A prisão de Carla Zambelli em Roma, nesta terça-feira, 29, pela polícia italiana, levanta questionamentos sobre os complexos trâmites de extradição internacional, especialmente quando envolvem cidadãos com dupla nacionalidade.
Condenada no Brasil pelos crimes de invasão de sistema informático e falsidade ideológica, Zambelli aguarda agora um processo que definirá se deverá retornar ao país para cumprir a pena imposta pelo STF.
Diferentemente do Brasil, cuja Constituição Federal veda a extradição de brasileiros natos, a Itália admite, em determinadas circunstâncias, a extradição de seus próprios cidadãos.
O Tratado de Extradição entre Brasil e Itália de 1989, ratificado em 1993, prevê a entrega de pessoas condenadas por crimes cuja pena máxima supere um ano. Para fins de cumprimento de pena, é necessário restar ao menos nove meses por cumprir.
Odisseia
Segundo a advogada Jacqueline Valles, mestre em Direito Penal, a extradição está longe de ser automática.
"As pessoas acham que é simples: prendeu, já vem. Não é assim que funciona. O processo de extradição tem uma maratona burocrática que pode durar anos."
A Justiça italiana conduz a análise do pedido em duas etapas. Primeiro, verifica a validade do processo brasileiro e o respeito aos direitos fundamentais da pessoa condenada; depois, compara os sistemas legais dos dois países.
"Eles vão dissecar cada vírgula do processo brasileiro para ver se tudo ocorreu de forma adequada, se a deputada teve direito de defesa e se a condenação não foi fruto de uma perseguição política", explica Jacqueline.
Na segunda etapa, realiza-se a comparação entre os ordenamentos jurídicos.
"Aqui também não deve haver problema, já que a Itália só recusa extradições quando há risco de pena de morte ou prisão perpétua, o que não é o caso de Zambelli", completa a especialista.
Para a advogada, o principal argumento da defesa de Zambelli será a alegação de perseguição política.
"Ela vai dizer que estava apenas defendendo o ex-presidente, que não cometeu crime nenhum e que o Brasil persegue opositores do PT. A Itália possui uma política rígida de não extraditar indivíduos condenados por crimes de natureza política."
O cenário político também pode influenciar. A primeira-ministra italiana, Giorgia Meloni, é aliada ideológica de Jair Bolsonaro. Zambelli, por sua vez, já se declarou "exilada política", alegando perseguição e problemas de saúde.
Dupla cidadania não é impedimento
Para o professor de Direito Internacional Danilo Garnica Simini, o fato de Zambelli possuir cidadania italiana não representa impedimento legal à extradição.
"A Constituição italiana permite a extradição de italianos quando houver previsão em tratados internacionais, como é o caso do tratado com o Brasil, e desde que o crime imputado não seja considerado de natureza política."
O professor também destaca que o processo não se limita ao Judiciário:
"O procedimento ocorre em duas fases: a primeira é jurídica, conduzida pelo Judiciário italiano; se houver aval, o caso segue para análise do Executivo, que decide politicamente, por meio do ministério da Justiça, se autoriza ou não a entrega."
Ele lembra ainda que o caso de Henrique Pizzolato, condenado na Ação Penal 470 (mensalão) e extraditado da Itália em 2015, mesmo com passaporte italiano, serve de precedente: a cidadania europeia não é, por si só, um obstáculo absoluto.
"Esse caso demonstrou que, havendo garantias jurídicas suficientes por parte do Brasil, o governo italiano pode sim autorizar a extradição."
Danilo também destaca que o tratado bilateral prevê a possibilidade de prisão preventiva, o que justifica a detenção de Zambelli enquanto tramita o pedido de extradição.
Casos de extradição
O caso de Henrique Pizzolato, conforme lembrado por Danilo, é emblemático.
O ex-diretor de marketing do Banco do Brasil, foi condenado a mais de 12 anos de prisão por peculato, lavagem de dinheiro e corrupção passiva no âmbito da Ação Penal 470, o chamado "mensalão".
Em 2013, antes da execução da pena, foi para a Itália utilizando documentos de um irmão já falecido, de quem também possuía cidadania italiana. Refugiou-se em Maranello, no norte do país, onde foi localizado e preso em fevereiro de 2014 pela polícia italiana.
O processo de extradição, entretanto, enfrentou diversas etapas. Inicialmente, a Corte de Apelação de Bolonha negou a entrega de Pizzolato ao Brasil, alegando risco de violação a direitos humanos devido às condições do sistema prisional brasileiro.
Após recurso do governo italiano, a Corte de Cassação, instância máxima da Justiça do país, reformou a decisão e autorizou a extradição, entendendo que o Brasil havia prestado garantias suficientes quanto ao respeito aos direitos do extraditado.
Em outubro de 2015, Pizzolato foi transferido para o Brasil e passou a cumprir pena no Complexo da Papuda, em Brasília.
Outro exemplo é o do ex-banqueiro Salvatore Cacciola.
Condenado no Brasil, em 2005, a 13 anos de prisão pelos crimes de peculato e gestão fraudulenta no escândalo do Banco Marka, Cacciola fugiu para a Itália, onde residia e possuía cidadania italiana.
A Itália recusou inicialmente o pedido de extradição feito pelo Brasil. No entanto, em setembro de 2007, ele foi localizado e preso pela Interpol em Monte Carlo, no Principado de Mônaco, durante uma operação de rotina em um hotel de luxo.
Após cerca de 60 horas de intensas negociações diplomáticas, foi extraditado ao Brasil em julho de 2008.
Cacciola permaneceu preso por três anos, até obter indulto em 2011, que extinguiu sua punibilidade.
Há ainda um caso que ocorreu em Portugal. Raul Schmidt, operador financeiro investigado na Operação Lava Jato foi preso em Portugal em 2016 no âmbito da Operação Polimento, Schmidt possuía dupla cidadania, brasileira e portuguesa.
Inicialmente, a Justiça portuguesa autorizou sua extradição ao Brasil, com a condição de que fosse julgado apenas por fatos ocorridos após sua naturalização portuguesa. No entanto, ele permaneceu em liberdade em Portugal, beneficiado por decisões judiciais, inclusive de cortes europeias.
Em 2018, o Supremo Tribunal de Justiça português entendeu que o prazo legal de 45 dias para a entrega do extraditando havia sido ultrapassado e, por isso, cancelou a ordem de extradição e arquivou o processo.
A defesa também recorreu ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, que concedeu medida cautelar com base no risco de violação de direitos fundamentais no sistema prisional brasileiro.
Posteriormente, o Estado português reconheceu a Schmidt a cidadania originária, o que representou novo obstáculo jurídico à extradição. Em janeiro de 2019, o arquivamento da extradição foi confirmado definitivamente.
Em busca de agilidade
Ainda neste mês, a AGU e o ministério da Justiça firmaram acordo para acelerar processos de extradição, prevendo a contratação de advogados no exterior e o compartilhamento de informações. O objetivo, segundo a procuradora-geral da União, Clarice Calixto, é "garantir uma defesa cada vez mais robusta dos interesses da República Federativa do Brasil no exterior".
Como ocorreu a prisão de Zambelli?
Carla Zambelli foi detida em um apartamento localizado em um bairro de classe média, a cerca de 11 quilômetros do Coliseu.
A Polícia Federal confirmou que a prisão resultou de cooperação internacional entre a PF, a Interpol e agências italianas. No entanto, o advogado da parlamentar, Fábio Pagnozzi, e o líder do PL na Câmara, deputado Sóstenes Cavalcante, contestam essa versão.
Segundo eles, Zambelli teria se apresentado voluntariamente às autoridades italianas para iniciar um pedido de asilo político, não de extradição. A versão é rebatida por Angelo Bonelli, deputado italiano que afirma ter denunciado o paradeiro da parlamentar às autoridades.
Desde junho, ela está na Itália, onde se autodeclara "exilada política" e alega ser vítima de perseguição. A deputada também afirma que não sobreviveria à prisão por conta de problemas de saúde. Segundo suas declarações, se tiver que cumprir pena, "será aqui na Itália, que é um país justo e democrático".
A ordem de prisão foi expedida pelo ministro Alexandre de Moraes, após a saída de Zambelli do Brasil, a pedido da Procuradoria-Geral da República. Seu nome foi incluído na lista de procurados da Interpol, por meio da chamada difusão vermelha.
Com a confirmação da prisão pelas autoridades italianas, Moraes determinou, nesta quinta-feira, 31, a notificação da AGU para que acompanhe o processo de extradição e adote as providências cabíveis.