do total de parlamentares, justamente para cumprir a ratio decidendi do STF nas ADIns que vedaram regulamentação por resolução do TSE.

Com o avanço da ADO 38/DF no Supremo - que reconheceu a mora legislativa, mas pressupôs um jogo de soma zero - ganhou força, dentro da Câmara, a ideia de evitar perdas regionais por meio de acréscimo moderado de vagas. Em fevereiro de 2025, o presidente da Casa, deputado Hugo Motta, defendeu um acordo político institucional com Senado e STF para elevar o total de 513 para 527 deputados, isto é, criar 14 novas cadeiras e "compensar" os Estados que, de outra forma, perderiam representação. Esse balão de ensaio abriu caminho para iniciativas legislativas mais ambiciosas.

A principal delas foi o PLP 177/23, de autoria da deputada Dani Cunha. Originalmente concebido como simples alteração da LC 78/1993, o projeto transformava o número atual (513) de limite máximo em piso mínimo, permitindo aumentos futuros sempre que a demografia assim exigisse. Ao assumir a relatoria, o deputado Damião Feliciano apresentou um substitutivo que, em vez de cláusula aberta, cravou imediatamente o acréscimo de 18 vagas, totalizando 531 deputados a partir das eleições de 2026, sem subtrações de bancadas estaduais.

O substitutivo foi submetido a regime de urgência e aprovado em 6/5/25 por 270 votos a 207, com impacto fiscal anual estimado em R$ 64,6 milhões segundo a Diretoria Geral da Casa. A arquitetura do texto preserva todos os Estados que hoje superam a cota populacional - Rio de Janeiro, Paraíba, Bahia, Piauí, Rio Grande do Sul, Pernambuco e Alagoas - e distribui as 18 novas cadeiras entre nove entes sub representados: Pará e Santa Catarina (4 cada), Amazonas e Mato Grosso (2 cada), Rio Grande do Norte, Paraná, Ceará, Goiás e Minas Gerais (1 cada).

Do ponto de vista constitucional, o movimento representa uma mudança de paradigma: desloca se do comando do STF - que exige mera redistribuição - para a criação de espaços legislativos adicionais, contornando o "entrave federativo" destacado no voto do relator Luiz Fux. O texto segue agora para o Senado Federal, onde precisará de maioria absoluta em dois turnos, além de eventual mediação com o próprio Supremo caso o aumento seja questionado por violar a ratio decidendi fixada na ADO 38.

Em resumo, a tramitação revela três caminhos simultâneos: (i) o modelo estritamente proporcional do PLP 148/23, fiel à jurisprudência da Corte; (ii) a proposta de ampliação moderada (527 cadeiras) que ainda circula nos bastidores; e (iii) o substitutivo do PLP 177/23, já aprovado na Câmara, que institucionaliza um salto para 531 parlamentares. O desfecho agora depende da convergência (ou colisão) entre essas alternativas, do cálculo político dos senadores e da eventual reavaliação do STF quanto aos limites de sua própria decisão.

Kaleo Dornaika

Kaleo Dornaika

Advogado. Mestre em Direito pela Universidade de São Paulo.

Pedro Sberni Rodrigues

Pedro Sberni Rodrigues

Advogado. Graduado e Mestrando em Direito pela FDRP - USP e Assessor Jurídico no TCM-SP. CECIL - Universität Passau, 2022.

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