STJ: Impenhorabilidade de até 40 salários mínimos não é mais automática
STJ muda jurisprudência: impenhorabilidade de até 40 salários mínimos (R$ 56.480) não é mais automática. Devedores devem requerer proteção ativamente. Favorece credores mas fragiliza direitos.
quinta-feira, 24 de julho de 2025
Atualizado às 15:08
O STJ promoveu uma mudança significativa na jurisprudência brasileira ao decidir, no Tema repetitivo 1.235, que a impenhorabilidade de valores até 40 salários mínimos não é mais matéria de ordem pública e não pode ser reconhecida automaticamente pelo juiz. A decisão representa uma virada na proteção patrimonial dos devedores e impacta diretamente milhões de brasileiros endividados.
A Corte Especial do STJ, sob a relatoria da ministra Nancy Andrighi, estabeleceu uma tese que rompe com o entendimento anterior da própria Corte e transfere ao devedor a responsabilidade de requerer ativamente a proteção de seus recursos essenciais. Essa mudança jurisprudencial, consolidada através dos REsp 2.061.973/PR e 2.066.882, tem gerado intenso debate no meio jurídico sobre seus impactos no direito fundamental ao mínimo existencial.
A mudança de paradigma
Até a decisão do Tema 1.235, o entendimento consolidado no STJ era de que os juízes deveriam reconhecer de ofício a impenhorabilidade de valores até 40 salários mínimos depositados em contas bancárias, seguindo o princípio da proteção ao mínimo existencial. Essa proteção automática funcionava como uma salvaguarda para garantir que os devedores mantivessem recursos suficientes para suas necessidades básicas, mesmo durante processos executivos.
A nova tese estabelecida pela Corte Especial inverte completamente essa lógica. Agora, a impenhorabilidade de quantia inferior a 40 salários mínimos, prevista no art. 833, inciso X, do CPC, é considerada uma regra de direito disponível do executado, não possuindo natureza de ordem pública. Na prática, isso significa que o devedor deve manifestar-se ativamente nos autos para garantir a proteção de seus recursos, não podendo mais contar com a intervenção automática do magistrado.
A ministra Nancy Andrighi, relatora da matéria, fundamentou sua decisão argumentando que a impenhorabilidade constitui uma faculdade do devedor, que pode inclusive escolher renunciar a esse direito caso deseje quitar uma dívida. Segundo esse entendimento, não caberia ao juiz "advogar em prol do devedor", devendo este assumir a iniciativa de proteger seus próprios interesses.
Fundamento legal e procedimento
O art. 833, inciso X, do CPC estabelece como impenhorável "a quantia depositada em caderneta de poupança, até o limite de 40 (quarenta) salários-mínimos". Complementarmente, o artigo 854 do mesmo diploma legal determina um procedimento específico para que o devedor conteste bloqueios judiciais, concedendo-lhe o prazo de cinco dias para provar que se trata de verba impenhorável.
A controvérsia interpretativa surgiu justamente da aparente tensão entre esses dois dispositivos. Enquanto o art. 833 estabelece a impenhorabilidade como regra geral, o art. 854 prevê um rito para que o devedor afaste o bloqueio, sugerindo que a proteção não seria automática. O STJ optou por privilegiar a interpretação que valoriza o procedimento previsto no art. 854, exigindo manifestação ativa do devedor.
Com a nova jurisprudência, quando houver bloqueio de valores em contas bancárias através do sistema Bacenjud (Banco Central) ou outros meios de constrição judicial, o devedor terá o prazo de cinco dias para se manifestar nos autos, demonstrando que os valores bloqueados são impenhoráveis por se enquadrarem no limite de 40 salários mínimos e possuírem natureza essencial à sua subsistência.
Valor atual da proteção e abrangência
Com o salário mínimo atual fixado em R$ 1.412,00, a proteção legal alcança valores de até R$ 56.480,00. Esse montante, embora significativo, deve ser analisado no contexto das necessidades familiares e do custo de vida atual, especialmente em grandes centros urbanos onde esse valor pode representar apenas alguns meses de despesas básicas.
A jurisprudência do STJ já havia expandido a proteção além das tradicionais contas poupança, estendendo-a para valores mantidos em conta corrente, fundos de investimento e até mesmo papel-moeda, desde que demonstrado seu caráter de reserva para situações emergenciais. Essa extensão permanece válida, mas agora depende da iniciativa do devedor para ser reconhecida.
Paralelamente ao Tema 1.235, o STJ está julgando o Tema 1.285, que busca definir com maior precisão quais modalidades de aplicação financeira estariam protegidas pela impenhorabilidade. A ministra Maria Thereza de Assis Moura propôs uma tese que distingue entre aplicações com características de reserva continuada e duradoura (protegidas) e investimentos especulativos de alto risco (desprotegidos). O julgamento foi suspenso após pedido de vista da ministra Isabel Gallotti, demonstrando a complexidade e relevância da matéria.
Impactos para os devedores
A mudança jurisprudencial traz consequências práticas significativas para os devedores brasileiros. O principal impacto é a perda da proteção automática, exigindo que os devedores estejam atentos aos processos judiciais em que figuram como executados e se manifestem tempestivamente quando houver bloqueios de suas contas.
Especialistas em direito processual alertam que essa mudança pode ser particularmente prejudicial para devedores em situação de vulnerabilidade social ou econômica. Muitos devedores não possuem conhecimento jurídico suficiente para compreender a necessidade de se manifestar nos autos, nem recursos financeiros para contratar advogados que os orientem adequadamente.
João Pedro Ramos Garcia, advogado especialista em execuções, observa que a decisão do STJ não considerou adequadamente o desequilíbrio entre as partes processuais. Enquanto credores geralmente possuem estrutura jurídica robusta e recursos para acompanhar processos, os devedores frequentemente encontram-se em situação de fragilidade, sem condições de exercer plenamente seus direitos processuais.
Outro aspecto preocupante é o risco de privação temporária de recursos essenciais. Mesmo que o devedor se manifeste dentro do prazo legal, o processo de análise e eventual desbloqueio pode demorar semanas ou meses, período durante o qual a pessoa pode ficar sem acesso a recursos fundamentais para sua sobrevivência e de sua família.
Vantagens para os credores
Do ponto de vista dos credores, a decisão do STJ representa um avanço significativo na efetividade dos processos executivos. A eliminação da proteção automática reduz substancialmente o número de bloqueios que são desconstituídos de ofício pelos juízes, agilizando a satisfação dos créditos.
Renata Cavalcante de Oliveira, especialista em recuperação de crédito, defende que a decisão está em conformidade com a sistemática legal, uma vez que o art. 833 do CPC não menciona expressamente que a impenhorabilidade seria matéria de ordem pública. Segundo essa visão, a lei atribui claramente ao devedor a incumbência de provar a impenhorabilidade do bem constrito, concedendo prazo específico para essa finalidade.
A mudança também promove maior segurança jurídica para os credores, que podem contar com maior previsibilidade nos processos executivos. Ariane Cristina Bellio, especialista em recuperação de créditos, destaca que a nova orientação assegura celeridade e eficácia aos processos executivos, protegendo o direito dos credores em buscar o cumprimento efetivo de suas garantias.
Críticas à decisão
A decisão do STJ tem enfrentado críticas consistentes de parte significativa da doutrina e da advocacia especializada em direitos do consumidor e defesa do devedor. O principal argumento contrário é que a mudança jurisprudencial fragiliza o direito fundamental ao mínimo existencial, princípio constitucional que deveria ser protegido independentemente da iniciativa das partes.
Thiago Hamilton Rufino, da banca Rufino Advocacia, argumenta que o entendimento do STJ contraria a intenção do legislador, que na redação do art. 833 do CPC buscou garantir ao cidadão em dificuldades o mínimo necessário para o custeio de despesas básicas. Segundo essa perspectiva, exigir manifestação ativa do devedor representa um retrocesso na proteção social.
Daniela Poli Vlavianos, do escritório Poli Advogados & Associados, alerta para os riscos práticos da decisão. Na sua avaliação, ao depender de manifestação do devedor para reconhecimento da impenhorabilidade, a decisão judicial pode implicar privação temporária de recursos essenciais, até que o devedor consiga apresentar defesa e obter resposta judicial favorável.
A crítica mais contundente refere-se ao fato de que muitos devedores encontram-se em situação de dificuldade justamente por condições adversas como desemprego, problemas familiares ou questões de saúde. Nesses casos, a exigência de atuação processual ativa pode representar uma barreira intransponível para o exercício de direitos fundamentais.
Orientações práticas
Diante da nova realidade jurisprudencial, os devedores devem adotar algumas medidas preventivas e reativas para proteger seus direitos. Primeiramente, é fundamental manter-se informado sobre processos judiciais em que figura como executado, acompanhando regularmente a movimentação processual através dos sistemas eletrônicos dos tribunais.
Quando houver bloqueio de valores em contas bancárias, o devedor deve reagir imediatamente, preferencialmente com auxílio de advogado especializado. A manifestação deve ser fundamentada, demonstrando que os valores bloqueados não excedem 40 salários mínimos e possuem caráter essencial para a subsistência do devedor e de sua família.
É recomendável manter organizada a documentação que comprove a origem e destinação dos recursos, especialmente quando se trata de verbas salariais, benefícios previdenciários ou outras rendas de natureza alimentar. Extratos bancários, comprovantes de renda e documentos que demonstrem as despesas familiares essenciais podem ser fundamentais para sustentar o pedido de desbloqueio.
Para devedores em situação de vulnerabilidade econômica, é importante buscar auxílio da Defensoria Pública, que possui atribuição constitucional para prestar assistência jurídica integral e gratuita aos necessitados. A Defensoria pode orientar sobre os procedimentos adequados e representar o devedor nos processos judiciais.
Perspectivas futuras
A decisão do STJ no Tema 1.235 certamente não representa o fim da discussão sobre a proteção do mínimo existencial em processos executivos. A matéria continua em evolução, especialmente com o julgamento pendente do Tema 1.285, que pode trazer novos contornos para a aplicação da impenhorabilidade.
Existe também a possibilidade de que a questão seja levada ao STF, especialmente se houver argumentação consistente de que a decisão do STJ viola princípios constitucionais fundamentais como a dignidade da pessoa humana e o mínimo existencial.
No âmbito legislativo, a controvérsia pode motivar propostas de alteração do CPC para tornar mais clara a intenção do legislador quanto à proteção automática ou não dos valores até 40 salários mínimos. Uma eventual reforma legislativa poderia pacificar definitivamente a questão.
Conclusão
A mudança jurisprudencial promovida pelo STJ no Tema 1.235 representa um marco na evolução do direito processual executivo brasileiro. Embora possa trazer maior eficiência aos processos de recuperação de crédito, a decisão também levanta questões importantes sobre o equilíbrio entre os direitos dos credores e a proteção fundamental dos devedores.
A transferência da responsabilidade de proteção do mínimo existencial do Estado-juiz para o próprio devedor reflete uma visão mais liberal do processo executivo, privilegiando a autonomia das partes sobre a proteção social automática. Essa mudança de paradigma terá impactos duradouros na prática forense e na vida de milhões de brasileiros endividados.
Para os operadores do direito, a decisão exige adaptação das estratégias processuais tanto na defesa quanto na cobrança de créditos. Para os devedores, representa a necessidade de maior vigilância e atuação ativa na proteção de seus direitos fundamentais.
O tempo dirá se essa mudança jurisprudencial contribuirá efetivamente para um sistema executivo mais equilibrado e eficiente, ou se criará novas barreiras para o exercício de direitos fundamentais por parte dos devedores em situação de vulnerabilidade. O que é certo é que a decisão marca uma nova era na aplicação da impenhorabilidade de valores bancários no Brasil.