STF barra retorno imediato de menor ao exterior em casos de violência
Corte fixou que indícios objetivos de agressão contra a mãe são suficientes para afastar devolução prevista na Convenção da Haia.
Da Redação
quarta-feira, 27 de agosto de 2025
Atualizado às 15:56
Nesta quarta-feira, 27, o plenário do STF concluiu julgamento e fixou, por unanimidade, entendimento de que, nos casos em que haja fundadas suspeitas de violência doméstica, crianças trazidas ao Brasil por um dos genitores, sem a autorização do outro, não devem ser automaticamente devolvidas ao exterior.
Os ministros acompanharam o voto do relator, ministro Luís Roberto Barroso, que reconheceu a compatibilidade da Convenção da Haia de 1980 com a CF, mas defendeu interpretação mais protetiva.
Para o relator, a exceção prevista no tratado deve abranger também situações em que existam indícios objetivos e concretos de violência doméstica contra a mãe, mesmo que a criança não seja vítima direta, hipótese suficiente para afastar a devolução.
Ao final, foi fixada a seguinte tese:
"1. A Convenção da Haia de 1980 sobre os aspectos civis da subtração internacional de crianças é compatível com a Constituição Federal, possuindo status supralegal no ordenamento jurídico brasileiro, por sua natureza de tratado internacional de proteção de direitos da criança.
2. A aplicação da Convenção no Brasil, à luz do princípio do melhor interesse da criança (art. 227, CF), exige a adoção de medidas estruturais e procedimentais para garantir a tramitação célere e eficaz das ações sobre restituição internacional de crianças.
3. A exceção de risco grave à criança, prevista no art. 13 (1) (b) da Convenção da Haia de 1980, deve ser interpretada de forma compatível com o princípio do melhor interesse da criança (art. 227, CF) e com perspectiva de gênero, de modo a admitir sua aplicação quando houver indícios objetivos e concretos de violência doméstica, ainda que a criança não seja vítima direta."
Veja a proclamação:
Ementa
Ao proclamar o resultado, o relator, ministro Luís Roberto Barroso, julgou parcialmente procedentes as ações para conferir interpretação conforme ao art. 13.1.b da Convenção da Haia de 1980.
Além da tese, a Corte determinou uma série de providências estruturais e procedimentais, entre elas:
- CNJ deverá instituir grupo de trabalho interinstitucional, em até 60 dias, para propor resolução que garanta maior celeridade aos processos de restituição internacional, com prazo máximo de um ano para decisão final.
- TRFs deverão concentrar a competência para esses casos em varas e turmas especializadas, além de criar núcleos de apoio técnico para conciliação, perícias psicossociais e práticas restaurativas.
- Sistemas processuais eletrônicos deverão incluir selo de tramitação preferencial para ações sobre a Convenção da Haia (código 10.921).
- Poder Executivo deve fortalecer a atuação da Autoridade Central Administrativa Federal, definir metas e indicadores de desempenho, e elaborar, por meio do Itamaraty, protocolo de atendimento a mulheres e crianças vítimas de violência doméstica nos consulados brasileiros, tomando como referência o modelo já existente em Roma.
- Poder Judiciário avaliará a conveniência de adesão do Brasil à Convenção da Haia de 1996, devendo encaminhar relatório técnico aos chefes dos três Poderes.
- Congresso Nacional foi instado a analisar eventual legislação específica para regulamentar a aplicação da Convenção da Haia de 1980, sobretudo quanto aos aspectos processuais e probatórios.
- TRFs e TJs deverão firmar acordos de cooperação judiciária para unificar protocolos de atuação em casos de subtração internacional de crianças, inclusive compartilhando informações e equipes multidisciplinares.
Casos
Na ADIn 7.686, o PSOL questionou a regra que obriga o retorno ao exterior de crianças trazidas ao Brasil por um dos pais, sem autorização do outro, mesmo havendo fundadas suspeitas de violência doméstica no estrangeiro, ainda que a criança não seja vítima direta.
Já a ADIn 4.245, ajuizada pelo DEM, impugnou dispositivos da Convenção sob o argumento de que ela tem sido aplicada de forma automática, sem considerar peculiaridades dos casos, resultando em violações a princípios constitucionais como dignidade humana e proteção integral.
Voto do relator
Ao votar, ministro Barroso afirmou que a Convenção da Haia de 1980 é fundamental para proteger crianças em casos de subtração internacional, garantindo o retorno imediato ao país de residência habitual, mas destacou que sua aplicação deve respeitar o princípio do melhor interesse da criança.
Ressaltou que o tratado tem status supralegal no Brasil por tratar de direitos humanos e que a exceção prevista no artigo 13.1.b (risco grave de danos físicos ou psíquicos) deve ser interpretada também à luz de situações de violência doméstica contra a mãe, mesmo quando a criança não seja vítima direta.
Segundo Barroso, exigir prova cabal seria incompatível com a celeridade da Convenção, mas simples alegações não bastam: é necessário apresentar indícios objetivos e concretos.
O relator também criticou a morosidade brasileira no cumprimento do tratado e propôs medidas estruturais para garantir decisões em até um ano, incluindo:
- criação de grupo de trabalho no CNJ para propor resolução sobre tramitação célere;
- concentração da competência em varas federais e turmas especializadas;
- núcleos de apoio técnico (conciliação, perícias, psicossociais);
- selo de tramitação preferencial;
- fortalecimento da Autoridade Central (AGU).
Ao final, Barroso julgou parcialmente procedentes os pedidos para conferir interpretação conforme ao artigo 13.1.b da Convenção, reconhecendo que a exceção ao retorno imediato por risco grave se aplica também a casos de violência doméstica contra a mãe, comprovados por indícios objetivos e concretos, ainda que a criança não seja vítima direta.
E para determinar a adoção das providências estruturais e procedimentais para garantir tramitação célere e eficaz dos processos.
Ainda, propôs a seguinte tese:
"1. A Convenção da Haia de 1980 sobre os aspectos civis da subtração internacional de crianças é compatível com a Constituição Federal, possuindo status supralegal no ordenamento jurídico brasileiro por sua natureza de Tratado Internacional de Proteção de Direitos Humanos, como são os direitos das crianças.
2. A aplicação da Convenção no Brasil, à luz do princípio do melhor interesse da criança, exige a adoção de medidas estruturais e procedimentais para garantir a tramitação célere e eficaz das ações sobre restituição internacional de crianças.
3. A exceção de risco grave à criança, prevista no artigo 13.1.B da Convenção da Haia, de 1980, deve ser interpretada de forma compatível com o princípio do melhor interesse da criança e com perspectiva de gênero, de modo a admitir sua aplicação da exceção, quando houver indícios objetivos e concretos de violência doméstica contra a genitora acusada da subtração, ainda que a criança não seja a vítima direta."
Objetificação
Ao votar, nesta tarde, ministra Cármen Lúcia destacou que a análise do tema envolve diretamente dois sujeitos de direito, mulheres e crianças, que, embora reconhecidos como titulares de direitos pela Constituição e por tratados internacionais, "tragicamente, continuam sendo tratados como objetos na sociedade".
Ao relembrar os índices alarmantes de feminicídio e violência contra a mulher no Brasil, Cármen Lúcia afirmou que o STF não pode se mostrar insensível a esse contexto.
"O Brasil, em 2024, apresentou um quadro trágico de aumento da violência contra a mulher, com uma mulher sendo assassinada a cada seis horas."
Para a ministra, a proteção integral da criança abrange também a proteção do ambiente doméstico em que vive, de modo que não se pode "revitimizar a mulher que foge em condições precaríssimas e, ao aqui chegar, ainda ter que se ver de novo sem o seu filho, porque é considerado - e a palavra, é uma palavra muito forte, sequestro de menor".
Cármen Lúcia frisou a necessidade de:
- garantir o contraditório e a ampla defesa já na primeira fase dos processos;
- ouvir a palavra da criança e da mãe, mesmo em condições adversas;
- interpretar a Convenção da Haia em conformidade com a Constituição, especialmente quanto à dignidade da mulher e da criança.
Acompanhando Barroso e os ajustes sugeridos, a ministra reiterou que a aplicação do art. 13.1.b deve considerar o risco decorrente da violência doméstica contra a mãe como suficiente para impedir a devolução da criança.
Veja trecho do voto:
Divergência na forma
Ministro Gilmar Mendes também acompanhou Barroso, mas apresentou ressalvas quanto à técnica decisória adotada.
Para o ministro, não há necessidade de declarar a inconstitucionalidade, ainda que parcial, de dispositivos da Convenção da Haia, uma vez que a própria redação do artigo 13.1.b já contempla a hipótese de afastar o retorno em casos de violência doméstica.
Gilmar ressaltou a importância de preservar a efetividade da Convenção, cujo propósito central é o retorno célere de crianças ilicitamente retidas, advertindo para que as exceções previstas sejam interpretadas de forma restritiva.
Ainda assim, admitiu que indícios objetivos de violência doméstica contra a mãe podem configurar risco grave, suficiente para afastar a devolução.
O ministro apoiou a adoção de medidas estruturais para assegurar a tramitação rápida e eficaz dos processos, nos termos sugeridos por Barroso, mas divergiu quanto ao item que propõe interpretação conforme ao art. 13.1.b, entendendo que isso já se encontra previsto no texto convencional.
Gilmar ainda destacou a aplicação obrigatória do Protocolo para julgamento com perspectiva de gênero, publicado pelo CNJ em 2021, aos litígios relacionados à Convenção.
Destaques dos demais votos
Ministro Nunes Marques divergiu parcialmente do relator ao defender que a exceção ao retorno imediato de crianças ao país de residência, prevista na Convenção da Haia, só deve ser admitida diante de provas substanciais de violência doméstica, e não apenas de indícios.
Para S. Exa., a robustez da prova é essencial, sobretudo em medidas liminares, a fim de evitar decisões precipitadas e assegurar o devido processo legal.
Citou como referência o formulário de risco homologado pelo Itamaraty e ressaltou que também devem ser considerados documentos produzidos no exterior.
Além disso, sugeriu a criação de um observatório no CNJ para monitorar os casos de subtração internacional de menores e propôs ampliar a redação da tese para abranger genericamente situações de violência doméstica, não apenas contra a mãe, mas também contra a criança e outros familiares.
Já ministro Dias Toffoli acompanhou o relator, mas com fundamento próprio. Destacou que a Convenção deve ser interpretada à luz da dignidade da pessoa humana e do melhor interesse da criança, considerando a realidade da violência doméstica que afeta sobretudo mulheres migrantes.
Para S. Exa., indícios mínimos, inclusive a palavra da vítima, bastam para afastar o retorno. No voto, determinou ajustes na interpretação de diversos artigos da Convenção e propôs medidas estruturais, como protocolos de acolhimento a brasileiras no exterior e atualização de normas pelo ministério da Justiça, Itamaraty e CNJ.
Na mesma linha, ministro Flávio Dino acompanhou Barroso, mas defendeu que o retorno imediato nunca seja automático, nem decidido sem contraditório. Sugeriu limitar a atuação da AGU à função de orientação e não de representação do genitor requerente.
Ministro Cristiano Zanin também seguiu o relator, mas sugeriu, ao Congresso, a criação de uma lei específica para disciplinar a aplicação da Convenção no Brasil e estabeleceu parâmetros práticos: retorno célere quando não houver indícios, permanência no país quando comprovada a exceção e dilação probatória em caso de dúvida.
Por fim, ministro André Mendonça destacou que a violência contra a mãe repercute em toda a família e reforçou a importância das chamadas "mães de Haia' na sensibilização do debate. Apoiou a criação de protocolos de acolhimento e defendeu que a AGU deve se afastar de processos quando surgirem indícios claros de violência.
- Processos: ADIn 7.686 e ADIn 4.245