"A Lei devia ser sempre acessível a toda a gente". A frase, escrita por Franz Kafka na obra póstuma "O Processo", que completa seu centenário de publicação em 2025, continua ecoando no sistema processual brasileiro.
No romance, o protagonista Josef K. é surpreendido por uma acusação sem detalhes e mergulha em um processo incompreensível, travado por burocratas, normas obscuras e um tribunal sem rosto.
A certa altura, ao ouvir a parábola do homem do campo que espera uma vida inteira diante da porta da Lei, e, depois, é informado de que aquela porta se destinava apenas para ele, Josef K. se indigna: "O porteiro só fez a comunicação libertadora quando esta já não podia ser útil ao homem".
Veja o trecho da adaptação da obra para o cinema, feita pelo cineasta Orson Welles, em 1962:
No artigo "Direito, Justiça e Mito: Uma leitura a partir de 'O Processo', de F. Kafka", Daniel Acosta e Ruth Castanha apontam que o autor não denuncia apenas o autoritarismo, mas também a "despersonalização do sujeito sob a égide do princípio da igualdade", que resulta em um "tratamento igualmente aterrorizante a todos que se tornam alvos do sistema".
Ainda, Thainá Barrionuevo, na publicação, "Os princípios processuais constitucionais e a obra 'O Processo' de Franz Kafka", observa que o livro escancara a ausência de garantias mínimas, como contraditório e publicidade, evidenciando a falência de pilares do Estado Democrático de Direito, como o devido processo legal e o juiz natural.
Cem anos depois, a pergunta kafkiana permanece: estamos democratizando o acesso ao Direito — ou apenas digitalizando o labirinto?
Trajetória do modelo
A digitalização do Judiciário prometeu celeridade, democratização e transparência. O uso de plenários virtuais pelas cortes superiores do Brasil — hoje estruturante no STF e no STJ — evoluiu de forma gradativa, mas ganhou tração com a pandemia da covid-19.
No STF, desde 2007, uma série de emendas regimentais transformou o Plenário Virtual de ferramenta auxiliar de triagem em espaço decisório de mérito.
Em 2025, segundo dados do portal do Supremo, 99,5% das decisões da Corte já são tomadas no ambiente virtual.
No STJ, o modelo foi institucionalizado em 2015 e passou a contar, durante a pandemia, com sessões por videoconferência e sustentação oral remota.
O formato híbrido se tornou permanente, integrando sessões presenciais, síncronas e assíncronas.
Embora os ganhos de eficiência sejam inegáveis, o modelo não está imune à crítica — que vão desde a limitação do contraditório até a formação de precedentes frágeis.
Ecos de Josef K.
Em 2023, o Conselho Federal da OAB dirigiu ao STF um ofício pedindo que o julgamento virtual só ocorra com a anuência das partes, sob pena de violação do devido processo legal. A manifestação ocorreu após ações penais relacionadas ao 8 de janeiro terem sido pautadas no ambiente virtual.
A Ordem sustentou que, sobretudo em casos de instância única, é essencial garantir a sustentação oral síncrona, a interação com a magistratura e o esclarecimento em tempo real de pontos controvertidos — valores que o julgamento virtual comprometeria.
O ministro aposentado Ricardo Lewandowski também expressou preocupação com o modelo: em suas palavras, o volume de julgamentos virtuais pode esvaziar a ampla defesa.
"Se 10% dos processos tivessem sustentação oral de 15 minutos, não teríamos tempo hábil para ouvi-los."
Para o ministro Luís Roberto Barroso, o modelo híbrido deve respeitar a autonomia dos tribunais. No CNJ, sugeriu que tribunais estaduais mantenham o direito à sustentação oral automática mediante simples pedido do advogado — prática que, segundo o ministro, não deve ser revertida em nome da eficiência.
Críticas à transparência também surgiram.
Em 2024, ministra Cármen Lúcia afirmou que o sistema virtual do STJ fere a CF ao não disponibilizar previamente os votos dos relatores. "É antidemocrático, antirrepublicano e inconstitucional", afirmou, cobrando publicidade imediata das decisões.
Na mesma linha, a professora Paula Pessoa, em evento promovido pelo Migalhas, alertou para riscos estruturais: a assimetria do julgamento assíncrono compromete o contraditório, enfraquece o debate entre ministros e inviabiliza a resposta em tempo real a divergências. A sustentação oral, ainda que prevista, é muitas vezes protocolar — gravada antes da leitura dos votos.
Paula sugeriu modelos híbridos: sessões virtuais com sustentação oral presencial (ou ao menos síncrona) em casos sensíveis. A medida já é aplicada pontualmente no STF e poderia ser estendida ao STJ.
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Ela também defendeu mudanças na proclamação dos resultados em julgamentos eletrônicos, especialmente quando envolvem modulação de efeitos.
"São gargalos institucionais que, se bem enfrentados, podem tornar a Justiça mais eficiente e, ao mesmo tempo, mais respeitosa aos direitos fundamentais."
Relembre:
Em defesa do modelo
Apesar das críticas, há defensores do modelo virtual.
Em 2025, durante sessão do STF, ministro Dias Toffoli afirmou que o plenário virtual permite maior reflexão, pois o julgamento se dá em tempo expandido.
S. Exa. negou que o julgamento físico seja sempre mais qualificado.
No STJ, durante discussão sobre a resolução 591/24 do CNJ, que regula os plenários virtuais, ministros demonstraram apreensão com a crescente demanda por sustentações orais.
Humberto Martins advertiu para a necessidade de adaptação à nova realidade. Nancy Andrighi defendeu que memoriais bem estruturados poderiam substituir com eficácia algumas sustentações. Moura Ribeiro propôs a uniformização do tempo: cinco minutos, tanto para presenciais quanto gravadas.
Essas posições ganham reforço nos dados.
Segundo o STF, houve transformação estrutural no modelo de julgamento nas últimas duas décadas.
Ao longo de 17 anos, a Corte proferiu 137.556 decisões em ambiente virtual, contra 163.528 decisões presenciais. Embora os julgamentos físicos predominem no acumulado histórico, a virada ocorreu em 2017, quando 78,7% das decisões passaram a ocorrer digitalmente.
Em 2025, a virtualização se consolidou: 99,5% das decisões são proferidas no plenário virtual. O salto foi expressivo entre 2015 e 2016 — de 34,9% para 78,7% — e a pandemia de covid-19 acelerou a consolidação do modelo. Desde então, os índices permanecem acima de 98%.
Além do volume, os indicadores de celeridade também chamam atenção.
O tempo médio para decisão em ambiente virtual é de 4 meses e 15 dias, demonstrando agilidade razoável se comparado ao rito presencial. A digitalização, portanto, embora não resolva sozinha os gargalos da Justiça, mostra-se eficaz sob o prisma da produtividade e da racionalização de recursos.
A porta da Lei está aberta?
No artigo "Kafka e os paradoxos do Direito", o doutor e professor André Karam Trindade observa que a literatura oferece ao Direito um espelho crítico — capaz de revelar seus impasses, silêncios e paradoxos.
Ao criar Josef K., Kafka não apenas denuncia um sistema opaco, mas convida o leitor a refletir sobre os efeitos institucionais e subjetivos do processo judicial.
No romance, o tribunal não é apenas inacessível: é também surdo. A ausência de escuta, o formalismo desmedido e a racionalidade instrumental transformam o processo em instrumento de angústia, não de justiça.
Esse risco permanece atual.
Ao potencial de esvaziamento de garantias fundamentais — como o contraditório e a ampla defesa — em nome da eficiência, revela um perigo de desumanização da Justiça: substitui-se a escuta pela automatização. A tecnocracia não pode obliterar a escuta: o Direito precisa continuar sendo linguagem, diálogo e acolhimento, e não apenas procedimento.
No fim da parábola contada em "O Processo", o porteiro diz ao homem do campo que a porta da Lei estava ali "como sempre aberta" — mas ele nunca entrou. Esperou um sinal, uma permissão, uma mediação. Submeteu-se à autoridade sem atravessar o limiar.
A revelação só vem tarde demais.
Cem anos após Kafka, a pergunta continua atual: a digitalização do processo abriu novas portas — ou apenas substituiu o porteiro por um código binário?
Se o Direito deseja permanecer fiel à sua vocação de Justiça, precisa garantir que a tecnologia não silencie vozes. O desafio contemporâneo não é apenas declarar a porta aberta — é assegurar que ela seja visível, compreensível e, acima de tudo, transponível.
Referências
BARRIONUEVO, Thainá de Paiva. Os princípios processuais constitucionais e a obra "O Processo" de Franz Kafka. Revista de Direito Público da Procuradoria-Geral do Município de Londrina, v. 7, n. 1, p. 75-86, 2018.
TRINDADE, André Karam. 12. Kafka e os paradoxos do direito: da ficção à realidade. Revista Diálogos do Direito - ISSN 2316-2112, v. 2, n. 2, p. 137 a 159, 2012.
YAMAUCHI, Daniel Acosta; DA COSTA CASTANHA, Ruth Faria. Direito, justiça e mito: uma leitura a partir de "O processo", de F. Kafka. Anamorphosis: Revista Internacional de Direito e Literatura, v. 3, n. 2, p. 437-464, 2017.