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Reequilíbrio dos contratos públicos e reoneração da folha de pagamento

O artigo pretende investigar o dever de reequilíbrio dos contratos públicos a partir da reoneração da folha de pagamento implementada pela Lei 14.973/2024.

17/6/2025
Rafael Carvalho Rezende Oliveira

No presente ensaio, pretende-se investigar se os impactos da lei 14.973/24, que alterou o regime tributário aplicável à folha de pagamento, nas contratações públicas acarretam o dever de reequilíbrio econômico-financeiro dos referidos ajustes.

Inicialmente, é preciso destacar que a mutabilidade contratual é uma característica marcante dos contratos administrativos que decorre da necessidade de adaptação das cláusulas contratuais ao interesse público em constante atualização.

Não por outra razão, a legislação prevê mecanismos diversos para atualização ou restauração do equilíbrio econômico-financeiro das contratações públicas, tais como o reajuste, a repactuação e a revisão, que decorrem do princípio constitucional implícito da manutenção do equilíbrio econômico-financeiro do contrato, extraído da interpretação do inciso XXI do art. 37 da CRFB, que impõe à Administração Pública o dever de manter, durante a relação contratual, as condições efetivas da proposta.1

Aliás, a equação econômica é definida no momento da apresentação da proposta (e não da assinatura do contrato) e leva em consideração os encargos do contratado e o valor pago pela Administração, devendo ser preservada durante toda a execução do contrato.

Lembre-se, ainda, que o princípio da manutenção do equilíbrio econômico-financeiro pode ser invocado tanto pelo particular (contratado) quanto pelo Poder Público (contratante). Assim, por exemplo, na hipótese de aumento de custos contratuais em virtude de situações não imputadas ao contratado, o Poder Público deverá majorar o valor a ser pago pela execução do contrato ao contratado. Ao contrário, se os custos contratuais diminuírem, o Poder Público deverá minorar os valores a serem pagos ao contratado.

A reoneração da folha de pagamento implementada pela lei 14.973/24 pode ser caracterizada como fato do príncipe, que é o fato extracontratual praticado pela Administração que repercute no contrato administrativo. Trata-se de um fato genérico e extracontratual imputável à Administração Pública, que acarreta o desequilíbrio do contrato administrativo (álea extraordinária administrativa).

Não se deve confundir, nesse ponto, o fato do príncipe com o fato da Administração. Enquanto o fato do príncipe é extracontratual, o fato da Administração é contratual (inexecução das cláusulas contratuais por culpa da Administração contratante, com o atraso no pagamento, por exemplo).

Normalmente, a ocorrência do fato de príncipe acarreta o dever de restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro inicial do contrato, na forma do art. 124, II, d, da lei 14.133/21. Em virtude da impossibilidade de se prever a amplitude do desequilíbrio, constatado o fato superveniente, as partes formalizarão a revisão do contrato para restaurar o equilíbrio perdido. Nesse contexto, a revisão representa um direito do contratado e um dever do Estado, que deve ser observado independentemente de previsão contratual, sempre na hipótese em que for constatado o desequilíbrio considerável do ajuste.

Contudo, não se pode perder de vista que a análise do reequilíbrio contratual possui estreita relação com a matriz de risco do contrato administrativo. Isso significa que, em regra, é preciso identificar a quem restou alocado o risco e qual parte o suportou, de modo a verificar a necessidade de se promover ou não o restabelecimento do equilíbrio inicial da relação.

Com efeito, a alocação de riscos é inerente a qualquer contratação, pública ou privada, e pode ser instrumentalizada, de forma clara, por meio da matriz de riscos. Nesse cenário, o art. 22 da lei 14.133/21 permite que o instrumento convocatório contemple matriz de alocação de riscos entre o contratante e o contratado, hipótese em que o cálculo do valor estimado da contratação poderá considerar taxa de risco compatível com o objeto da licitação e os riscos atribuídos ao contratado, de acordo com metodologia predefinida pelo ente federativo.2

A matriz deverá promover a alocação eficiente dos riscos de cada contrato, estabelecendo a responsabilidade que cabe a cada parte contratante e, também, mecanismos que afastem a ocorrência do sinistro e que mitiguem os efeitos deste, caso ocorra durante a execução contratual (art. 22, § 1º).

É salutar a exigência de alocação eficiente dos riscos, com implementação de mecanismos que mitiguem os efeitos de eventual sinistro. A imputação dos riscos à parte que possui melhores condições de gerenciá-los acarreta, naturalmente, mais segurança jurídica e economicidade à contratação.3

Deve ser evitada, nessa linha de raciocínio, a imputação à contratada dos riscos relacionados aos eventos praticados pelo Poder Concedente, especialmente as hipóteses de inadimplemento contratual (fato da administração) ou atos externos à relação jurídica que repercutem no equilíbrio econômico-financeiro do contrato (fato do príncipe). Não por outra razão, o legislador estabelece a necessidade de levar em consideração a capacidade de cada setor para melhor gerenciar o risco, atribuindo-se ao contratado os riscos que tenham cobertura oferecida por seguradoras (art. 103, §§ 1º e 2º, da lei 14.133/21).

De acordo com o art. 22, § 2º, da lei 14.133/21, o contrato deve refletir a alocação realizada pela matriz de riscos, especialmente quanto: a) às hipóteses de alteração para o restabelecimento da equação econômico-financeira do contrato nos casos em que o sinistro seja considerado na matriz de riscos como causa de desequilíbrio não suportada pela parte que pretende o restabelecimento; b) à possibilidade de resolução quando o sinistro majorar excessivamente ou impedir a continuidade da execução contratual; c) à contratação de seguros obrigatórios, previamente definidos no contrato e cujo custo de contratação integrará o preço ofertado.

Frise-se que a matriz de alocação de riscos define o equilíbrio econômico-financeiro inicial do contrato, devendo ser considerada nos eventuais pleitos de reequilíbrio contratual, na forma exigida pelo art. 103, § 4º, da lei 14.133/21.

Todavia, na hipótese de aumento ou redução de carga tributária, independentemente da matriz de alocação de riscos prevista contratualmente, o art. 103, § 5º, II, da lei 14.133/21 assegura o reequilíbrio econômico-financeiro, constituindo-se em alocação legal de riscos que não pode ser afetada pela alocação contratual empreendida pelas partes. Transcreva-se o referido dispositivo legal:

“Art. 103. O contrato poderá identificar os riscos contratuais previstos e presumíveis e prever matriz de alocação de riscos, alocando-os entre contratante e contratado, mediante indicação daqueles a serem assumidos pelo setor público ou pelo setor privado ou daqueles a serem compartilhados.

(...)

§ 5º Sempre que atendidas as condições do contrato e da matriz de alocação de riscos, será considerado mantido o equilíbrio econômico-financeiro, renunciando as partes aos pedidos de restabelecimento do equilíbrio relacionados aos riscos assumidos, exceto no que se refere:

(...)

II - ao aumento ou à redução, por legislação superveniente, dos tributos diretamente pagos pelo contratado em decorrência do contrato.” (Grifo nosso).

Desse modo, ainda que o contrato administrativo tenha alocado o risco da variação tributária no contratado, deve prevalecer a previsão contida no art. 103, § 5º, II, da lei 14.133/21, que prevê o dever de restabelecimento do equilíbrio contratual na hipótese de aumento ou redução da carga tributária ocasionada por alterações legislativas, independentemente da matriz de alocação de riscos inserida no instrumento contratual.

Em consequência, afigura-se necessária a revisão contratual em razão da reoneração da folha de pagamento da contratada decorrente da promulgação da lei 14.973/24, com o objetivo de restaurar o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos administrativos em curso.4

Em âmbito federal, o Portal de Compras do Governo Federal publicou, em março de 2025, “Orientação sobre a reoneração gradual de folha de pagamento - alterações da lei 12.546, de 14 de dezembro de 2011, pela lei 14.973 de 16 de setembro de 2024”, que deve ser observada no reequilíbrio dos contratos celebrados pela Administração Pública federal.5

Saliente-se, contudo, que a revisão depende da demonstração, efetiva e analítica, dos reais impactos da reoneração da folha de pagamento nos “tributos diretamente pagos pelo contratado em decorrência do contrato”, na forma do art. 103, § 5º, II, da lei 14.133/21.

E não é qualquer alteração das condições fáticas que gerará o reequilíbrio contratual. Revela-se imprescindível que a alteração acarrete desequilíbrio considerável no contrato administrativo, o que pode ser parametrizado, preferencialmente, por meio de atos normativos, o que não impede a sua análise diante das circunstâncias concretas.

No âmbito do município do Rio de Janeiro, por exemplo, a revisão dos contratos somente poderá ocorrer se os preços unitários positivarem “variações mínimas de 10% (dez por cento) para mais ou para menos, inclusive pela criação, aumento ou diminuição de impostos, taxas e encargos sociais ou alterações dos valores do salário-mínimo”, na forma do art.  303, § 1º, da lei municipal 207/1980 (Código de Administração Financeira e Contabilidade Pública do Município do Rio de Janeiro - CAF).6

Da mesma forma, o TCU já teve a oportunidade de decidir que as repercussões de baixo impacto na relação contratual “não representam patamar suficiente para justificar o reequilíbrio entre as partes”.7

Em suma, verifica-se a viabilidade jurídica de revisão dos contratos administrativos em curso em razão da reoneração da folha de pagamento instrumentalizada pela lei 14.973/24, independentemente da alocação contratual dos riscos, desde que demonstrado, no caso concreto, o considerável impacto no equilíbrio econômico-financeiro contratual, com fundamento no art. 103, § 5º, II, da lei 14.133/21.

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1 CRFB: “Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (...) XXI - ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.” A preservação das condições efetivas da proposta, durante toda a execução do contrato administrativo, decorre, ainda, dos princípios constitucionais da isonomia, da impessoalidade e da vinculação ao instrumento convocatório.

2 A matriz de riscos será obrigatória nas contratações de obras e serviços de grande vulto, bem como nos regimes de contratação integrada e semi-integrada, na forma dos arts. 6º, XXII, e 22, § 3º, da Lei 14.133/2021.

3 OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Licitações e contratos administrativos: teoria e prática, 14 ed., Rio de Janeiro: Forense, 2025, p. 106.

4 A tese aqui sustentada foi adotada pelo autor em sua atuação na Procuradoria-Geral do Município do Rio de Janeiro por meio da Manifestação Técnica PG/PADM/CT/221/2025/RCRO, que recebeu o visto do Procurador-Chefe da Procuradoria Administrativa, Dr. Clovis Albuquerque Moreira Neto, e o visto, com acréscimos, do Subprocurador-Geral do Município do Rio de Janeiro, Dr. Carlos Raposo.

5 Disponível em: https://www.gov.br/compras/pt-br/agente-publico/orientacoes-e-procedimentos/43-orientacao-sobre-a-reoneracao-gradual-de-folha-de-pagamento-alteracoes-da-lei-no-12-546-de-14-de-dezembro-de-2011-pela-lei-14-973-de-16-de-setembro-de-2024. Acesso em: 31/03/2025.

6 Lei Municipal 207/1980 (Código de Administração Financeira e Contabilidade Pública do Município do Rio de Janeiro – CAF): “Art. 303 - Salvo disposição contrária, a revisão dos contratos poderá efetuar-se independentemente de cláusula expressa, observadas, porém, entre outras, as condições e formalidades previstas para a celebração daqueles. § 1º - A revisão dos contratos poderá efetuar-se, desde que os preços unitários positivem variações mínimas de 10% (dez por cento) para mais ou para menos, inclusive pela criação, aumento ou diminuição de impostos, taxas e encargos sociais ou alterações dos valores do salário-mínimo, salvo se o contrato contiver cláusula considerando os preços irreajustáveis.”

7 TCU: “44. Como se vê, os 2% de repercussão da “novidade” contratual – erro na condição de contorno com respeito à possibilidade de utilização das jazidas mapeadas no anteprojeto – não representam patamar suficiente para justificar o reequilíbrio entre as partes, em “erro substancial”. (...) Por isso, é recomendável que o Dnit estabeleça, em ato normativo próprio, algum tipo de parâmetro visando a caracterizar em quais casos os percentuais de reajuste dos materiais serão materialmente relevantes, a ponto de resultar em impacto considerável na avença e justificar a hipótese de reequilíbrio econômico-financeiro prevista no art. 65, inciso II, alínea “d”, da Lei 8.666/1993. (...) 61. Procedente, portanto, a preocupação da SeinfraRodovia ao apontar lacunas na norma que poderão levar a assinaturas de termos de aditamento desprovidos de motivação suficiente para justificar a presença de um dos requisitos da teoria da imprevisão, consistente na prova do impacto considerável que o fato gerador do desequilíbrio possa ter provocado nos contratos em andamento.” TCU, Acórdão 1604/2015, Plenário, Rel. Min. Augusto Nardes, julgado em 1/7/2015.

Rafael Carvalho Rezende Oliveira

Visiting Scholar rpela Fordham University School of Law-New York. Pós-Doutor pela UERJ. Doutor em Direito pela UVA-RJ. Mestre em Direito pela PUC-RJ. Professor do Ibmec. Procurador do Município do RJ.

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