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Maconha, preconceito e Justiça: o que (ainda) precisa ser discutido

Brasil passou por recentes avanços, mas tema segue estigmatizado. Para o ministro do STJ Sebastião Reis, debate precisa passar pelo Judiciário, pelo Legislativo, mas também pela sociedade.

9/7/2025

No Brasil, o debate sobre a maconha ainda é conduzido com mais preconceito do que técnica. Seja no campo da saúde ou da segurança pública, usuários seguem enfrentando estigmas e entraves legais que países como a Holanda enfrentaram décadas atrás.

Mesmo quando o uso é medicinal — com comprovação científica de eficácia em quadros de epilepsia, autismo, Parkinson, dor crônica, entre outros — pacientes precisam acionar o Judiciário para garantir tratamento com derivados da cannabis. Essa judicialização cresceu nos últimos anos e virou regra onde o Estado deveria oferecer política pública.

Sobre o tema, ouvimos o ministro Sebastião Reis Júnior, do STJ, para quem o debate é necessário, mas não está acontecendo. 

Debate sobre a maconha no Brasil ainda é estigmatizado.(Imagem: Arte Migalhas)

STF: Descriminalização e critério objetivo

Foi só em 2024 que a Suprema Corte brasileira deu um passo decisivo sobre o tema. No julgamento do RE 635.659, o STF decidiu, por maioria de votos (7 a 4), que o porte de maconha para consumo pessoal não constitui crime, mas sim infração administrativa. O entendimento afastou os efeitos penais do art. 28 da lei de drogas (11.343/06), que havia mantido a criminalização mesmo após excluir a pena de prisão.

A decisão também fixou a quantidade de 40 gramas de cannabis ou seis plantas fêmeas como critério objetivo para distinguir usuários de traficantes — parâmetro que agora guia as abordagens policiais e judiciais.

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STJ e o cultivo de cânhamo

Além do avanço no STF, outro marco importante veio do STJ. Em novembro de 2024, a 1ª seção do STJ decidiu que é juridicamente possível a concessão de autorização sanitária para o plantio, cultivo e comercialização do cânhamo industrial (variedade da Cannabis sativa com teor de THC inferior a 0,3%) por pessoas jurídicas, exclusivamente para fins medicinais e farmacêuticos.

A decisão foi tomada no âmbito do IAC 16 e deve ser observada por toda a Justiça brasileira.

A Corte destacou que o baixo teor de THC retira do cânhamo os efeitos psicoativos que caracterizam a maconha, e, por isso, o cultivo não se enquadra nas proibições da lei de drogas.

No julgamento, os ministros fixaram prazo de seis meses para que a Anvisa e a União regulamentassem o tema. Contudo, esse prazo foi posteriormente prorrogado até 30 de setembro de 2025, após pedido das autoridades sanitárias federais. A relatora, ministra Regina Helena Costa, reconheceu o cumprimento parcial da obrigação e a existência de ações estratégicas em curso.

Preconceito, hipocrisia e a urgência do debate

Para o ministro Sebastião Reis Júnior, do STF, que atua na 6ª turma da Corte, que trata de Direito Criminal, o preconceito ainda é um obstáculo.

“Acho que é uma questão que tem que ser debatida — e não está sendo debatida. O pior de tudo é que há um enorme preconceito em relação a essa questão das drogas. As pessoas partem do princípio de que é droga, é ruim, é nocivo.”

O magistrado apontou a hipocrisia presente no debate:

“Eu acho uma certa hipocrisia. Porque você entende que é possível, por exemplo, a bebida alcoólica, que é responsável também por uma série de crimes: pessoas que dirigem embriagadas, acidentes no trânsito, violência doméstica, brigas familiares. Tudo isso é causado pelo álcool. E quanto a isso não há nenhuma observação, nenhuma ressalva. A mesma pessoa que acha natural beber uma taça de vinho é um crítico ferrenho do uso da maconha.”

Para Sebastião, o Brasil precisa aprender com as experiências internacionais.

“Nós temos que discutir essa questão da criminalidade das drogas de uma forma muito racional e muito técnica. E ver o que está acontecendo nos outros países, como estão enfrentando esse tipo de problema, os acertos, os erros. E criar uma política nossa em relação às drogas, inclusive diferenciando o tipo de droga. A maconha tem uma, a cocaína você vai tratar da mesma forma? Tudo isso tem que ser pensado e analisado. Você não pode colocar tudo no mesmo saco e simplesmente dizer sim ou não para a droga em geral.”

De onde deve vir a mudança?

Questionado sobre quem deve protagonizar a mudança de paradigma, o ministro Sebastião avaliou que a sociedade precisa se manifestar, mas também não excluiu a participação do Judiciário e do Congresso Nacional. Ele observou que a recente decisão do Supremo foi mal lida pela sociedade, como se estivesse liberando a droga. "O que o Supremo fez foi o que a lei já faz: diferenciar o usuário do traficante, definindo critérios objetivos para essa diferenciação."

“Não é uma decisão isolada. Passa pelo Congresso, passa pela sociedade. A sociedade civil tem que debater esse assunto, e provocar, inclusive, o Congresso. Levar elementos, informações, para que o Congresso consiga decidir sobre isso. E, é claro, também o Judiciário vai interpretar o que for decidido pelo Congresso e adequar à própria Constituição e até às circunstâncias fáticas de cada caso concreto.”

Maturidade

Com as recentes decisões do STF e do STJ, o Brasil deu um passo importante, mas ainda está longe de consolidar uma política pública racional e eficaz sobre o tema. O consumo em locais públicos segue vedado. O uso medicinal, embora reconhecido, continua burocratizado. E os marcos legais, ainda em construção, exigem articulação entre sociedade civil, Judiciário, Legislativo e agências reguladoras.

A Holanda, onde o consumo de maconha é tolerado desde os anos 1970, optou por tirar o usuário da marginalidade e concentrar esforços em campanhas educativas e controle de mercado. No Brasil, o debate começa a ganhar fôlego — mas precisa, com urgência, vencer o preconceito.

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