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Extermínio no RJ

Rio de Janeiro descumpriu decisão do STF na ADPF das Favelas? Entenda

Operação mais letal da história do RJ já soma mais de 120 mortos.

Da Redação

quarta-feira, 29 de outubro de 2025

Atualizado em 30 de outubro de 2025 07:51

A operação policial deste 28 de outubro nos complexos do Alemão e da Penha, no Rio de Janeiro, já soma mais de 120 mortos, entre civis e policiais - o maior número já registrado em uma ação desse tipo na história do Rio de Janeiro.

As cenas de dezenas de corpos enfileirados em praça pública escancararam o colapso da política de segurança fluminense, e reacenderam o debate sobre a eficácia das medidas impostas pelo STF na ADPF 635, conhecida como "ADPF das Favelas", julgada em abril deste ano. O processo trata justamente da redução da letalidade policial e do controle das operações em comunidades.

O episódio levanta o questionamento: o Estado do RJ descumpriu determinações do STF ao conduzir a chamada operação Contenção?

 (Imagem: Eduardo Anizelli/Folhapress)

Operação policial mais letal da história do RJ já soma mais de 120 mortos.(Imagem: Eduardo Anizelli/Folhapress)

Descumprimento das decisões do STF

O acórdão do STF na ADPF 635 é claro ao exigir que o Estado do Rio de Janeiro adote medidas de controle, transparência e redução da letalidade policial, como o uso de câmeras corporais, a preservação de locais de crime, a presença de ambulâncias em ações com risco de confronto e a remessa imediata de relatórios ao Ministério Público.

As primeiras informações sobre a operação, contudo - envolvendo remoção irregular de corpos, ausência de socorro imediato e agentes sem câmeras de gravação - indicam que essas exigências não foram cumpridas.

Ainda que o governo alegue combate a organizações criminosas, o descumprimento de protocolos fixados pela Corte pode configurar violação direta da decisão judicial.

Na prática, caberá agora ao STF avaliar se houve desrespeito às ordens estruturais da ADPF e se será necessário impor novas medidas coercitivas ou de responsabilização ao Estado.

"Deboche"

O advogado Guilherme Pimentel, que atuou como ouvidor da Defensoria Pública do RJ de 2020 a 2023, conhece de perto a realidade das comunidades. Em entrevista ao Migalhas, ele avaliou que "certamente" a decisão do Supremo foi descumprida. E destacou que cabe, agora, ao Judiciário, dar resposta à altura.

"Certamente o Estado do Rio de Janeiro descumpriu, porque, quando nós falamos da decisão da ADPF, nós falamos de um plano de redução de letalidade, e não de aumento vertiginoso da letalidade. Além disso, nós falamos de reversão do estado inconstitucional de coisas na segurança pública. E, ontem, o que a gente viu foi o ápice do estado inconstitucional de coisas na segurança pública no Rio de Janeiro. Então, sem dúvida, é um deboche à decisão do STF, e é um desafio institucional à Suprema Corte brasileira." 

STF acionado

Em manifestação enviada ao STF nos autos da ADPF ainda na terça-feira, 28, dia da realização da operação, o CNDH - Conselho Nacional de Direitos Humanos, na qualidade de amicus curiae, apontou o descumprimento das ordens do Supremo por parte do Estado.

A entidade afirmou que, não obstante o acórdão proferido pela Corte, com plano de redução da letalidade policial e respeito ao uso proporcional da força, bem como instalação de equipamentos de gravação nas fardas, o RJ realizou a "operação policial mais letal da história do RJ", e requereu uma série de medidas ao relator.

O processo, que estava sob relatoria do ministro Luís Roberto Barroso (aposentado), foi assumido por Alexandre de Moraes. Em resposta à manifestação da CNDH, o ministro determinou que a PGR se manifeste em 24 horas sobre os pedidos de fiscalização e de novas diligências feitos pelo CNDH para que o governador do Rio, Cláudio Castro, apresente informações sobre a operação Contenção.

O que é a ADPF das Favelas

A ADPF 635 foi proposta em 2019 pelo PSB - Partido Socialista Brasileiro, com apoio de entidades civis e movimentos de favelas, para denunciar o uso desproporcional da força policial no Rio de Janeiro.

A ação cita a violação de direitos fundamentais, como vida, igualdade e dignidade humana, apontando o Estado do Rio de Janeiro como responsável por omissões e práticas letais nas operações realizadas em comunidades periféricas.

Em 2020, o relator original, ministro Edson Fachin, concedeu liminar, no auge da pandemia, proibindo operações policiais em favelas durante o período, salvo em casos excepcionais. Desde então, por meio da ADPF, o Tribunal passou a acompanhar o comportamento do Estado em políticas de segurança pública.

O que o STF decidiu

Após cinco anos de audiências, relatórios e despachos, o julgamento da ADPF foi concluído em abril de 2025, com voto per curiam unânime.

Voto per curiam: decisão emitida em nome do Tribunal como um todo, de forma unânime e coletiva, sem que haja uma autoria individual de ministro específico.

O Supremo reconheceu avanços, mas também violações persistentes, e determinou 23 medidas de cumprimento obrigatório pelo Estado do Rio de Janeiro.

Entre elas:

  • Transparência de dados: o governo deve publicar indicadores detalhados sobre mortes decorrentes de intervenção policial e de agentes de segurança.
  • Uso de câmeras corporais e viaturas equipadas com gravação: a implantação é obrigatória, com regulamentação em até 180 dias.
  • Ambulâncias em operações com risco de confronto armado.
  • Preservação de locais de crime e proibição de remoção irregular de corpos.
  • Relatórios de operação: toda ação policial deve gerar documento detalhado enviado ao Ministério Público em até 24 horas.
  • Investigação de mortes por intervenção de agentes do Estado sob responsabilidade do Ministério Público.
  • Criação de um grupo de trabalho coordenado pelo CNMP para monitorar o cumprimento da decisão e publicar relatórios semestrais.

O acórdão também determinou a instauração de inquéritos federais para investigar organizações criminosas e possíveis conivências institucionais, reconhecendo que o cenário de violência envolve omissões do Estado e violações de direitos por facções armadas.

ADPF mostrava resultados expressivos

Em artigo publicado em fevereiro deste ano na Folha de S.Paulo, o advogado Daniel Sarmento, que atua pro bono na ADPF das Favelas, afirmou que a ação já havia produzido resultados concretos no Rio de Janeiro.

Em 2019, quando foi ajuizada, o Estado registrava 1.814 mortes causadas por policiais. O número caiu para 699 em 2024 - uma redução de mais de 60%, segundo dados oficiais.

 (Imagem: Arte Migalhas)

ADPF das Favelas mostrou avanços entre 2019 e 2024.(Imagem: Arte Migalhas)

Sarmento ressaltou, naquela oportunidade, que a ADPF não proibia operações, mas impunha controles e transparência, como o uso de câmeras corporais e investigações independentes pelo Ministério Público.

Ele também destacou que a queda na letalidade não aumentou a criminalidade, ao contrário, os principais índices se mantiveram estáveis ou diminuíram.

Para o advogado, o controle sobre a polícia fortalece o combate à criminalidade, especialmente em um contexto de corrupção e milícias. Ele, por fim, defendeu a fiscalização, pelo STF, do cumprimento da decisão, para garantir que a Constituição "chegue, enfim, às favelas e periferias do país".

Expectativa x Realidade

A nova tragédia no Rio de Janeiro evidencia o abismo entre a expectativa de transformação gerada pela ADPF das Favelas e a realidade das operações policiais no Estado do Rio.

Quando o Supremo julgou a ação, em abril de 2025, a promessa era de que suas determinações, como o uso de câmeras, o controle das forças de segurança e o respeito à vida dos moradores, representassem um passo histórico para que a Constituição, enfim, chegasse às favelas.

A operação desta terça-feira, porém, mostra que as normas fixadas pela Corte ainda não se traduziram em prática, e que a proteção dos direitos fundamentais nas periferias continua sendo um desafio urgente e distante de solução.

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