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Entenda simbologia da decisão "per curiam" do STF na ADPF das Favelas

Em 2025, STF falou, pela primeira vez, "a uma só voz" sobre o direito à vida nas periferias.

Da Redação

quarta-feira, 29 de outubro de 2025

Atualizado às 13:22

A megaoperação policial que deixou mais de 120 mortos nas comunidades da Penha e do Alemão, na Zona Norte do Rio de Janeiro, nesta terça-feira, 28, evidencia a persistência da violência policial e recoloca em perspectiva o papel do STF no controle da letalidade nas favelas.

Foi na ADPF 635, conhecida como ADPF das Favelas, julgada em abril de 2025, que o Supremo adotou, pela primeira vez, o formato de decisão per curiam - manifestação em nome da Corte como um todo, sem o cômputo individual dos votos de cada ministro, conforme destacou o então presidente, ministro Luís Roberto Barroso.

Relembre:

A decisão representou um marco na jurisprudência constitucional brasileira.

Ao optar pelo modelo per curiam, o Supremo não apenas simbolizou unidade institucional, mas também agilizou o processo decisório em um caso de alta complexidade e forte repercussão social, permitindo uma resposta célere e coesa diante de um cenário de urgência humanitária.

Na ocasião, o STF declarou encerrado o estado de coisas inconstitucional na segurança pública fluminense, mas manteve o acompanhamento estrutural das políticas de redução da letalidade, reafirmando o dever do Estado de proteger a vida e os direitos fundamentais da população mais vulnerável.

O formato per curiam conferiu à decisão caráter simbólico e institucional: o Supremo falou "a uma só voz" sobre o direito à vida e à dignidade das populações periféricas - justamente as mais atingidas por operações como a da última terça-feira.

O que é uma decisão per curiam?

Diferentemente do modelo ordinário, em que o relator expõe voto próprio e os demais ministros o acompanham ou divergem, a decisão per curiam é proferida em nome do tribunal, sem autoria individual.

O termo, de origem latina ("pela Corte"), expressa uma manifestação institucional e impessoal, utilizada quando há consenso entre os ministros ou quando a Corte busca afirmar um posicionamento unificado.

É uma forma de preservar a autoridade e o caráter coletivo do Supremo, evitando "personalismos" em temas sensíveis.

Na Suprema Corte dos Estados Unidos, o per curiam é prática consolidada, aplicada em decisões consideradas consensuais ou já pacificadas.

No Brasil, embora incomum, o formato vem sendo resgatado pelo STF para reafirmar sua coesão em pautas estruturantes.

O marco da ADPF das Favelas

Proposta em 2019 pelo PSB - Partido Socialista Brasileiro, a ADPF 635 questionou a política de segurança pública do Estado do Rio, alegando que a escalada de confrontos armados expunha moradores de favelas a graves violações de direitos humanos.

Durante a pandemia, o relator Edson Fachin suspendeu operações policiais em comunidades, salvo em casos excepcionais.

A medida foi confirmada pelo plenário e se tornou o ponto de partida de um longo processo de reconstrução de políticas públicas - um processo estrutural.

Em 2025, com novos avanços implementados - como câmeras em fardas, protocolos de transparência e atuação do MP, o tribunal julgou que não persistia o "estado de coisas inconstitucional".

A decisão, no entanto, reafirmou o compromisso com a redução da letalidade e a fiscalização das ações policiais.

Barroso destacou, na sessão, o caráter inédito e simbólico da escolha pelo per curiam:

"Este é o primeiro caso em que o Supremo chega ao plenário para anunciar uma decisão tomada per curiam, e todos os juízes concordaram em um pronunciamento comum. É simbolicamente muito importante que nós possamos ter feito isso neste momento para dizer que o Tribunal tem compromisso com os direitos humanos e com a segurança pública de todas as pessoas, de todos os brasileiros, inclusive os que moram em comunidades pobres, inclusive os que moram em favelas, que têm os mesmos direitos de todas as pessoas."

Ministro Edson Fachin celebrou a unanimidade institucional da decisão.

"Se eu pudesse me referir a uma linguagem do meu neto, eu diria: 'vivi para ver isso', ou seja, para que o colegiado do tribunal pudesse manifestar a uma só voz, como V. Exª vem de fazer."

Revista vexatória

O Supremo também adotou o formato per curiam no julgamento do ARE 959.620, que proibiu a revista íntima vexatória em visitantes de presídios.

Assim como no caso fluminense, a Corte falou em uníssono: declarou ilícitas as provas obtidas por meio de revistas degradantes e estabeleceu prazo de dois anos para que os presídios instalem scanners corporais e portais de detecção.

Em ambos os julgamentos, a adoção do per curiam representou mais do que uma escolha procedimental, foi um gesto político-institucional de unidade, destinado a reafirmar a Constituição em contextos de vulnerabilidade social.

Realidade fluminense

O massacre ocorrido nesta semana expõe a distância entre o que o Supremo determinou e o que o Estado ainda não conseguiu implementar.

A Corte fixou parâmetros claros: uso proporcional da força, monitoramento das operações, presença de ambulâncias em ações com risco de confronto e instalação de câmeras corporais.

Contudo, parte dessas medidas segue em fase de adaptação - o que torna a decisão per curiam da ADPF 635 não apenas um marco jurídico, mas um referencial ético para o debate público sobre segurança e direitos humanos.

A letalidade policial no Rio permanece entre as maiores do país, e as operações em favelas continuam marcadas por denúncias de execuções e ausência de perícia independente.

O contraste entre a decisão do Supremo e os episódios recentes reitera o desafio histórico de fazer valer, na prática, o conteúdo constitucional proclamado pelo tribunal.

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