"Operação foi deboche ao STF", diz ex-ouvidor da Defensoria do RJ
Para o advogado Guilherme Pimentel, operação é também ataque à democracia e merece resposta à altura.
Da Redação
quinta-feira, 30 de outubro de 2025
Atualizado às 10:01
A operação policial realizada nesta semana nos complexos do Alemão e da Penha, no Rio de Janeiro - que já soma mais de 120 mortos, entre civis e policiais - provocou forte reação de entidades de direitos humanos e reacendeu o debate sobre o descumprimento das determinações do STF na ADPF das Favelas (ADPF 635).
O advogado Guilherme Pimentel Braga foi ouvidor-geral da Defensoria Pública do Rio de Janeiro entre 2020 e 2023 e acompanha de perto a realidade das comunidades afetadas pela violência policial. Hoje, coordena a RAAVE - Rede de Atenção a pessoas Afetadas pela Violência de Estado. Em entrevista ao Migalhas, concedida diretamente do IML, onde prestava apoio a familiares das vítimas, Pimentel classificou a operação como um "deboche à decisão do STF" e um "desafio institucional à Suprema Corte brasileira".
Assista:
Descumprimento da decisão
Para o ex-ouvidor, a ADPF das Favelas foi uma conquista histórica da sociedade civil e dos movimentos de favela, ao reconhecer o "estado de coisas inconstitucional" na segurança pública do Rio de Janeiro - situação estrutural e persistente de violação de direitos fundamentais.
"A realidade vivida pela população do Rio, no tocante à segurança pública, é incompatível com as garantias democráticas da Constituição. A ADPF buscava justamente corrigir esse estado de coisas."
Segundo Pimentel, a decisão liminar concedida em 2020 pelo ministro Edson Fachin, que restringiu as operações policiais durante a pandemia, gerou uma redução comprovada da letalidade policial, segundo pesquisas acadêmicas.
"A ADPF salvou vidas. Não sabemos o nome dos jovens que não morreram, das mães que não choraram - mas os dados mostram o impacto positivo."
Para ele, o que ocorreu no último dia 28 é a negação completa dessa política de preservação da vida.
"Certamente o Estado descumpriu a decisão do STF. A ADPF falava em reduzir a letalidade, e o que vimos foi o aumento vertiginoso dela. O que aconteceu é o ápice do estado inconstitucional de coisas na segurança pública do Rio."
Desafio institucional
Pimentel considera que a operação representa não apenas um desrespeito judicial, mas também um ataque institucional.
"Foi um deboche, uma provocação. Assim como a chacina do Jacarezinho, chamada ironicamente de 'Operação Exceptis', que era uma forma de debochar da decisão do ministro Fachin, que determinava que operações só poderiam acontecer diante de excepcionalidades."
Segundo o advogado, o Judiciário precisa reagir.
"É muito importante que o STF não retroceda nas determinações de controle da atividade policial e que adote medidas para que esse desafio institucional não passe impune."
Atuação do MPF
Durante a entrevista, Pimentel também cobrou atuação direta do MPF nas investigações sobre a operação. Ele explicou que, como o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro participou da ação, ficou comprometida a função de controle externo da atividade policial, prevista na Constituição. Para o advogado, isso reforça a necessidade de que o MPF assuma a condução das apurações, garantindo transparência, independência e credibilidade na investigação da tragédia que ele classificou como uma "catástrofe humanitária".
8 de janeiro ainda vive nas favelas
Na visão do ex-ouvidor, o episódio também deve ser compreendido como uma ameaça à democracia. Ele comparou a ação à postura de desrespeito institucional vista nos ataques de 8 de janeiro de 2023, em Brasília.
"O 8 de janeiro foi um episódio fático, mas o seu espírito golpista continua vivo. Ele acontece todos os dias nas favelas do Rio, afetando a população pobre. Quando o STF se mantém firme na defesa dos direitos constitucionais, ele está, na verdade, defendendo a própria democracia brasileira."
Trauma coletivo
Guilherme Pimentel também descreveu o cenário de desespero e desorganização social após a operação: escolas fechadas, ônibus parados e famílias inteiras sem acesso a serviços básicos.
"O que vimos é um trauma coletivo. Não são apenas as pessoas atingidas pelas balas. Crianças viram montanhas de corpos, mães chorando. Isso é indigno. É a continuidade da lógica escravocrata, que naturaliza que pessoas negras e pobres sejam tratadas como se não fossem humanas."
Ele ainda criticou a ausência de políticas de controle da atividade policial e a falta de comprometimento das autoridades com a implementação de câmeras corporais e investigações sobre o tráfico de armas.
"Na hora de matar, há prioridade. Na hora de controlar o crime e investigar as ligações entre agentes públicos e organizações criminosas, eles desconversam. O Rio de Janeiro não aguenta mais."
"STF precisa responder à altura"
Ao encerrar a entrevista, Pimentel reforçou a esperança de que o Supremo mantenha sua posição firme na defesa dos direitos humanos e na fiscalização do Estado fluminense.
"O STF está provando que não vai esquecer das favelas. Esperamos que a Corte mantenha suas decisões e dê uma resposta à altura dessa barbárie. Porque o Rio não precisa de mais sangue - precisa de justiça e de políticas que salvem vidas."
O que é a ADPF das Favelas?
A ADPF 635, também chamada de ADPF das Favelas, foi proposta em 2019 pelo PSB, com apoio de entidades civis, para questionar a violência policial no Rio de Janeiro.
Em abril de 2025, o STF concluiu o julgamento da ação, impondo 23 medidas obrigatórias ao Estado, entre elas o uso de câmeras corporais, a preservação dos locais de crime, e a obrigatoriedade de ambulâncias em operações com risco de confronto armado.
Após a operação do dia 28 de outubro, com mais de 120 mortos, o STF pediu manifestação da PGR. Alexandre de Moraes, relator do processo, também agendou audiência com autoridades para tratar da operação.





