Remuneração do trabalho prisional no Brasil: Comentários à ADPF 336
Pode o preso receber menos que um salário mínimo? Saiba o que decidiu o STF na ADPF 336, as principais posições doutrinárias e os dados que revelam a realidade da remuneração prisional.
segunda-feira, 18 de agosto de 2025
Atualizado às 15:21
A lei de execução penal estabelece expressamente que o trabalho exercido pela pessoa presa não se submete ao regime da Consolidação das Leis do Trabalho. Dentre os poucos autores que enfrentaram o tema, destacam-se Salo de Carvalho1, Rui Carlos Machado Alvim2 e Christiane Russomano Freire3, que apontam incompatibilidade da previsão com preceitos constitucionais. A mesma lei, ainda, determina que o trabalho do preso deve ser remunerado, não podendo ser inferior a três quartos do salário-mínimo.
Em 2015, a Procuradoria Geral da República ajuizou Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental contra o art. 29, caput, da lei 7.210/84, que estabelece como valor-base para a remuneração do trabalho de pessoas privadas de liberdade em três quartos do salário-mínimo4. Trata-se da ADPF 336, que teve a relatoria do ministro Luiz Fux.
Em síntese, alegou a Procuradoria Geral da República que a disposição acerca da remuneração do trabalho dos presos viola o art. 7º, IV da CF/88, que garante o salário-mínimo como direito social do trabalhador, de modo a configurar violação também aos preceitos fundamentais da isonomia e da dignidade da pessoa humana. Argumenta-se, nesse sentido, que o trabalho configura meio de dignificação do homem, que assegura tanto ao trabalhador, mas também a sua família, outros direitos constitucionais como a saúde, o lazer, a moradia, a educação e o progresso material. Por essa razão, o labor constituiria direito social, princípio fundamental da República e fundamento da ordem econômica. Além disso, pontuou-se que o direito ao trabalho e à igual remuneração é igualmente previsto na Declaração Universal dos Direitos Humanos (art. 23, §2º).
No tocante à legislação de execução penal, a Procuradoria asseverou que esta anuncia o trabalho exercido pelas pessoas condenadas como um dever social, mas também como condição de dignidade humana, possuindo finalidade social, educativa e produtiva. Trata-se, pois, de instrumento hábil à realização da função de prevenção especial positiva da pena, que confere à pena a finalidade de ressocialização do apenado. Considerando, portanto, os preceitos fundamentais invocados, não haveria qualquer motivação idônea que justificasse a atribuição de pagamento aquém do mínimo constitucional para os trabalhares presos.
A Presidência da República manifestou-se contrariamente ao reconhecimento de descumprimento de preceito fundamental. O principal argumento utilizado foi o de que a lei de execuções penais determinou que o trabalho exercido por pessoas condenadas não se sujeita ao regime da Consolidação das Leis do Trabalho (art. 28, §2º), de tal modo que a pessoa presa não tem direito a nenhum outro direito previsto para os trabalhadores, não justificando, portanto, e exceção a um único deles (a percepção do salário-mínimo). Nessa toada, consignou-se que a função educativa do trabalho prisional impede a configuração de relação de emprego.
No mesmo sentido, embora de forma mais sucinta, foi a manifestação do Senado Federal que, por fim, asseverou que o reconhecimento de que a norma impugnada não foi recepcionada pela CF/88 ocasionaria a ausência total de remuneração ao preso, uma vez que não haveria suporte para a manutenção desta remuneração.
A Advocacia Geral da União, por seu turno, em seu papel de defesa do texto impugnado, consignou que o trabalho do cidadão livre é tido, pela CF/88, como um direito social, ao passo que o trabalho do condenado, pela lei de execução penal, é considerado um dever social, possuindo um regime legal próprio a este tipo de labor, completamente distinto daquele previsto na Consolidação das Leis do Trabalho. Adicionou-se, ainda, a alegação de que, por estar custodiado pelo Estado, o salário não se prestaria, como no caso dos cidadãos livres, ao seu sustento.
A arguição foi finalmente decidida em fevereiro de 2021. O relator ministro Luiz Fux defendeu a improcedência do pedido, sendo seguido pela maioria. Ficaram vencidos os ministros Edson Fachin, Gilmar Mendes, Cármen Lúcia e Rosa Weber.
Estabeleceu-se, então, o seguinte entendimento: O patamar mínimo diferenciado de remuneração aos presos previsto no art. 29, caput, da lei 7.210/84 (LEP - Lei de Execução Penal) não representa violação aos princípios da dignidade humana e da isonomia, sendo inaplicável à hipótese a garantia de salário-mínimo prevista no art. 7º, IV, da CF/88.
O STJ mantém, desde antes de o julgamento pelo STF, o entendimento da plena eficácia de tal dispositivo. O trecho do voto do ministro Ricardo Villas Bôas Cueva sintetiza a linha de pensamento adotada:
É possível o trabalho do preso ser remunerado em quantia inferior a um salário-mínimo. Isso porque, o labor do preso é um dever obrigatório na medida de suas aptidões e capacidades e possui finalidades educativa e produtiva, em contraste com a liberdade para trabalhar e prover o sustento, garantida aos que não cumprem pena prisional pelo art. 6º da CF. Em suma, o trabalho do preso segue lógica econômica distinta da mão-de-obra em geral, conforme entendimento do STF.5
Elencam-se, assim, os argumentos suscitados no bojo da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental em tela: 1) o trabalho prisional não se sujeita ao regime da Consolidação das Leis do Trabalho, motivo pelo qual a pessoa presa não faz jus a nenhum outro direito previsto para os trabalhadores, não justificando, portanto, e exceção a um único deles, como o salário-mínimo; 2) A função educativa do trabalho prisional impede a configuração de relação de emprego; 3) o trabalho livre é considerado direito social pela Constituição Federal, enquanto o trabalho do preso é considerado um dever social pela Lei de Execução Penal, exigindo, pois, tratamento jurídico diverso; 4) o salário-mínimo serve ao sustento do trabalhador e, por estar custodiado pelo Estado, o cidadão encarcerado não teria necessidade desse sustento.
Parte da doutrina, contudo, entende que a garantia constitucional do salário-mínimo constitui norma de eficácia plena, devendo ser aplicada de imediato, de forma a invalidar qualquer norma anterior em sentido contrário6; assim, o referido dispositivo da lei de execução penal não teria sido recepcionada pela CF/88. Nesse sentido, havendo todos os elementos da relação de emprego - habitualidade, subordinação e pessoalidade - a remuneração deveria ser igual ou superior ao salário-mínimo.
No tocante às demais argumentações, deve se asseverar que, muito embora a pena privativa de liberdade incorra na privação de outros direitos, não há qualquer particularidade apta a justificar o tratamento diferenciado aos trabalhadores presos, no tocante à remuneração. Veja-se que nos argumentos levantados na ADPF, não foi enfrentada a situação em que, em determinados casos, estão presentes todos os requisitos aptos a caracterizar uma relação de vínculo empregatício. Nessa hipótese, a exclusão de determinada categoria de trabalhadores implica a privação de direitos sociais assegurados constitucionalmente, além de violar o princípio da isonomia, ao se conferir tratamento diferenciado apenas pelo fato de terem sido condenados à pena privativa de liberdade, sem a perda de outros direitos além da liberdade.7
A sustentação de que o caráter educativo excluiria a possibilidade de configuração de relação empregatícia é facilmente rebatida pelo fato de a própria lei de execução penal conferir não apenas essa, mas também a função produtiva ao labor exercido pelos apenados, conforme disposição do caput do seu art. 28.
Do mesmo modo, a argumentação de que o trabalho livre é considerado um direito social pela Constituição, enquanto o trabalho encarcerado é tido como um dever social pela legislação, não se sustenta pelo simples fato de a mesma lei classificar esta modalidade de labor também como um direito, além de um dever. É o que estabelece o inciso segundo do art. 41 da lei 7210/84: "Art. 41 - Constituem direitos do preso: II - atribuição de trabalho e sua remuneração".
No tocante ao último recurso utilizado, no sentido de que, por estar sob custódia estatal, o preso não precisaria do salário-mínimo para seu sustento, empresta-se a conclusão outrora apresentada:
Fundamentação, no entanto, abriria espaço para se questionar a existência de um valor fixado única e nacionalmente como o mínimo necessário. Existem famílias maiores e menores, pessoas que dependem mais ou menos do transporte, que são isentas ou não do custeio de todas essas necessidades vitais. Ainda, existem aqueles que, além do salário-mínimo recebido, recebem outros benefícios pecuniários cumulativos, como os de assistência social. Da mesma forma, existem pessoas presas que possuem família com mais ou menos necessidades financeiras que pessoas livres. Soma-se o fato de que, na realidade brasileira, nem todas as necessidades da pessoa presa são atendidas pelo Estado, restando à própria família sua manutenção, como o envio de alimentos na forma de jumbo em dias de visitação. Assim, seria impossível estabelecer um valor que atendesse de forma "justa" a cada pessoa e família individualmente. Daí o porquê de se estabelecer um parâmetro nacional que, segundo a Constituição, deve ser unificado, a fim de garantir todas aquelas necessidades e também melhoria da condição social de quem o percebe.8
Por fim, registra-se que a exposição de motivos da legislação de execução penal justifica a não subordinação às normas da Consolidação das Leis do Trabalho na ausência de liberdade para formação do contrato, condição indispensável para o reconhecimento de uma relação de trabalho:
também nesse passo, reduzir as diferenças entre a vida nas prisões e a vida em liberdade, os textos propostos aplicam ao trabalho, tanto interno como externo, a organização, métodos e precauções relativas à segurança e à higiene, embora não esteja submetida essa forma de atividade à Consolidação das Leis do Trabalho, dada a inexistência de condição fundamental, de que o preso foi despojado pela sentença condenatória: a liberdade para a formação do contrato.9
Tal justificativa se mostra, no mínimo, contraditória. Partindo da premissa de que o trabalho prisional não configura forma de labor forçado, já que existe vedação constitucional nesse sentido, o reconhecimento da liberdade para formação do contrato deveria ser automática. De outro lado, se não há liberdade volitiva, o reconhecimento da modalidade forçada seria consequência.
Conforme os últimos dados estatísticos acerca do sistema penitenciário brasileiro (RELIPEN - período de referência de julho a dezembro de 202410), dentre as pessoas privadas de liberdade que exercem atividade laboral, 51,1% não recebem qualquer tipo de remuneração pela função desempenhada. Aproximadamente 17,3% recebem valor inferior a três quartos do salário-mínimo, enquanto 25,9% percebem entre três quartos e um salário-mínimo. Apenas 5,7% recebem quantia superior a um salário-mínimo.
Por todo o exposto, portanto, defende-se que o debate acerca da remuneração do trabalho prisional não pode se dar como encerrado após o julgamento da ADPF 336. Entende-se que, se existentes as características ensejadoras da relação de emprego, o direito constitucional ao salário-mínimo deve ser garantido a todos os trabalhadores, estejam eles privados de sua liberdade ou não.
_________________
1 CARVALHO, Salo de. Penas e garantias. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
2 ALVIM, Rui Carlos Machado. O trabalho penitenciário e os direitos sociais. São Paulo: Atlas, 1991.
3 FREIRE, Christiane Russomano. A violência do sistema penitenciário brasileiro contemporâneo: o caso RDD. São Paulo: IBCCRIM, 2005.
4 Art. 29, LEP: O trabalho do preso será remunerado, mediante prévia tabela, não podendo ser inferior a 3/4 (três quartos) do salário-mínimo.
5 STJ, REsp n. 1.882.798/DF, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 10/8/2021, DJe de 17/8/2021
6 COUTINHO, Aldacy Rachid. Trabalho e Pena. Revista da Faculdade de Direito da UFPR, v. 32, pp. 7/23. Curitiba: Universidade Federal do Paraná, 1999, p. 16.
7 MATOS, Erica do Amaral. Cárcere e trabalho: um diálogo entre a sociologia do trabalho, o sistema de penas e a execução penal. São Paulo: Thomson Reuters, 2020, p. 167.
8 MATOS, Erica do Amaral. Cárcere e trabalho: um diálogo entre a sociologia do trabalho, o sistema de penas e a execução penal. São Paulo: Thomson Reuters, 2020, pp. 171/172.
9 Exposição de motivos nº 213, de 9 de maio de 1983: n. 57.
10 Disponível em: https://www.gov.br/senappen/pt-br/servicos/sisdepen/relatorios Acesso em: 12 ago. 2025.


