STJ: Globo deve renovar concessão para preservar recuperação da TV Gazeta
Decisão contrapôs preservação da empresa e empregos à autonomia contratual da Globo.
Da Redação
terça-feira, 19 de agosto de 2025
Atualizado às 17:52
Rede Globo deve renovar compulsoriamente o contrato de afiliação com a TV Gazeta de Alagoas. Assim decidiu, por maioria, a 3ª turma do STJ, em julgamento que contrapôs a preservação da empresa em recuperação judicial à autonomia contratual.
O colegiado manteve decisão do TJ/AL que autorizou a prorrogação do vínculo por mais cinco anos, reconhecendo a essencialidade do acordo para a sobrevivência da emissora, responsável por mais de 70% do faturamento do grupo e pelo sustento de cerca de 200 empregos diretos.
Prevaleceu o voto divergente do ministro Humberto Martins, que foi acompanhado pelo ministro Moura Ribeiro e pela ministra Daniela Teixeira.
O relator, ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, ficou vencido, acompanhado da ministra Nancy Andrighi.
Voto do relator
No voto proferido nesta terça-feira, 19, o relator Ricardo Villas Bôas Cueva votou por dar provimento ao recurso da Rede Globo.
Para o ministro, o juízo da recuperação judicial não tem competência ilimitada para intervir em contratos em curso, sendo sua atuação restrita a medidas relacionadas a atos de constrição patrimonial e bens de capital essenciais, em sentido estrito.
"O conceito de bem de capital essencial restringe-se a bens corpóreos, físicos, empregados no processo produtivo da empresa, não se estendendo a contratos ou direitos", afirmou.
Cueva destacou que o contrato em questão possuía prazo final definido e não foi rescindido antecipadamente, mas apenas chegou ao seu termo.
A tentativa de prorrogação judicial, segundo o ministro, extrapolou os limites legais, já que ocorreu após o término do stay period, período de suspensão das execuções previsto na lei 11.101/05.
O relator também ressaltou inconsistências na argumentação da TV Gazeta sobre a indispensabilidade do contrato, lembrando que o plano de recuperação judicial, com mais de 40 páginas, sequer mencionava o vínculo com a Rede Globo.
"A associação entre o fim do contrato e a imediata falência do grupo não foi demonstrada em nenhuma das manifestações juntadas aos autos", observou.
Ao final, Cueva votou por revogar a decisão que impôs a renovação compulsória do contrato, afastando também a tutela provisória anteriormente concedida.
Para o ministro, eventuais discussões sobre abuso de direito, legítima expectativa de renovação ou investimentos realizados devem ser examinadas em ação autônoma no foro contratualmente eleito, e não no juízo da recuperação.
Confira o voto:
Divergência
Em voto divergente, ministro Humberto Martins destacou que a análise deve se orientar pelo art. 47 da lei de recuperação judicial, que prioriza a preservação da empresa, a manutenção dos empregos e a função social da atividade econômica.
Para ele, o juízo da recuperação exerce papel de "juízo universal", sendo competente para apreciar a essencialidade do contrato de retransmissão em um contexto de crise.
"O bem maior é o bem coletivo. É a paz da empresa no sentido de sua vida, da sua sobrevivência. Não queremos um país em crescimento econômico e desenvolvimento social em que empresas fechem por não se conceder dois ou três anos a mais para sua recuperação", afirmou.
O ministro observou que, embora o contrato entre TV Gazeta e Globo fosse originalmente de um ano, a prorrogação excepcional fixada pelo juízo da recuperação já se encontra em curso há quase dois anos, restando três para sua conclusão.
Segundo ele, não se trata de perpetuar a obrigação, mas de medida temporária e excepcional voltada à superação da crise.
Destacou doutrina e precedentes que ampliam o conceito de bem essencial, não restringindo-o a máquinas ou instalações, mas também a contratos fundamentais à continuidade do negócio.
"Não podemos nos apegar apenas ao texto literal. O interesse maior é o interesse social, a paz, o restabelecimento da vida econômica e dos empregos. Em hipóteses excepcionais, a intervenção judicial em contratos é possível e justificada", afirmou.
Em conclusão, reforçou que a medida não cria obrigação perpétua, mas assegura tempo adicional para que a TV Gazeta possa se recuperar. Assim, divergiu e negou provimento ao recurso.
Veja trecho do voto:
Na sequência, ministro Moura Ribeiro acompanhou a divergência, também votando contra o recurso da Globo.
Embora tenha reconhecido a relevância do voto do relator, afirmou que, em casos excepcionais, bens incorpóreos, como marcas, nomes e contratos estratégicos, podem ser considerados essenciais à atividade da empresa.
"Sem dúvidas, os incorpóreos, como marcas e nomes, também merecem a mesma conceituação. Neste caso excepcionalíssimo, em nome da sobrevivência da Gazeta, acompanho a divergência, mas sem que o Judiciário se torne a muleta eterna da empresa", pontuou.
Assista:
Ministra Daniela Teixeira também aderiu à divergência.
Reafirmando seu entendimento já exposto em outros julgados, defendeu que a interpretação da lei recuperacional deve sempre priorizar a continuidade da atividade empresarial e a função social.
"Para uma empresa que transmite sinal de televisão, o menos importante é o prédio; o mais importante é o contrato de concessão. O Tribunal de Justiça de Alagoas reconheceu que a falência seria inevitável sem a renovação, e essa conclusão fática não pode ser revista aqui, sob pena de violação às súmulas 5 e 7 do STJ", afirmou.
Assim, acompanhou os ministros Humberto Martins e Moura Ribeiro para negar provimento ao recurso da Globo.
Veja trecho do voto:
Letra da lei
Ministra Nancy Andrighi, por sua vez, acompanhou o relator, destacando que a recuperação judicial não possui competência universal e ilimitada.
Para ela, o juízo recuperacional deve se restringir "aos atos expropriatórios e de constrição patrimonial, nos termos do artigo 6º, §§7º-A e 7º-B da lei 11.101/05".
A ministra ressaltou que a jurisprudência do STJ já consolidou que o conceito de bem de capital essencial não pode ser interpretado de forma extensiva.
"É exclusivamente bem corpóreo envolvido no processo produtivo da empresa, não se estendendo a créditos, contratos e direitos, como o de transmissão ora discutido", afirmou.
Nancy alertou ainda para os riscos de relativizar a autonomia da vontade nos contratos:
"A autonomia da vontade são os pilares de segurança de todos os contratos. Quando o juiz permite discutir uma cláusula contratual dessa forma, mexe na estrutura que nunca deveria ser alterada, sob pena de gerar insegurança jurídica."
Para a ministra, impor à Globo a renovação compulsória do contrato, dentro do processo de recuperação, equivaleria a obrigar um terceiro que não integra a relação processual a manter vínculo por mais cinco anos, sem ampla oportunidade de defesa e sem o devido instrumento processual autônomo.
Assim, Nancy votou pelo provimento do recurso especial, alinhando-se ao relator, para afastar a decisão que prorrogou compulsoriamente a concessão.
Veja trecho do voto:
- Processo: REsp 2.218.453

